Navegando por mares jurisprudenciais: Cláusula arbitral - Parte IX
quinta-feira, 27 de março de 2025
Atualizado às 07:38
O Direito Marítimo é especial. É um ramo autônomo do Direito que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que, como visto, mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia, não podem jamais parar.
Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano, ainda que por vezes isso possa passar despercebido pelo cidadão comum.
Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos de Direito Marítimo, à luz da jurisprudência dos Tribunais brasileiros, abordando tópicos de Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima"1 e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria.
Neste artigo, abordaremos o tema das "cláusulas arbitrais" no contexto dos contratos de transporte marítimo. Além disso, apresentaremos dois casos concretos para uma análise mais detalhada e prática do assunto.
Os contratos de transporte marítimo são firmados em larga escala e ao redor de todo o mundo, abrangendo operações complexas que envolvem diversas partes, como armadores, afretadores, operadores portuários e seguradoras. Dada a natureza transnacional dessas relações, é essencial que os envolvidos tenham segurança e previsibilidade quanto às obrigações assumidas e aos meios disponíveis para resolver eventuais disputas.
A incerteza quanto à jurisdição competente ou ao direito aplicável pode gerar custos elevados e comprometer a eficiência das operações. Nesse contexto, a arbitragem se destaca como uma alternativa eficiente, oferecendo um procedimento célere, especializado e adaptado às particularidades do setor marítimo.
A arbitragem é amplamente adotada nos contratos de transporte internacional devido à sua flexibilidade e confiabilidade, além de ser bastante tradicional na seara do direito marítimo. Os tribunais arbitrais costumam ser compostos por especialistas na matéria, o que permite uma análise mais técnica das questões envolvidas, reduzindo riscos de decisões que desconsiderem as práticas comerciais do setor.
No Brasil, a lei de arbitragem (lei 9.307/1996) e o CPC reconhecem a validade das cláusulas compromissórias e estabelecem que a existência de convenção arbitral impede a apreciação da demanda pelo Judiciário, salvo em hipóteses excepcionais. Isso reforça a segurança jurídica dos contratos e a confiança dos agentes do mercado marítimo na arbitragem como um meio eficaz de solução de controvérsias.
Feitas estas considerações iniciais, passaremos a analisar dois julgados constantes no livro de jurisprudência Marítima, os quais abordam sobre o tema das cláusulas de arbitragem nos contratos de transporte marítimo.
Primeiro Julgado:
AÇÃO DE REGRESSO. Seguro. Transporte multimodal de mercadoria. Acidente. Perda total da carga. Arbitragem. Cláusula compromissória estipulada no contrato de prestação de serviços firmado entre a operadora do transporte (ré) e a empresa segurada. Cláusula que também vincula a seguradora (autora). Precedente deste Tribunal. Sentença reformada para julgar extinto o processo sem resolução do mérito, com base no art. 267, VII, do CPC. Recurso provido. (TJ/SP; Apelação 0149349-88.2011.8.26.0100; Relator (a): Tasso Duarte de Melo; 12ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 11/2/15)
Segundo Julgado:
Pretensão regressiva fundada em sub-rogação - Transporte marítimo internacional de cargas - Cláusula compromissória - Sub-rogação legal do segurador, de maneira integral, envolvendo os créditos do qual o credor sub-rogado teria direito, bem como de todas as obrigações, principais e acessórias, decorrentes do contrato - Convenção privada inserida no instrumento por meio da qual as partes se comprometem a submeter previamente à arbitragem os litígios que possam vir a surgir - Competência exclusiva - Arts. 4ª, 8º, 32, I e 33, da lei 9.307/1996 (lei de arbitragem) e art. 853, do Código Civil - Possibilidade de exame pelo Judiciário somente de questões formais, a respeito da validade, existência e nulidade da sentença arbitral (...).
(TJ/SP; Apelação 1009026-77.2015.8.26.0002; Relator (a): César Peixoto; 38ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 17/8/16)
Ao analisar o primeiro julgado, é possível observar a existência da cláusula arbitral no contrato de transporte marítimo, de modo que o Tribunal que a seguradora se subroga nos direitos e ações que competiam ao segurado, em todos os seus limites, incluindo-se, portanto, a cláusula de arbitragem.
Neste sentido, é certo que a decisão em comento está de acordo com o entendimento do STJ no recurso especial de 1.988.894, já tratado em artigo anterior publicado nesta coluna 2, por meio do qual a Quarta Turma da Corte Superior entendeu pela vinculação da seguradora sub-rogada à cláusula compromissória firmada em contrato de transporte.
Isso porque, de acordo com a Corte Superior, a cláusula compromissória não é condição personalíssima da parte segurada e, segundo os art.s 349 e 786 do Código Civil, a sub-rogação transfere os aspectos materiais e processuais da relação originária.
Assim, para que essa transmissão ocorra, é essencial que seja possibilitado à seguradora ter conhecimento prévio da cláusula compromissória no contrato de transporte ao qual se dará cobertura, e tal disposição não implica diminuição dos direitos ou ações da segurada, pois integra o risco segurado.
Além disso, a Corte Superior discorreu, ainda, sobre a impossibilidade de afastamento da cláusula arbitral pelo segurado subrogado, visto que "implicaria submeter as partes do contrato de transporte marítimo ao arbítrio da contraparte na livre escolha da jurisdição aplicável à avença, pois depende única e exclusivamente da seguradora escolhida pelo consignatário da carga 3."
Deste modo, é certo que na subrogação não há uma ampliação do direito, ou seja, não há exclusão das limitações existentes no direito originário, não podendo a seguradora, que decide dar cobertura a um determinado contrato, pretender posteriormente não se vincular aos direitos e obrigações dispostos naquele contrato.
Logo, de acordo com o julgado em estudo, o subrogado não pode adquirir mais direitos que os originalmente transmitidos, visto que a cláusula compromissória prevista no contrato de prestação de serviços vincula igualmente a seguradora.
Sobre isso, é amplo o entendimento do STJ, no qual mantém a posição de que o sub-rogado, por força da sub-rogação, não recebe mais direitos e obrigações do que detinha o segurado. Veja:
AGRAVO INTERNO. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. CONTRATO DE FORNECIMENTO DE MOTORES. DEFEITO NO MOTOR . CONTRATO DE SEGURO. AÇÃO REGRESSIVA. SEGURADORA. CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA PACTUADA ENTRE SEGURADA E UM CONSÓRCIO DE EMPRESAS . 1. A controvérsia reside em saber se a cláusula compromissória instituída no contrato de fornecimento de equipamentos deve produzir seus efeitos na relação jurídica agora existente entre os litigantes da presente ação regressiva, por força da sub-rogação operada pelo art. 786 do Código Civil. 2 . O acórdão recorrido está em consonância com o entendimento da Quarta Turma do STJ, no julgamento REsp 1.988.894/SP, relatora ministra Maria Isabel Gallotti, que, a despeito de a sub-rogação legal em favor da seguradora não importar transmissão automática de cláusula compromissória, a ciência prévia da seguradora a respeito de sua existência no contrato objeto de seguro-garantia resulta na submissão à jurisdição arbitral . 3. No caso dos autos, o acórdão recorrido afirmou que a seguradora tinha conhecimento das regras de contratação. Alterar essa conclusão colidiria com a súmula 7/STJ. Agravo interno improvido.
(STJ - AgInt no AREsp: 2273766 RJ 2023/0001678-6, Relator.: ministro HUMBERTO MARTINS, Data de Julgamento: 3/6/24, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 5/6/24);
AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. TRANSPORTE MARÍTIMO. CONTRATO. CLÁUSULA DE COMPROMISSO ARBITRAL . PERDA DA CARGA. INDENIZAÇÃO SECURITÁRIA À SEGURADA. SUBROGAÇÃO DA SEGURADORA. SUBMISSÃO AO JUÍZO ARBITRAL NA DEMANDA QUE BUSCA RESSARCIMENTO DA CAUSADORA DO SINISTRO . AGRAVO DESPROVIDO. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO. 1. O acórdão objeto do recurso especial concluiu ser da praxe de contratos de transporte internacional que conste a cláusula compromissória arbitral, fazendo parte, portanto, do risco calculado da seguradora, em casos deste jaez, sendo certo ainda que, na espécie, tinha a ora recorrente (seguradora) conhecimento de referida estipulação, o que legitima ser-lhe oponível aquela cláusula . 2. Ao assim decidir, coloca-se em consonância o Tribunal de Justiça com julgados das duas Turmas que compõem a Segunda Seção. 3. Agravo interno desprovido . Recurso especial da seguradora desprovido.
(STJ - AgInt no REsp: 1637167 SP 2016/0294173-4, Relator.: Ministro RAUL ARAÚJO, Data de Julgamento: 26/2/24, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 29/2/24);
AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. TRANSPORTE MARÍTIMO. SEGURO . CLÁUSULA ARBITRAL. SUB-ROGAÇÃO. PRECEDENTE. 1 . A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça assentou que a seguradora se sub-roga nos direitos e ações que competiam ao segurado, incluída a cláusula de arbitragem. 2. Agravo interno não provido.
(STJ - AgInt no REsp: 1958434 SP 2021/0133656-2, Relator.: Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Data de Julgamento: 12/8/24, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 14/8/24);
O segundo julgado reforça a prevalência da cláusula compromissória arbitral em contratos de transporte marítimo internacional de cargas, mesmo em demandas propostas pelo segurador subrogado.
A decisão se alinha à interpretação dos dispositivos da lei de arbitragem (lei 9.307/1996), especificamente os arts. 4º, 8º, 32, I e 33, e do arti. 853 do Código Civil, estabelecendo que o compromisso arbitral deve ser respeitado pelas partes e que o Poder Judiciário somente pode analisar aspectos formais da arbitragem, como validade, existência e nulidade da sentença arbitral.
No caso concreto, a subrogação operada pelo segurador não altera ou afasta a incidência da cláusula compromissória arbitral, uma vez que o subrogado assume integralmente não apenas os créditos originários do credor primitivo, mas também todas as obrigações principais e acessórias, em seus estritos limites, o que inclui a cláusula arbitral.
Veja-se que o julgado destaca que a cláusula arbitral é uma convenção privada entre as partes que, respaldada pela lei, deve prevalecer.
Dessa forma, a decisão também demonstra consonância com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, preservando a autonomia da vontade das partes contratantes e respeitando a aplicabilidade da arbitragem, como no caso das seguradoras sub-rogadas.
Os julgados mencionados, assim como diversos outros envolvendo temas relacionados à figura dos agentes marítimos, estão disponíveis no livro de "Jurisprudência Marítima", que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o direito marítimo.
Para acessar o livro, basta clicar aqui.
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1 Disponível aqui.