Navegando por mares jurisprudenciais: (Parte VIII) - Clube de P&I e a ausência de solidariedade com o armador/transportador
quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025
Atualizado em 12 de fevereiro de 2025 09:18
O Direito Marítimo é especial. É um ramo autônomo do Direito que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que, como visto, mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia, não podem jamais parar.
Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano, ainda que por vezes isso possa passar despercebido pelo cidadão comum.
Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos de Direito Marítimo, à luz da Jurisprudência dos Tribunais brasileiros, abordando tópicos de Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima"1 e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria.
Neste artigo, abordaremos o tema do "Clube de P&I ("P&I Club"), explorando o seu conceito e destacando a ausência de solidariedade entre o Clube e o armador integrante da associação.
Para isso, será analisado o papel dos clubes de P&I no setor marítimo, especialmente na gestão de riscos e na proteção de interesses mútuos dos armadores e transportadores, além de esclarecer os limites de responsabilidade das partes envolvidas.
Os Clubes de P&I, ou seja, Clubes de Proteção e Indenização ("P&I Club - Protection and Indemnity Clubs") funcionam como associações de mútuo-socorro, sem fins lucrativos caracterizadas pela autogestão, constituídas por armadores ou operadores, e afretadores, denominados "membros", cujo objetivo precípuo consiste na proteção mútua contra prejuízos inerentes à navegação, decorrentes de responsabilidade civil perante terceiros2.
Assim, no contexto do Clube de P&I, presume-se a contribuição de cada um dos armadores ou operadores e afretadores, ou seja, de seus "membros", a fim de cobrir prejuízos ou responsabilidades enfrentados por qualquer um dos membros.
Contudo, importante ressaltar que as funções dos Clubes de P&I não se confundem com as atividades desempenhadas pelas seguradoras tradicionais. Isso porque os membros do Clube fazem jus apenas ao reembolso dos prejuízos cobertos, na forma de princípio denominado "pay to be paid", ou seja, apenas quando houver desembolso prévio para realização do pagamento dos valores devidos aos terceiros, seus credores.
Assim, não compete ao Clube o pagamento de indenizações e muito menos garantir o adimplemento dos seus membros perante terceiros3. Dessa forma, os Clubes de P&I não respondem diretamente pelas obrigações assumidas pelo armador ou pelo transportador perante terceiros.
Logo, a responsabilidade perante terceiros é exclusivamente do armador ou transportador, ou seja, de seus membros, que permanecem como a parte diretamente vinculada às obrigações contratuais ou legais, de modo que o Clube funciona apenas como uma ferramenta de apoio ao armador e ao transportador.
Em termos práticos, o Clube de P&I oferece um apoio a seus membros, auxiliando-os na cobertura financeira, na assistência jurídica e na gestão de crises. Lembrando que qualquer vinculação direta com as obrigações assumidas pelo armador perante terceiros foge do escopo de atuação e responsabilidade do Clube.
À vista disso, considerando que os Clubes de P&I não celebram contratos típicos de seguro com seus membros (armadores/transportadores) e que sua obrigação se limita ao reembolso das despesas de seus associados, sem garantia de pagamento direto a terceiros, não há qualquer determinação legal ou contratual que os vincule como responsáveis, seja de forma solidária ou subsidiária, pelos danos causados por seus membros.
A jurisprudência reafirma que a responsabilidade do Clube de P&I se limita às suas funções de representação, não se estendendo a eventuais obrigações de reparação decorrentes de atos dos armadores e transportadores.
Feitas estas considerações iniciais, passaremos a analisar dois julgados constantes no livro de Jurisprudência Marítima, os quais abordam sobre a questão da inexistência de solidariedade entre o Clube de P&I e o armador/transportador.
Primeiro julgado:
Agravo de instrumento - Ação ordinária de indenização - Cumprimento de sentença - Pretensão da credora de redirecionamento da execução - Descabimento - Clube de P&I que se caracteriza como associação de armadores/transportadores marítimos que atuam no sentido de dar proteção mútua aos associados no exercício de suas atividades de transportadoras de cargas via marítima - Não verificada a existência de vínculo jurídico entre as partes que pudesse autorizar sua inclusão no polo passivo, a fim de ser responsabilizado pelo pagamento do débito - Ademais, não há como estender a coisa julgada para parte que sequer figurou na demanda original - Decisão mantida - Recurso desprovido.
(TJ/SP; agravo de instrumento 2254137-84.2018.8.26.0000; Relator (a): Sergio Gomes; 37ª câmara de Direito Privado; j. 31/1/19)
Segundo julgado:
APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO MARÍTIMO. AÇÃO DECLARATÓRIA. SEGURADORA. PEDIDO DE RECONHECIMENTO DE SOLIDARIEDADE DO CLUBE DE PROTEÇÃO E INDENIZAÇÃO (P&I CLUB) DEMANDADO E O ARMADOR INTEGRANTE DA ASSOCIAÇÃO. IMPROCEDÊNCIA. (...) 3.1. O cerne da controvérsia reside em definir se a ré, assim entendida como associação de mútuo auxílio formada por armadores/transportadores, pode ser considerada devedora solidária de um de seus membros em condenação judicial oriunda de sinistro envolvendo o transporte marítimo de cargas. Com efeito, busca a parte autora ver reconhecida a qualidade de seguradora da ré e, assim, obter a sua responsabilização direta pelas obrigações inadimplidas pelo segurado. 4. P&I Club. Clube de proteção e indenização de natureza associativa dirigida ao mútuo auxílio econômico-financeiro formada por armadores/transportadores de carga por via marítima, que tem por objeto "segurar, mutuamente, responsabilidades, perdas, custos e despesas incorridos pelos membros com relação direta à operação das embarcações registradas na associação e participar de outras atividades relacionadas". De outro lado, a relação jurídica que se pretende ver reconhecida tem sua origem numa relação jurídica de Direito Processual, surgida no processo 07212934-07.2000.8.06.0001, entre a autora e um dos membros do Clube de proteção e indenização constituído pela ré. Trata-se de um direito de crédito originado de ônus processual imposto ao armador membro do Clube de P&I e réu naquela ação, em decorrência de sua sucumbência nos autos da demanda regressiva movida pela cliente da sociedade de advogados-autora. (...) 7. Por fim, como já descrito alhures, o vínculo jurídico que liga o armador (causador do dano) e a ré não constitui liame contratual bilateral, como ocorre nos contratos de seguro, entre a seguradora e o segurado. Antes, cuida-se de vínculo associativo entre particulares que constituem uma corporação de mútuo auxílio. Resulta dessa forma de organização algumas regras próprias que se distinguem sobremaneira daquelas vigentes nos contratos de seguro de dano tradicionais. A primeira delas diz respeito à forma de contribuição para a associação, que diversamente das prestações pagas nos contratos de seguro, servem exclusivamente para constituir um fundo garantidor, que eventualmente, pode ser suplementado pelas designadas "chamadas" ou calls (regra 13 do estatuto da ré - fl. 380), no caso de necessidade de cobrir eventos que superem o montante do fundo. Uma vez que caso tais contribuições superem o sinistro, os valores aportados pelos membros são reembolsados (regra 17 do estatuado da ré - fl. 381). Por seu turno, no caso dos prêmios pagos à seguradora, além de remunerarem a própria atividade desempenhada pela seguradora, vige o princípio da indivisibilidade do prêmio, que preconiza que os riscos devem ser considerados não isoladamente - tal como no caso dos P&I Clubs - mas no seu conjunto, pois os riscos não se distribuem igualmente por todo período de vigência do contrato. (...) De outro lado, nos P&I Clubs, a regra associativa consubstancia-se no dever de ressarcimento do membro integrante do Clube. A norma cristaliza-se a partir do axioma pay to be paid, ou em tradução livre, "pague para ser pago", isto é, o dever de ressarcir institui-se em relação ao próprio integrante do Clube e somente a partir do momento em que ele efetua o pagamento da indenização ao terceiro, terá direito ao reembolso. Regra 87 do estatuto da associação. Como se pode notar, sob qualquer aspecto que se analise a questão, a pretensão autoral está fadada ao insucesso. 9. Sentença mantida. 10. Recurso desprovido. Majoração dos honorários advocatícios, nos termos do art. 85, §11 do NCPC.
(TJ/RJ, apelação cível 0189045-59.2016.8.19.0001, Órgão julgador 6ª câmara Civel; des. Relatora Teresa de Andrade, data do julgamento: 23/5/18)
Observa-se que, no primeiro julgado, o TJ/SP reforça a inexistência de responsabilidade solidária do Clube de P&I em relação aos atos de seus associados (armadores/transportadores).
Isso porque, inexiste vínculo jurídico entre o Clube de P&I e seus membros que justifique a sua inclusão no polo passivo da demanda, considerando que o escopo de sua atividade é "limitado a dar proteção mútua aos associados no exercício de suas atividades de transportadoras de cargas via marítima4". Desse modo, o Tribunal Estadual concluiu que não é possível estender os efeitos da coisa julgada a uma parte que não integrou a demanda original.
Quanto ao segundo julgado, pode-se observar que o TJ/RJ bem aborda a natureza e a dinâmica dos Clubes de P&I e reforça a inexistência de responsabilidade solidária do Clube em relação aos atos dos seus membros.
Para tanto, o TJ/RJ destaca que a organização dos Clubes de P&I possuem particularidades que se distinguem daquelas vigentes nos contratos de seguro tradicionais, sendo tais fatores determinantes para o afastamento da sua responsabilidade perante terceiros em relação aos danos causados pelos seus membros (armadores/transportadores).
Entre tais fatores, destaca-se o fato de que os Clubes de P&I funcionam como associações de mútuo-socorro, sem fins lucrativos, em que se pressupõe a contribuição de todos os seus membros, por meio da constituição de um "fundo garantidor" para diluição dos prejuízos suportados por cada um deles.
O TJ/RJ também reforçou uma das principais obrigações existentes entre os Clubes de P&I e seus membros, qual seja a existência do princípio "pay to be paid", conforme acima narrado, o qual estabelece que o direito ao reembolso dos prejuízos sofridos pelo integrante do Clube somente nasce a partir do momento em que ele efetua o pagamento da indenização ao terceiro, inexistindo, portanto, vínculo material entre o Clube de P&I e a suposta vítima do dano.
Como se verifica, a inexistência de solidariedade entre o Clube de P&I e o armador/transportador é amplamente reconhecida pela jurisprudência pátria e também já foi tema de outros interessantes artigos publicados nesta coluna especializada, entre outros.5
Os julgados mencionados, assim como diversos outros envolvendo temas relacionados aos temas de Direito Marítimo e de Clubes de P&I, estão disponíveis no Livro de Jurisprudência Marítima, que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o direito marítimo.
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*Coletânea de artigos sobre temas de Direito Marítimo à luz das decisões dos Tribunais brasileiros sob a coordenação de Lucas Leite Marques e Marina Falcão Oliveira.
1 Disponível aqui.
2 Conceito disponível aqui. fl. 173.
3 "(...) uma pessoa pode pertencer a uma sociedade (como um Cube P&I) cujas regras não lhe garantem o direito a uma indenização, mas apenas a contribuições de outros membros para suas perdas. Uma vez que a essência do contrato de seguro é que o segurado deve ter o direito a uma indenização, parece que, neste caso, não pode haver um contrato de seguro." (Tradução livre: MCGILLIVRAY; PARKINGTON. Insurance Law. 8th ed. Londres: [s.d.], 1998) No original: "(.) a person may belong to a society (such as a P. & I. Club) whose rules do not entitle him to an indemnity but only to contributions from other members towards his loss. Since the essence of a contract of insurance is that the insured should be entitled to an indemnity, it seems that in such a case there cannot be a contract of insurance."
4 TJ/SP; Agravo de Instrumento 2254137-84.2018.8.26.0000; Relator(a): Sergio Gomes; 37ª câmara de Direito Privado; j. 31/1/19