A evolução de instrumentos legislativos e as irregularidades imobiliárias
quarta-feira, 7 de abril de 2021
Atualizado às 08:14
As irregularidades jurídicas, em regra, comportam sanções punitivas ou anulatórias, destinadas ao retorno do estado de normalidade ou às indenizações. Converter o que para o direito é irregular, tornando-o regular e em conformidade com a lei, é medida excepcional.
Talvez, por esta razão, por um bom tempo não houve em nosso ordenamento um sistema destinado a regularização imobiliária. A este fato, é possível acrescentar diversos outros fatores que contribuíram sobremaneira para que em nosso país tenhamos uma vasta quantidade de imóveis irregulares. São fatores históricos, sociológicos, econômicos, culturais e jurídicos que também contribuíram para este cenário.
Com relação a um microssistema jurídico que visa sanar as irregularidades imobiliárias, apesar de uma evolução histórica lenta ou praticamente inexistente, ordeiramente, a Lei 13.465 de 2017 estabelece normas centrais de um sistema próprio de regularização fundiária, sendo um importante instrumento de promoção e garantia do direito à moradia, do desenvolvimento econômico e do cumprimento de função social do imóvel.
O objetivo deste trabalho é traçar algumas linhas a respeito da relação das irregularidades imobiliárias com a evolução da legislação de organização e regularização territorial no Brasil.
Estima-se que aproximadamente metade dos imóveis no país estão em situação irregular, apesar da existência de um sistema registral eficaz, similar ao de países nos quais esta mesma estimativa se aproxima de zero.
A origem destas irregularidades fundiárias no território brasileiro tem ligação direta com a evolução da legislação de organização territorial e urbanística e com seu descumprimento.
O primeiro "sistema" jurídico que vigorou no Brasil foi o sistema das sesmarias, pelo qual a terra na colônia era concedida pela Coroa portuguesa para sua exploração agrícola. Decorrido longo tempo, apesar de algumas câmaras municipais terem editado alguns instrumentos com regramentos urbanísticos neste período colonial, foi somente no século XIX, com a chamada Lei de Terras (lei 601 de 1850) e seu Regulamento 1.318 de 1854, que houve um efetivo tratamento da posse e de seu registro, o qual era efetuado pela Igreja na tentativa de diferenciar o que era de domínio público do particular.
Um registro de imóveis, com atribuições de transcrever propriamente as transmissões e instituições de ônus sobre imóveis, surgiu somente em 1864, com a lei 1.237, regulamentada pelo decreto 3.453 de 1865. A partir de então as transcrições imobiliárias passaram ser necessárias para operar efeitos para terceiros. Com o Código Civil de 1916, estas transcrições passaram a significar efetiva aquisição do direito de propriedade. Este diploma legal também determinou o registro de ônus hipotecários e estabeleceu a obrigatoriedade do registro de transmissões mortis causa.
De outro lado, no que tange a matéria de ordenação e divisão do solo em si, o primeiro texto legislativo federal a esse respeito foi editado somente em 1937. O decreto-lei 58 e seu regulamento, o decreto 3.079 de 1938, apesar de ainda não conter disposições urbanísticas, tratou pela primeira vez do parcelamento do solo, dispondo que quando houvesse intenção do proprietário em subdividir seu imóvel para venda em prestações, por oferta pública, ele tinha o dever do registro do loteamento, depositando em cartório planta e memorial assinados, exemplar do contrato-tipo de compromisso de compra e venda e demais documentos exigidos pela lei.
Em relação aos condomínios edilícios, a lei 4.591 de 1964, ainda em vigor, passou a exigir registro prévio e uma série de condições para alienação de unidades imobiliárias futuras em construção, cabendo ao registrador imobiliário a verificação destas condições.
A lei 6.015 de 1973 revolucionou o sistema registral, implantando o sistema das matrículas, que substituíram os livros de transcrições, simplificando sobremaneira o a formalização dos negócios jurídicos imobiliários.
Com a chamada Lei de Parcelamento do Solo, lei 6.766 de 1979, em vigor até os dias atuais, que surgiram as regras mais importantes a respeito do loteamento e parcelamento do solo, com grande preocupação urbanística. Foi esta lei que previu parcela mínima da área loteada a ser destinada ao Poder Público para implantação de equipamentos públicos urbanos, comunitários e área de circulação; vedou parcelamento em determinadas áreas, como, por exemplo, áreas alagadiças, sujeitas a inundações, com declive acentuado e em áreas de preservação ambiental; determinou a observação de aprovações urbanísticas e ambientais rígidas, entre outras medidas.
Apesar da louvável preocupação do legislador, suas regras foram reiteradamente descumpridas, dando origem a loteamentos clandestinos, que nunca obtiveram nenhum tipo de aprovação ou autorização dos órgãos competentes, e irregulares, aqueles que, apesar de aprovados, não foram executados ou foram executados em descompasso com a legislação ou com os atos de sua aprovação, os quais proliferaram ao longo destes mais de 40 anos.
Descumprida a legislação de organização territorial e registral, constata-se a situação de irregularidade fundiária. Para saná-las, faz-se necessário um conjunto de medidas, que são denominadas regularização fundiária, que, historicamente, passou de umas poucas leis municipais até chegarmos a um sistema jurídico organizado com a lei 13.465 de 2017, regulamentada pelo decreto 9.310 de 2018.
Alguns municípios e estados, a partir das décadas de 1970 e 1980, sofrendo com a questão do desenvolvimento informal urbano, a despeito de uma política nacional de regularização fundiária, editaram alguns programas de regularização, instrumentalizados por leis ou até por normativas infra legais.
Por exemplo, no Estado de São Paulo, a Corregedoria Geral da Justiça editou Normas do Serviço Extrajudicial disciplinando a regularização de loteamentos, procedimento feito perante o Juiz Corregedor Permanente do Registro de Imóveis competente, com participação do Ministério Público e exigência de diversos documentos.
Ações de usucapião, historicamente, foram e ainda são amplamente utilizadas como forma de regularização de um imóvel urbano ou rural. Entretanto, observa-se que proporcionam regularização dominial e não há propriamente uma melhora da qualidade de infraestrutura do local, ou preocupação com áreas de risco, problemas sanitários ou ambientais.
Vale lembrar que a própria lei 6.766 de 1979 dispõe sobre um mecanismo de regularização de loteamentos, pelo qual o Município fica responsável por finalizar as obras de infraestrutura, levantando os valores depositados pelas adquirentes dos lotes perante o Registro de Imóveis.
O embrião da Regularização Fundiária no Brasil foi implementado pelo Estatuto das Cidades, lei 10.257 de 2001, que instituiu diretrizes gerais da política urbana, prevendo expressamente a necessidade da regularização em áreas ocupadas por população de baixa renda, com a simplificação da legislação de parcelamento do solo e normas edilícias. Nesta lei também foi introduzida a usucapião especial coletiva, para regularizar áreas ocupadas por grande número de pessoas.
O estatuto da cidade tem louvável iniciativa em estabelecer princípios e objetivos, mas em termos práticos, não ofereceu muito além do que já existia.
Vela lembrar que solução para os imóveis irregulares não deve passar apenas por conferir título de propriedade. Deve também haver significativa melhora das condições de vida da população que habita essas áreas.
Neste contexto, a lei 11.977 de 2009 (alterada pela Lei 12.424 de 2011), conhecida por instituir o Programa Minha Casa Minha Vida, mudou completamente o tratamento da regularização fundiária, causando significativo avanço no tratamento da matéria, na medida em que implementou uma sistematização de procedimentos a nível nacional, apresentando uma política pública consistente, com procedimentos, critérios e instrumentos próprios.
Apesar de vários assentamentos irregulares terem sido regularizados sob a égide da lei 11.977 de 2009, e ela foi revogada pela Medida Provisória 759 de 2016, a qual foi convertida na lei 13.465 de 2017, atualmente em vigor.
Conclui-se, assim, que além de diversos outros fatores, a lenta evolução legislativa que trata de organização territorial e de regularização fundiária propriamente dita é diretamente relacionado com a vasta quantidade de imóveis irregulares existentes em nosso país. Quanto maior o cumprimento desta legislação e o consequente imóveis regulares maior será a contribuição para promoção e garantia do direito à moradia, do desenvolvimento econômico e do cumprimento de função social do imóvel.
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*Saulo de Oliveira Salvador Junior é oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais. Especialista em Direito Notarial e Registral Imobiliário e em Direito Civil. Mestrando em Função Social do Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo.