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Navegando por mares jurisprudenciais: (Parte VII) - Carga refrigerada

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

Atualizado às 08:08

O Direito Marítimo é especial. É um ramo autônomo do Direito que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que, como visto, mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia, não podem jamais parar.

Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano, ainda que por vezes isso possa passar despercebido pelo cidadão comum.

Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos de Direito Marítimo, à luz da jurisprudência dos Tribunais brasileiros, abordando tópicos de Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima"1 e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria.

Neste artigo, abordaremos sobre o tema "carga refrigerada" no contexto do transporte marítimo, explorando especialmente a questão da responsabilidade civil do transportador marítimo. Para tanto, apresentaremos dois casos concretos permitindo uma análise mais detalhada e prática sobre o assunto.

Quando se trata de responsabilidade civil, seja ela objetiva ou subjetiva, é importante considerar os três requisitos essenciais para a sua configuração, são eles: o ato ilícito, o dano e o nexo de causalidade. Contudo, é de extrema importância destacar que sem a existência do nexo de causalidade entre o fato e a conduta do agente, não há responsabilidade configurada à espécie.

Nesse sentido, são os ensinamentos de Caio Mario da Silva Pereira:

"Cabe, todavia, não levar a extremo de considerar que todo dano é indenizável pelo fato de alguém desenvolver uma atividade. Aqui é que surge o elemento básico, a que já acima me referi: a relação de causalidade. Da mesma forma que na doutrina subjetiva, o elemento causal é indispensável na determinação da responsabilidade civil, também na doutrina objetiva o fenômeno há de ocorrer. A obrigação de indenizar existirá como decorrência natural entre o dano e a atividade criada pelo agente. O vínculo causal estabelecer-se-á entre um e outro. Num dos extremos está o dano causado. No outro, a atividade causadora do prejuízo".

A lição nos ensina que, independentemente do regime de responsabilidade civil, seja objetiva ou subjetiva2, em nenhum momento o lesado fica dispensado de comprovar a relação de causalidade entre a conduta do agente e o evento danoso, a fim de que se configure o dever de reparação.

Se a demonstração do nexo de causalidade fosse ignorada ou mesmo dispensada, estaria sendo adotado o regime do risco integral e automático, o que é incompatível com o ordenamento jurídico pátrio, sobretudo nas hipóteses de responsabilidade por avaria de carga no transporte. 

Essa premissa é especialmente relevante quando tratamos do transporte de cargas refrigeradas. As especificidades dessa carga exigem um cuidado redobrado, pois qualquer falha na manutenção das condições adequadas de temperatura pode gerar danos, que somente serão atribuídos ao transportador caso seja comprovado o nexo de causalidade entre o seu ato e o prejuízo sofrido.

Por outro lado, o dano também pode, em alguns casos, ser decorrente de conduta diretamente atribuída ao embarcador. Nessas situações, o nexo de causalidade entre a conduta do transportador e o dano sofrido pela carga é rompido, afastando a responsabilidade do transportador. Isso pode ocorrer, por exemplo, em casos em que o embarcador não forneça informações precisas sobre as condições em que a carga deva ser transportada, em situações em que a carga já é embalada em avançado estado de maturação ou, ainda, se a carga for inadequadamente embalada, comprometendo sua integridade durante o transporte.

Essas falhas, quando identificadas como causa direta do prejuízo, excluem o dever de reparação do transportador, visto que o evento danoso não se relaciona com sua conduta. Portanto, a responsabilidade do transportador só se configura quando o dano resulta diretamente da sua atuação negligente ou inadequada, e não quando é provocado por falhas imputáveis ao embarcador ou à própria natureza do produto entregue para o transporte.

Essa distinção entre a responsabilidade do transportador e a do embarcador é fundamental para evitar a transferência indevida de responsabilidade e assegurar que a parte efetivamente responsável pelo dano seja a que deve arcar com os custos da reparação.

Feitas estas considerações iniciais, passaremos a analisar dois julgados constantes no livro de Jurisprudência Marítima, os quais abordam sobre a questão da responsabilidade civil do transportador, especialmente em se tratando de cargas refrigeradas.

Primeiro julgado:

INDENIZAÇÃO. Contrato de transporte - Carga perecível (frutas) Conhecimento de transporte não faz menção à necessidade de abertura do sistema de ventilação necessária para conservação da mercadoria. Tempo de duração da viagem compatível com o limite tolerável para conservação das frutas. Temperatura no interior do "container" adequada e de acordo com a recomendação do exportador. Causas prováveis da avaria, apuradas pela perícia, consistiram em infestação fúngica e polpa com consistência mole, bem como falta de ventilação, para troca de gases no interior do ''contêiner''. Frutas foram embarcadas em provável processo de maturação - Exportador, que não instruiu, adequadamente, os funcionários da transportadora, no sentido de ser acionado sistema de ventilação no interior do contêiner para conservação das frutas - Responsabilidade objetiva do transportador excluída.

(TJ/SP, AC: 9096749-19.2006.8.26.0000, relator: Plinio Novaes de Andrade Júnior, 24ª câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 24/11/11)

Segundo julgado:

AÇÃO DE INDENIZAÇÃO TRANSPORTE MARÍTIMO - IMPROCEDÊNCIA.
Apelação. Avaria em carga alegada maturação de peras durante o transporte
marítimo, por acondicionamento em temperatura inadequada. Falta de provas
nesse sentido, inclusive do momento em que ocorreu a avaria. Impossibilidade
de se reconhecer a responsabilidade da apelada. Sentença mantida. Art. 252
do regimento interno do TJ/SP - A sentença deve ser confirmada por seus
próprios e bem deduzidos fundamentos, os quais ficam inteiramente adotados
como razão de decidir, nos termos do art. 252 do regimento interno deste
Egrégio Tribunal de Justiça. Recurso não provido.

(TJ/SP, AC: 0053367-24.2008.8.26.0562, relator: Marino Neto, 11ª câmara de
Direito Privado, Data de Publicação: 27/2/13)

Pode-se observar que, no primeiro julgado, o TJ/SP conclui que, embora a responsabilidade do transportador seja objetiva, a falha do embarcador em fornecer as devidas instruções quanto à ventilação adequada do contêiner causou diretamente os danos à carga, afastando a responsabilidade do transportador.

O acórdão destaca que a carga foi embalada sem qualquer interferência do transportador e com a recomendação de ser conservada a 0,5ºC, porém, não constou qualquer solicitação para abertura do sistema de ventilação do contêiner, para conservação das frutas transportadas.

Dessa forma, o entendimento do Tribunal é que não há responsabilidade atribuída à transportadora pelos danos verificados nas frutas transportadas, vez que o prejuízo ocorreu por culpa exclusiva do exportador, que não instruiu, adequadamente, os prepostos da transportadora, sobretudo considerando-se que durante todo o período do transporte marítimo, a unidade foi alimentada com uma refrigeração exata a 0,5º C.

Acerca da questão dos vícios de embalagem e falhas do embargador na preparação adequada da carga a ser destinada a transporte, vide interessante artigo3 publicado anteriormente nesta coluna.

No segundo julgado, observa-se que o TJ/SP novamente reconhece a ausência de responsabilidade da transportadora pelos danos à carga, ressaltando que cabe à importadora evidenciar que os prejuízos ocorreram em decorrência do transporte, conforme o que determina o art. 373, I, do Código de Processo Civil, o que não foi comprovado.

O acórdão identifica que a importadora optou por desistir da fiscalização aduaneira que seria realizada logo após a descarga da carga, assumindo assim os riscos dessa decisão. Ademais, reconhece que a inspeção realizada pela autora foi feita muito tempo após a entrega da mercadoria e de forma unilateral e parcial, comprometendo a veracidade dos fatos alegados.

Com isso, o TJ/SP concluiu que, sem a comprovação do nexo causal entre a conduta da transportadora e os danos alegados, não seria possível responsabilizá-la, sobretudo quando a temperatura da unidade de carga foi mantida sob a refrigeração indicada durante todo o período do transporte, tendo as oscilações de temperatura ocorrido em períodos fora da etapa marítima, quando a carga não se encontrava sob custódia do transportador marítimo.

Os julgados mencionados, assim como diversos outros envolvendo temas relacionados, estão disponíveis no Livro de Jurisprudência Marítima, que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o Direito Marítimo.

Para acessar o livro, basta clicar no link: https://www.kincaid.com.br/livro-de-jurisprudencia-maritima/


*Coletânea de artigos sobre temas de Direito Marítimo à luz das decisões dos Tribunais brasileiros sob a coordenação de Lucas Leite Marques e Marina Falcão Oliveira.

1 Disponível aqui.

2 E trazendo reflexões provocativas a respeito da responsabilidade civil do transportador marítimo, podemos citar interessante artigo publicado anteriormente nesta coluna: disponível aqui.

3 Disponível aqui.