Habilitação de condutores e áreas de navegação de esporte e recreio: Hora de ouvir a sociedade?
sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025
Atualizado em 20 de fevereiro de 2025 10:03
Introdução
Há cerca de um ano, publiquei neste espaço um pequeno texto sobre a "carteira de motorista" para a condução de embarcações não-comerciais, ou seja, aquelas que a legislação denomina "esporte e recreio", e seus condutores são denominados "amadores" (Migalhas 5.7801).
Naquela ocasião, anunciei que faltavam quatro meses para que entrassem em vigor as novas normas que passariam a reger a "habilitação náutica". A entrada em vigor destas alterações, no entanto, passou por sucessivos adiamentos - a próxima data prevista é 31/3/25 - de modo que entendo oportuno voltar ao tema. Assim, este artigo recordará brevemente como é e como passaria (ou passará) a ser a regulamentação do tema, seguida de um histórico das várias idas e vindas do tema. Por fim, sugerirei uma nova abordagem na elaboração dessas normas, para aumentar a participação da sociedade no processo de sua elaboração e, sobretudo, conferir maior segurança jurídica ao tema.
Revisitando os conceitos
Na habilitação para conduzir veículos terrestres, o conceito fundamental é de que a categoria (A, B, C, etc.) é determinada pelo tipo de veículo que se pretende conduzir: motos, carros, vans, ônibus, caminhões, etc. Já na habilitação marítima para amadores, o conceito é bem diferente, dizendo respeito à área de navegação, e não ao tipo de embarcação que se pretende conduzir, salvo quanto às motos aquáticas ("jet skis"). As áreas de navegação têm as seguintes definições:
Interior |
Águas abrigadas ou parcialmente abrigadas, como lagoas, lagos, rios, baías e enseadas. |
Costeira |
Dentro dos limites de visibilidade da costa (até a distância máxima de 20 milhas náuticas da costa). |
Oceânica |
Sem restrições (além de 20 milhas náuticas da costa). |
A exceção a este conceito está na habilitação de motonauta, que permite ao seu possuidor exclusivamente a condução de motos aquáticas, que, por definição legal, somente podem ser usadas em navegação interior. A recíproca é verdadeira: mesmo quem tenha as habilitações descritas a seguir não está autorizado a conduzir motos aquáticas. Assim, em resumo: a habilitação para a condução de jet skis é exclusiva da categoria de motonauta, e sua utilização só é permitida em navegação interior.
Portanto, excetuadas as motos aquáticas, para cada uma destas áreas de navegação, corresponde uma categoria de habilitação, que têm o nome, respectivamente, de arrais-amador (habilitado apenas para a navegação interior), mestre-amador (habilitado para navegação interior e costeira) e capitão-amador (habilitado para navegação interior, costeira e oceânica). A obtenção dessas categorias é necessariamente escalonada: para obter a carteira de capitão-amador, é preciso antes obter a de mestre-amador e, para esta, é necessário ter antes a de arrais-amador.
Em paralelo a esta categorização das habilitações, as NORMAM - Normas da Autoridade Marítima preveem a categorização das próprias embarcações, segundo as mesmas áreas de navegação, isto é, interior, costeira e oceânica. Para obter cada uma destas categorias, vale ressaltar, é necessária a adoção de equipamentos de navegação e de segurança, não havendo uma relação direta com o tamanho da embarcação. Por isso, mesmo pequenos veleiros podem ser classificados, a pedido do proprietário, como de navegação oceânica, desde que sejam providenciados todos os equipamentos obrigatórios para essa categoria.
As mudanças efetuadas na regulamentação e seus sucessivos adiamentos
A mudança dessa regulamentação se dá exatamente no conceito fundamental de que tratei acima, ou seja, de que a habilitação do amador é correlacionada à área de navegação e não à embarcação conduzida. É a mudança de um conceito que vem sendo adotado há décadas.
No capítulo 4 (que trata das embarcações, e não das habilitações) da NORMAM 211 - Norma da Autoridade Marítima sobre atividades de esporte e recreio foi inserida uma simples "nota", em meio às tabelas que tratam do material obrigatório para as embarcações, com o seguinte teor:
"Nota: Os itens relacionados nas tabelas dos arts. 4.33, 4.34 e 4.35 são de dotação e porte obrigatórios, em consonância com a classificação da embarcação constante do seu TIE - Título de Inscrição de Embarcação. Portanto, independente da navegação em que a embarcação de esporte e/ou recreio estiver empreendendo, a embarcação deverá dispor de todos os itens citados. Ressalta-se que a habilitação do condutor deverá ser compatível com a classificação da embarcação. Como regra de transição, essa obrigatoriedade passará a vigorar a partir de 1º de junho de 2024."
No artigo citado ao início deste texto, publicado no Migalhas 5.780, fiz uma respeitosa crítica a essa alteração, tanto sob o aspecto formal quanto sob o aspecto material. Para evitar repetições, remeto o leitor àquele artigo.
A mudança teve sua vigência alterada de 1/6/24 para 1/11/24 (portaria DPC/DGN/MB 127, de 24/6/24). A "nota" passou a ter a seguinte redação:
"Nota: Os itens relacionados nas tabelas dos arts. 4.33, 4.34 e 4.35 são de dotação e porte obrigatórios, em consonância com a classificação da embarcação constante do seu TIE - Título de Inscrição de Embarcação. Portanto, independente da navegação em que a embarcação de esporte e/ou recreio estiver empreendendo, a embarcação deverá dispor de todos os itens citados.
Como regra de transição, essa obrigatoriedade passará a vigorar a partir de 1º de junho de 2024. Ressalta-se que a habilitação do condutor deverá ser compatível com a classificação da embarcação. Contudo, essa obrigatoriedade passará a vigorar a partir de 1º de novembro de 2024."
A dotação de equipamentos obrigatórios em razão da classificação da embarcação - e não da área em que está efetivamente navegando - é passível de críticas, que, no entanto, poderão ser objeto de outro texto, pois a proposta aqui é tratar apenas da habilitação.
Não foi divulgado, pela Autoridade Marítima, o motivo de tal adiamento, mas parece evidente que, além das várias dúvidas e perplexidades causadas pela alteração, pesou também a impossibilidade prática de que a própria Marinha pudesse atender, em tempo hábil, a todos os interessados em obter nova habilitação para atenderem à norma.
Em 17/12/24 - após o transcurso do prazo - foi publicada a portaria DPC/DGN/MB 147, com nova postergação, desta vez para 31/3/25. É curioso observar que essa informação só pôde ser confirmada no Diário Oficial da União, pois o link que acompanha a publicação da portaria 147 continua remetendo à redação antiga da NORMAM-211, o mesmo ocorrendo na versão publicada no site da DPC, supostamente atualizada.
Embora possa parecer uma questão menor, a ampla e correta divulgação das normas e suas alterações é parte importante do devido processo legal no Direito Administrativo. Afinal, como um condutor poderia se defender de uma autuação ilegal, se a própria Autoridade Marítima mantém uma versão desatualizada da Norma em seu site?
Se, no artigo anterior, critiquei a insegurança jurídica causada pela forma com que a alteração foi feita - através de uma simples "nota" agregada aos dispositivos numerados da Norma - decerto a situação não melhorou: caso o cidadão procure a informação no site oficial da Diretoria de Portos e Costas, suporá que a alteração está em vigor desde 1/11/24.
De todo modo, apesar destes sucessivos adiamentos, a Autoridade Marítima tem reiterado seu entendimento de que a nova forma de aferir a exigência de habilitação aos amadores poderá contribuir, efetivamente, para a segurança da navegação. No artigo anterior, apresentei críticas quanto ao conteúdo da norma, pois, segundo a opinião corrente na comunidade marítima de esporte e recreio, a nova exigência em nada contribuirá para o aumento da segurança da navegação. Obrigar o condutor de uma embarcação que navega em águas restritas, de enseadas, baías e lagoas, a ter conhecimentos de navegação astronômica ou sobrevivência no mar, por exemplo, é um caso acadêmico de falta de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade pretendida pela norma. Em termos jurídicos, isso significa, claramente, uma falta de razoabilidade da norma. Também critiquei a forma como a alteração foi feita, sem a alteração ou modificação de qualquer item, mas apenas com a inserção de uma "nota" entre eles.
Hora de ouvir a sociedade?
Todas estas idas e vindas da alteração da NORMAM-211, e os problemas na sua divulgação, indicam, a meu ver, um deficit de participação na elaboração da norma. Trata-se, agora, de uma crítica ao modo de elaboração e deliberação da Autoridade Marítima a respeito de assuntos de nítida natureza regulatória.
Desde o processo de desestatização do final da década de 1990, o Direito brasileiro incorporou o instituto das agências reguladoras, que exercem um relevante papel de editar normas infralegais, em setores específicos, como saúde - Anvisa e ANS, telecomunicações - Anatel, aviação civil - Anac, energia elétrica - Aneel, transportes aquaviários - ANTAQ e vários outros. Desde o seu surgimento no Brasil, e incorporando uma experiência de décadas em outros sistemas jurídicos (especialmente europeu e norte-americano), as agências adotam um processo deliberativo com ampla participação da sociedade, colhendo sugestões e elaborando minutas para debate, além de realizar audiências públicas sobre temas que ainda serão objeto de regulamentação. Note-se que não se trata uma "participação popular" no sentido amplo de um plebiscito, referendo ou iniciativa popular, mas de uma participação setorial, da específica comunidade de partícipes das relações jurídicas daquele setor regulado. Para exemplificar, nos processos de elaboração de normas da ANATAQ, são ouvidos armadores, agentes, embarcadores, autoridades portuárias, navais, e outros tantos interessados nos efeitos e desdobramentos da norma que está em elaboração. Naturalmente, todas essas discussões têm acentuado caráter técnico, e justamente por isso devem ter a participação dos envolvidos na aplicação da norma, em vez da elaboração unilateral pela autoridade. Também é certo que a palavra final será do órgão regulador (que, no caso das agências, têm natureza colegiada), mas, historicamente, sugestões da sociedade sempre foram incorporadas, em maior ou menor medida, às normas elaboradas através de um processo participativo, o que demonstra as vantagens desse processo deliberativo.
Quando se observa o fenômeno da regulação jurídica de modo mais amplo, pode-se notar que não surgiu com as agências reguladoras. Muito antes da criação das agências, outros órgãos já exerciam função semelhante, embora sem esse nome, como a CVM - Comissão de Valores Mobiliários, que elabora uma infinidade de normas sobre o funcionamento do mercado de capitais e governança empresarial. Atento a essa realidade, o legislador, através da lei 13.655/18, inseriu dispositivo na LINDB - Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, com o seguinte teor:
Art. 29. Em qualquer órgão ou Poder, a edição de atos normativos por autoridade administrativa, salvo os de mera organização interna, poderá ser precedida de consulta pública para manifestação de interessados, preferencialmente por meio eletrônico, a qual será considerada na decisão.
Entendo, com o devido respeito, que o dispositivo se amolda com perfeição à situação retratada neste artigo. Além das questões relativas à razoabilidade da norma, em si (já tratadas neste texto e no anterior), há consequências sensíveis sobre o mercado náutico de esporte e recreio, que tem grande potencial de crescimento no Brasil, mas não vem recebendo nenhum incentivo. Ao contrário, medidas como essa desestimulam o desenvolvimento dessa atividade.
Sem abrir mão de sua autoridade técnica e da palavra final sobre o conteúdo da norma, creio que a Marinha teria muito a ganhar se abrisse o diálogo com a comunidade marítima de esporte e recreio (marinas, clubes, escolas náuticas, federações de vela, etc.), ou seja, daqueles que vivem diariamente a realidade nas águas navegáveis, que certamente têm suas sugestões de aperfeiçoamento, e gostariam de ser ouvidos.
Fica, então, a modesta e respeitosa sugestão, considerando que a norma ainda não está em vigor, de que seja feito novo adiamento e, em seguida, aberto um processo de escuta da comunidade náutica de esporte e recreio, através de consulta pública e recebimento de sugestões. Quiçá esta experiência com a questão da habilitação dos amadores seja bem-sucedida e, assim, incentive a Marinha a maior abertura para a sociedade na revisão de outras normas relevantes para o Direito Marítimo brasileiro.