A renúncia recíproca à condição de herdeiro legitimário no ordenamento jurídico português - Breves Notas
quarta-feira, 17 de novembro de 2021
Atualizado às 09:21
1. Nota Prévia ¾ O actual Código Civil português, no art. 2028.º, impõe, como regra, a proibição dos pactos sucessórios, ao estatuir:
" 1. Há sucessão contratual quando, por contrato, alguém renuncia à sucessão de pessoa viva, ou dispõe da sua própria sucessão ou da sucessão de terceiro ainda não aberta.
2. Os contratos sucessórios apenas são admitidos nos casos previstos na lei, sendo nulos todos os demais, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 946."
O caráter bilateral do contrato que titula a sucessão contratual e a consequente dependência do mútuo consentimento dos contraentes, para que ocorra a modificação ou desvinculação ao acordado, tem sido um dos principais motivos da proibição deste tipo de sucessão, uma vez que tem predominado o entendimento segundo o qual o legislador deve: i) assegurar ao autor da sucessão, até ao fim da sua vida, a liberdade de disposição por morte; ii) garantir ao sucessível, após a morte do de cuius, a liberdade total na tomada de decisão de aceitar ou repudiar a sucessão.
Até à Lei 48/18, de 14 de Agosto, o ordenamento jurídico português apenas admitia a celebração válida de pactos sucessórios institutivos, consubstanciadores de doações mortis causa em favor de um dos nubentes ou em favor de terceiro, pelas quais os beneficiários eram, e são, instituídos herdeiros ou nomeados legatários dos disponentes em convenção antenupcial (art. 1700.º, n.º 1, alíneas a) e b)).
De facto, no ordenamento juridico português, desde as Ordenações Afonsinas1, eram vedados os pactos sucessórios renunciativos. Mas, a Lei n.º 48/2018, de 14 de Agosto, veio alterar o Código Civil introduzindo no elenco do art. 1700.º do Código Civil uma nova exceção à proibição dos pactos sucessórios - um pacto renunciativo admitido em termos limitados2. Em concreto:a renúncia recíproca à condição de herdeiro legitimário, pelos nubentes, em convenção antenupcial3-4.
A par desta nova excepção à regra da proibição dos pactos sucessórios, a Lei em apreço também alterou o Código Civil ao fixar um regime especial de redução por inoficiosidade, aplicável às liberalidades feitas a favor do cônjuge sobrevivo renunciante (n.º 2 do art. 2168.º) e ao consagrar, a favor do cônjuge renunciante, um conjunto de direitos sobre a casa de morada de família e respetivo recheio, sem lhe retirar o direito de apanágio.
Para a análise e compreensão das alterações introduzidas no Código Civil, cumpre, previamente, recordar a posição sucessória que legalmente é atribuída ao cônjuge, caso os nubentes não exerçam a faculdade que agora lhes reconhecida.
É o que faremos de seguida. Só depois analisarmos: os pactos sucessórios renunciativos previstos na alínea c) do n.º 1 do art. 1700.º; a solução especial prevista no n.º 2 do art. 2168.º; a proteção sucessória que é legalmente prevista para o cônjuge sobrevivo renunciante e que respeita ao direito de habitação da casa de morada de família e ao direito de uso do respetivo recheio.
2. A posição sucessória que legalmente é atribuída ao cônjuge - caso os nubentes não exerçam a faculdade que agora lhes é reconhecida pela Lei n.º 48//2018, de 14 de Agosto - foi a fixada, essencialmente, pelo Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro ¾ Através do diploma que procedeu à designada reforma de 77, a posição sucessória do cônjuge foi muitíssimo fortalecida5. Efectivamente, a partir de então, o cônjuge tornou-se herdeiro legitimário (art. 2157.º) e passou a integrar as primeiras classes dos herdeiros legítimos, sendo chamado à sucessão legitimária e legítima do de cuius, a par dos descendentes se os mesmos existirem, ou dos ascendentes, no caso de não existirem descendentes, ou sozinho, na falta de descendentes e ascendentes. Podendo tal, destaque-se, influenciar na extensão da quota indisponível (1/2 ou 2/3) e da quota disponível (1/2 ou 1/3). E, isto, independentemente do regime de bens do casamento, ou seja, o cônjuge sobrevivo tornou-se herdeiro, nos termos acabados de referir, quer o casamento seja celebrado no regime da comunhão geral de bens, no regime da comunhão de adquiridos, no regime da separação - por escolha ou por imposição legal -, num regime em misto ou num regime atípico.
Acresce que, em benefício do cônjuge sobrevivo - independentemente do regime de bens do casamento -, o legislador em determinados casos previu o afastamento da regra da divisão por cabeça. Assim, em caso de concurso com mais de três descendentes, ao cônjuge caberá ¼ da legítima global, na sucessão legitimária, e ¼ da quota disponível que haja a partilhar, segundo as regras da sucessão legítima (art. 2139.º, n.º 1, 2.ª parte). Por seu turno, em caso de concurso com os ascendentes, a divisão é sempre desigual, cabendo ao cônjuge 2/3 e aos ascendentes 1/3 das quotas - legitimária e legítima - a partilhar (art. 2142.º, n.º 1).
Com a reforma de 77, foram também consagradas, a favor do cônjuge sobrevivo, as atribuições preferenciais previstas no art. 2013.º-A e seguintes. Ou seja, o direito a ser encabeçado no direito de habitação da casa de morada de família e no direito de uso do respetivo recheio (para concretizar a parte que lhe cabe como herdeiro legitimário e a meação que lhe caiba no património comum - quando exista). Tendo-se mantido o direito de apanágio, consagrado no art. 2018.º6.
Por fim, não obstante a polémica doutrinal, segundo a melhor doutrina e jurisprudência, o cônjuge não está sujeito à colação e ainda beneficia da igualação7.
2.1. Crítica à posição sucessória que é legalmente atribuída ao cônjuge não renunciante ¾ A posição sucessória do cônjuge, nos termos em que foi reforçada pela Reforma de 77, à época, não mereceu o aplauso de toda a doutrina portuguesa e, com o decurso dos anos, passou a merecer duras críticas. De entre elas destacamos as seguintes: um estatuto sucessório reforçado, pode constituir um entrave à celebração de um (novo) casamento, nomeadamente por quem já tenha descendentes (sobretudo se não forem comuns), na verdade, atribuindo-se ao cônjuge o direito a ser encabeçado no direito de propriedade sobre os bens do consorte falecido, gera-se a possibilidade de os bens integrados no património hereditário mudarem de linha familiar (de sangue), em detrimento da proteção da troncalidade8; a protecção concedida ao cônjuge sobrevivo, se esteve em consonância com um quadro social passado, de maior dependência do casamento, revela-se hoje desconforme com a atual realidade emancipatória dos cônjuges e com a centralidade que as relações entre pais e filhos têm vindo a assumir; em tempos em que o casamento vale o que valerem os cônjuges não parece haver razões que justifiquem que o casamento "valha necessariamente uma herança"9.
3. Os pactos renunciativos recíprocos previstos no art. 1700.º, n.º 1, alínea c) do Código Civil ¾ Os pactos renunciativos recíprocos são actos que pressupõem a participação dos dois nubentes, que neles intervêm como partes.
Em causa estão duas declarações negociais que encontram a sua causa uma na outra e convergem no sentido da formação de um contrato (sucessório)10.
A intervenção de cada um dos esposados, no âmbito desta estipulação, dá-se como parte negocial que, em simultâneo, renuncia e aceita a renúncia da outra parte. Portanto, estamos longe de um negócio jurídico unilateral, como ocorre na renúncia em geral.
O efeito jurídico imediato dos pactos em apreço é o de impedir a designação sucessória como herdeiro legitimário11.
3.1. Requisitos de validade dos pactos sucessórios renunciativos previstos no art. 1700.º, n.º 1, al. c) ¾ A lei faz depender a validade da celebração dos pactos sucessórios renunciativos, previstos no art. 1700.º, n.º 1, al. c), da reunião cumulativa do seguinte conjunto de requisitos:
i. A celebração do casamento dos renunciantes sob o regime de separação de bens (art. 1700.º, n.º 3) ¾ O legislador português entendeu que o interesse em excluir a produção de (certos) efeitos sucessórios decorrentes do estatuto do cônjuge só merece tutela quando, no plano matrimonial, vigore - por escolha ou imposição (nos termos do art.1720.º do CC) - aquele regime de bens que envolve maior autonomia patrimonial entre os cônjuges12.
ii. A reciprocidade da renúncia ¾ Apenas se admite a validade do pacto renunciativo entre nubentes quando a renúncia é recíproca. A exigência da reciprocidade da renúncia resulta expressamente da letra do art. 1700.º, n.º 1, al. c).
O requisito da reciprocidade explica-se sobretudo pelo princípio da igualdade entre os cônjuges - proclamado no art. 36.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa e pela diretriz imposta pelo art. 1671.º, n.º 1 do Código Civil: "o casamento baseia-se na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges" - e visa impedir desequilíbrios patrimoniais entre os cônjuges.
No entanto, bem sabemos que só um dos fenómenos sucessórios (o do cônjuge que morra em primeiro lugar) será marcado decisivamente pela renúncia, já que quanto ao outro (o do consorte que faleça em segundo lugar), o não chamamento sucessório resultará da prévia dissolução do casamento pela morte que, consequentemente, extinguirá o estatuto de cônjuge. Por outra via, apesar da reciprocidade da renúncia, a ordem das mortes determinará o real significado do ato sucessório renunciativo efetuado ao abrigo do art. 1700.º, n.º 1, al. c). Em síntese, em termos práticos, só um dos cônjuges poderá suceder ao outro e, portanto, haverá uma inevitável unilateralidade.
Acresce que, dados sociológicos indicam que, num casamento heterossexual, com frequência, a mulher é o cônjuge sobrevivo. Na verdade, nas últimas cinco décadas, as informações demográficas existentes, permitem chegar à conclusão de que existe uma diferença de cerca de seis anos na esperança de vida entre homens e mulheres, em favor destas. Ora, tal realidade pode, também em termos práticos, desequilibrar a renúncia recíproca.
Por fim, a lei prevê, no art. 1707.º-A, n.º 1, a possibilidade de a renúncia ser condicionada em termos unilaterais13, à sobrevivência ou não de sucessíveis de qualquer classe, bem como de outras pessoas. O que, obviamente, pode perturbar a concretização da efetiva bilateralidade dos efeitos jurídicos produzidos pelo pacto renunciativo e, consequentemente, colocar em causa o princípio da igualdade que presidiu à redação do art. 1700.º, n.º 1, al. c).
iii. As exigências de forma e de tempo de celebração ¾ Prevêem-se, também, requisitos de forma, de publicidade e de tempo, que resultam da exigência de o pacto renunciativo ter de ser integrado a convenção antenupcial14.
A saber:
¾ Quanto à forma, o pacto renunciativo deve constar de convenção antenupcial celebrada em cartório notarial, por escritura pública, ou nas conservatórias do registo civil, por meio de declaração prestada perante conservador ou oficial de registo em que o aquele delegue essa competên cia (art. 189.º, n.º 1 do Código de Registo Civil). Da inobservância da forma resulta a nulidade da convenção antenupcial e, portanto, do pacto renunciativo nela contido, nos termos do art. 220.º, beneficiando os cônjuges do estatuto sucessório privilegiado.
¾ Quanto à publicidade, para que as estipulações contidas nas convenções matrimoniais produzam efeitos jurídicos em relação a terceiros (art. 1711.º, n.º 1 do Código Civil e art. 1.º, n.º 1, al. e) do Código do Registo Civil), e de entre elas, o pacto renunciativo, hão de ser susceptíveis de por eles serem conhecidas, mediante a publicidade registal.
¾ Quanto ao tempo, a faculdade, conferida pelo art. 1700.º, n.º 1, al. c), do Código Civil, só pode ser exercida antes da celebração do contrato de casamento dos nubentes renunciantes, devendo ser respeitado o lapso máximo de um ano de antecedência em relação a esse momento, sob pena de caducidade do ato (art. 1716.º do Código Civil). Consequentemente, os cônjuges que celebraram casamento antes da entrada em vigor desta lei estão desprovidos desta faculdade e aqueles que, podendo recorrer a esta faculdade, não o fizeram, já não poderão realizar um pacto renunciativo, mesmo que, por exemplo, venha a ocorrer o nascimento ou o reconhecimento de um filho15.
4. As liberalidades a favor do cônjuge renunciante e a redução por inoficiosidade - a solução do novo n.º 2 do art. 2168.º do Código Civil - A lei n.º 48/2018, de 14 de Agosto, alterou o art. 2168.º do Código Civil, sob a epígrafe "liberalidades inoficiosas", introduzindo-lhe um n.º 2, onde se pode ler:
"Não são inoficiosas as liberalidades a favor do cônjuge sobrevivo que tenha renunciado à herança nos termos da alínea c) do n.º 1 do art. 1700.º, até à parte da herança correspondente à legítima do cônjuge caso a renúncia não existisse".
Este preceito legal visa atenuar os efeitos jurídicos associados à celebração do pacto renunciativo entre nubentes.
Concordamos, portanto, com Parecer do Conselho Consultivo do Instituto dos Registos e do Notariado 84/18 STjSR-CC, de 15 de Novembro de 2018, no qual se pode ler "a razão de ser desta norma consiste em permitir que, por via de liberalidades entre os cônjuges - que, contudo, não são necessariamente recíprocas - possam ser mitigados os efeitos da renúncia antecipada à condição de herdeirolegitimário do outro cônjuge (.)"16.
Ou seja, esta norma cria uma espécie de escudo protetor, que blinda as liberalidades feitas a favor do cônjuge renunciante, contra a redutibilidade por inoficiosidade até à medida correspondente à legítima subjectiva a que teria direito caso a renúncia não tivesse ocorrido. O mesmo é dizer que as liberalidades feitas a favor do cônjuge sobrevivo renunciante, desde que sejam de valor igual ou inferior à legítima subjectiva a que teria direito, se não houvesse renunciado, não podem ser reduzidas por inoficiosidade. Cria-se, assim, uma legítima subjectiva virtual a favor do cônjuge renunciante.
Consequentemente, a legítima dos herdeiros legitimários não será preenchida à custa das liberalidades feitas em benefício do cônjuge sobrevivo renunciante, dentro do perímetro fixado no n.º 2 do art. 2168.º, a saber: o montante da legítima subjectiva do cônjuge caso a renúncia não tivesse ocorrido.
Se a liberalidade a favor do cônjuge renunciante ultrapassar o valor da legítima virtual, o excesso será suscetível de redução, como acontece com as demais liberalidades que excedam a quota disponível, aplicando-se as regras e ordem previstas no art. 2171.º e ss.17
Em consequência da aplicação do art. 2168.º, n.º 2, no limite, ocorrerá a reposição do resultado patrimonial que se verificaria se não tivesse sido celebrado o pacto sucessório. Ou, por outra via, a aplicação do art. 2168.º, n.º 2 permitirá uma reversão (total ou parcial) dos efeitos do pacto renunciativo.
Os herdeiros legitimários (os que concorreriam com o cônjuge se ele não tivesse renunciado) receberão sempre pelo menos o que receberiam se não tivesse havido renúncia.
5. A Proteção Sucessória Legalmente Prevista para o Cônjuge Sobrevivo Renunciante - Em primeiro lugar, ao consorte sobrevivo é atribuído o direito de habitação do imóvel onde se situava a casa de morada de família e o direito de uso sobre o respetivo recheio (n.os 3 a 6 e 10 do art. 1707.º-A,)18.
Em causa estão dois direitos reais menores intuito personae previstos nos art. 1484.º e ss. do Código Civil19.
A duração destes direitos corresponderá, em regra, a cinco anos20. Mas, se o cônjuge sobrevivo tiver completado sessenta e cinco anos de idade à data da abertura da sucessão, o direito de habitação da casa (não o direito de uso) será vitalício21-22.
Findo o período, por que o cônjuge sobrevivo renunciante beneficia do direito real de habitação, é-lhe reconhecido o direito de permanecer no imóvel na qualidade de arrendatário, nas condições gerais do mercado.
O cônjuge sobrevivo poderá, portanto, exercer um direito potestativo à celebração do contrato de arrendamento (n.º 7 do art. 1707.º-A). Direito este que se impõe ao(s) sucessível(is) que venham a adquirir o imóvel , a menos que este(s) satisfaça(m) os requisitos legalmente exigidos para a denúncia, pelo senhorio, do contrato de arrendamento para habitação23.
Os termos do contrato de arrendamento devem ser estipulados por negociação das partes, à luz das condições gerais do mercado. Mas, na ausência de acordo, o tribunal pode ser chamado a intervir para definir os termos contratuais, após audição dos interessados (n.º 8 do art. 1707.º-A)24.
Acresce que, enquanto o contrato não se encontrar celebrado, o cônjuge pode permanecer no imóvel, com base no direito pessoal de gozo legalmente previsto na parte final do n.º 7 do art. 1707.º-A25.
Na hipótese de o contrato de arrendamento já ter sido celebrado, ao abrigo do disposto na referida disposição legal, antes do imóvel ser alienado a um terceiro, o cônjuge sobrevivo pode opor a sua posição contratual de arrendatário ao adquirente, à luz da regra "emptio non tollit locatum" (art. 1057.º do C.C.).
Finalmente, prevê-se, no n.º 9, in fine, do art. 1707.º, em benefício do cônjuge sobrevivo renunciante, durante todo o período em que o cônjuge o habitar e "a qualquer título", o direito legal de preferência em caso de alienação do imóvel onde se situava a casa de morada de família26.
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1 As Ordenações Afonsinas, sob influência do Direito Romano aboliram os pactos renunciativos, não obstante gozarem da simpatia popular e de se encontrarem ao serviço dos valores da troncalidade.
2 Sobre o projeto de lei n.º 781/xiii - apresentado, por deputados do partido socialista, em 20 de fevereiro de 2018, que esteve na origem da Lei n.º 48/2018, de 14 de Agosto, por todos vide: GUILHERME DE OLIVEIRA, Notas sobre o Projeto de Lei n.º 781/XIII - Renúncia recíproca à condição de herdeiro legal, disponível in: http://www.guilhermedeoliveira.pt/resources/Notas-sobre-o-Projeto-de-Lei-781-XIII-.pdf; MARIA MARGARIDA SILVA PEREIRA e SOFIA HENRIQUES, Pensando sobre os pactos renunciativos pelo cônjuge - contributos para o projeto de lei n.º 781/XIII, Julgar Online, Maio de 2018; RUTE PEDRO, Pactos renunciativos entre os nubentes à luz do art. 1700.º, n.º 1, alínea c) do Código Civil - análise do regime introduzido pela lei n.º 48/2018, de 14 de agosto, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 2018 - I/II, 2019.
3 O art. 1700.º do Código Civil, com a epígrafe "Disposições por morte consideradas lícitas", passou a ter a redacção que, de seguida, se transcreve:
"1. A convenção antenupcial pode conter:
a) A instituição de herdeiro ou a nomeação de legatário em favor de qualquer dos esposados, feita pelo outro esposado ou por terceiro nos termos prescritos nos lugares respectivos;
b) A instituição de herdeiro ou a nomeação de legatário em favor de terceiro, feita por qualquer dos esposados;
c) A renúncia recíproca à condição de herdeiro legitimário do outro cônjuge.
2. São também admitidas na convenção antenupcial cláusulas de reversão ou fideicomissárias relativas às liberalidades aí efectuadas, sem prejuízo das limitações a que genericamente estão sujeitas essas cláusulas.
3. A estipulação referida na alínea c) do n.º 1 apenas é admitida caso o regime de bens, convencional ou imperativo, seja o da separação.
4 Sublinhe-se que, o projeto de lei n.º 781/xiii previa a possibilidade de renúncia recíproca, pelos nubentes, em convenção antenupcial, à posição sucessória de herdeiro legal (o que incluía, portanto, tanto a sucessão legítima como a sucessão legitimária) e não apenas à sucessão legitimária.
5 Saliente-se que, no direito português, os unidos de facto não são equiparados aos cônjuges, não sendo, designadamente, herdeiros legitimários ou legítimos.
6 Apesar de, com a reforma de 1977, o cônjuge ter ascendido à categoria de herdeiro legitimário e legítimo das primeiras classes manteve a proteção alimentar à custa dos rendimentos dos bens deixados pelo falecido que já se encontrava prevista na versão original do Código Civil de 1967.
O art. 2018.º do Código Civil, com a epígrafe "Apanágio do cônjuge sobrevivo" estatui:
"1. Falecendo um dos cônjuges, o viúvo tem direito a ser alimentado pelos rendimentos dos bens deixados pelo falecido.
2. São obrigados, neste caso, à prestação dos alimentos os herdeiros ou legatários a quem tenham sido transmitidos os bens, segundo a proporção do respectivo valor.
3. O apanágio deve ser registado, quando onere coisas imóveis, ou coisas móveis sujeitas a registo."
7 Segundo o art. 2104º. do Código Civil, "Os descendentes que pretendam entrar na sucessão do ascendente devem restituir à massa da herança, para igualação da partilha, os bens ou valores que lhes foram doados por este: esta restituição tem o nome de colação."
O fundamento da colação é a vontade presumida do de cuius que, por via de regra (de acordo com o padrão do bom pai de família), quer tratar igualmente os descendentes que compartilhem a sua herança, por isso, o regime da colação previsto no Código Civil tem natureza supletiva.
O objectivo da colação é a igualação da partilha, no entanto, no regime supletivo, de acordo com o art. 2108.º n.º 2: "se não houver na herança bens suficientes para igualar todos os herdeiros, nem por isso são reduzidas as doações, salvo se houver inoficiosidades."
Para haver colação, no regime supletivo, é necessário que o autor da sucessão, em vida, tenha feito doações ou efectuado despesas gratuitas (cfr. arts. 2104.º n.º 2 e 2110.º), a favor de um descendente, que à data fosse seu presuntivo herdeiro legitimário. E, por fim, que à sucessão hereditária concorra o descendente donatário e outro ou outros herdeiros legitimários (sejam ou não descendentes).
8 A preocupação de conservar os bens avoengos na linha familiar da sua procedência foi a que esteve, de forma declarada, subjacente ao projeto de lei n.º 781/xiii.
9 LEITE CAMPOS e MÓNICA MARTINEZ DE CAMPOS, Lições de Direito das Sucessões, p. 160 a 162, Coimbra, Almedina, 2017.
10 Atendendo à sua natureza bilateral, ao pacto sucessório, aplicar-se-ão as regras relativas à falta e vícios de vontade, mutatis mutandis, previstas nos arts. 240.º a 257.º do Código Civil. Também à interpretação e integração se aplicarão as normas dos arts. 236.º a 239.º do Código Civil.
11 Sublinhe-se, no entanto, que a celebração de um tal pacto já produz alguns efeitos ainda na constância do casamento pois, na medida em que não se dará a designação sucessória correspondente, não se reconhecerá ao cônjuge as faculdades que os presuntivos herdeiros legitimários designados podem exercer, ainda em vida do de cuius, para proteger a expetativa jurídica por si encabeçada. Designadamente, despidos da veste de "presuntivo herdeiros legitimários", os cônjuges não têm legitimidade para invocar a nulidade do negócio simulado, nos termos do art. 242.º, n.º 2, do Código Civil.
Se a renúncia afastasse também a qualidade herdeiros legítimos, outras faculdades reconhecidas a esses sucessíveis, designadamente a legitimidade para invocar a nulidade ou a anulabilidade de disposições testamentários ou pactos sucessórios (arts. 286.º, 287.º e art. 2308.º), seriam eliminadas.
12 Temos muitas reticências quanto à opção feita pelo legislador, uma vez que a mesma além de colocar em causa a separação dos efeitos patrimoniais em vida e por morte, consubstancia um tratamento desigualitário, sem que haja fundamento aparente para impedir que os nubentes exerçam esta faculdade qualquer que seja o regime de bens.
Recordamos que a renúncia prevista no art. 1571.º do Código Civil de Macau não está conectada à vigência de um específico regime de bens.
13 A possibilidade de aposição de condição na convenção antenupcial está em conformidade com a previ são normativa do art. 1713.º do Código Civil português e relaciona-se com a possibilidade prevista no art. 2229.º, do mesmo diploma legal, de a instituição de herdeiro ou nomeação de legatário se sujeitar a condição suspensiva ou resolutiva.
14 A exigência da inclusão do pacto na convenção antenupcial suscita a questão de se saber se o mesmo se encontra submetido ao princípio da imutabilidade previsto no art. 1714.º
15 No Código Civil de Macau o pacto sucessório deve ser incluído em convenção nupcial, mas esta pode ser celebrada (e alterada) na constância da relação matrimonial (art. 1578.º).
16 Parece disponível in: rn.mj.pt/IRN/sections/irn/doutrina/pareceres/civil/2018/pareceres-18-32-2018/downloadFile/attachedFile_3_f0/42_CC_2018-CC84-2018_STJSCC.PDF?nocache=1544179192.0 9.
17 Recordamos que o cônjuge sobrevivo que renuncie à qualidade de herdeiro legitimário, precisamente por isso - porque deixa de ser legitimário - , não está sujeito à colação, independentemente da posição que se assuma em geral quanto à polémica da sujeição ou não sujeição do cônjuge à colação.
18 Os n.os 3 a 6 e 10 do art. 1707.º-A têm a seguinte redação:
"3 - Sendo a casa de morada de família propriedade do falecido, o cônjuge sobrevivo pode nela permanecer, pelo prazo de cinco anos, como titular de um direito real de habitação e de um direito de uso do recheio.
4 - Excecionalmente, e por motivos de equidade, o tribunal pode prorrogar o prazo previsto no número anterior considerando, designadamente, a especial carência em que o membro sobrevivo se encontre, por qualquer causa.
5 - Os direitos previstos no n.º 3 caducam se o interessado não habitar a casa por mais de um ano, salvo se a razão dessa ausência lhe não for imputável.
6 - Os direitos previstos no n.º 3 não são conferidos ao cônjuge sobrevivo se este tiver casa própria no concelho da casa de morada da família, ou neste ou nos concelhos limítrofes se esta se situar nos concelhos de Lisboa ou do Porto.
(...)
10 - Caso o cônjuge sobrevivo tenha completado 65 anos de idade à data da abertura da sucessão, o direito de habitação previsto no n.º 3 é vitalício."
19 O direito de uso concede ao seu titular o poder de usar e fruir a coisa. Já o direito de habitação consiste apenas no poder de usar uma casa de morada, não no poder de a fruir. O morador usuário não pode trespassar ou onerar o seu direito, como também não pode locá-lo.
Saliente-se, por fim, que a concepção de família nesta matéria não corresponde ao conceito de família plasmado no art. 1576.º do Código Civil. Pois, tanto fica aquém de tal conceito - designadamente, não são considerados elementos da família os filhos maiores -, como vai além do mesmo - designadamente, são havidos como elementos da família os serviçais do titular do direito de uso ou do direito de habitação (cfr. art. 1487.º).
20 Sublinhe-se que, no caso da união de facto, os cinco anos constituem o intervalo temporal mínimo de duração dos direitos referidos, já que sempre que a relação de união de facto se tenha prolongado por mais de cinco anos, a duração dos direitos estender-se-á ope legis, coincidindo com a duração que aquela relação, em concreto, tenha alcançado. Tal não acontece no âmbito do regime agora em análise, mas não alcançamos razão que justifique esta diferença.
21 Recordamos que o art. 2103.º-A, diversamente, atribui ao cônjuge sobrevivo não renunciante o direito a ser encabeçado nos direitos de uso e de habitação, vitalícios, da casa de morada de família. Assim, ao cônjuge não renunciante são atribuídos por lei direitos de aquisição, já ao cônjuge renunciante são atribuídos direitos reais de gozo.
22 Exercendo pela positiva os direitos reais de aquisição, o cônjuge sobrevivo, não renunciante, adquire - para concretizar a parte que lhe cabe como herdeiro legitimário e a meação que lhe caiba no património comum, quando exista - o direito de gozo de uso e/ou habitação que se pode(m) extinguir se findarem as necessidades do seu titular e da sua família.
23 De acordo com o estatuído no n.º 7 do art. 1707.º-A :
"Esgotado o prazo em que beneficiou do direito de habitação, o cônjuge sobrevivo tem o direito de permanecer no imóvel na qualidade de arrendatário, nas condições gerais do mercado, e tem direito a permanecer no local até à celebração do respetivo contrato, salvo se os proprietários satisfizerem os requisitos legalmente estabelecidos para a denúncia do contrato de arrendamento para habitação, pelos senhorios, com as devidas adaptações."
24 No n.º 8 do art. 1707.º- A pode ler-se:
"No caso previsto no número anterior, na falta de acordo sobre as condições do contrato, o tribunal pode fixá-las, ouvidos os interessados."
25 Vide nota 23.
26 Em caso de alineação a terceiro com violação do direito previsto no n.º 9 do art. 1707.º, o consorte sobrevivo pode recorrer à ação de preferência, nos termos do art. 1410.º do C.C., para se sub rogar na posição jurídica do adquirente, com efeito retroativo, como se o ato de alienação tivesse sido celebrado ab initio entre ele e o alienante.