Navegando por mares jurisprudenciais: (Parte IV) Arresto de embarcação
quinta-feira, 14 de novembro de 2024
Atualizado em 13 de novembro de 2024 07:46
O Direito Marítimo é especial. É um ramo autônomo do Direito, que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que, como visto, mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia, não podem jamais parar.
Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano, ainda que por vezes isso possa passar despercebido pelo cidadão comum.
Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos de Direito Marítimo, à luz da Jurisprudência dos Tribunais Brasileiros, abordando tópicos de Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima"1 e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria.
Deste modo, trataremos neste artigo sobre o tema de arresto de navios, retratando um pouco sobre o seu conceito e trazendo dois casos concretos para uma análise mais aprofundada.
Primeiramente, destaca-se que o Brasil é tradicionalmente visto como um país de carga, recebendo em seus portos e vasto litoral diversos navios de bandeira estrangeira, registrados o exterior. Diante disso, em razão da preferência pelo registro de embarcações fora do país, aumenta-se gradativamente o risco de inadimplemento de eventuais créditos em face de tais navios ou seus proprietários, acabando por dificultar a cobrança dos credores nacionais pelos créditos advindos de obrigações frente à embarcação estrangeira, sendo o arresto de embarcação marítima um importante remédio para acautelar tal situação, na medida em que o suposto devedor não teria outro bem no país, se não o próprio navio.
É sabido que o referido conceito é regido no Brasil através do CCB - Código Comercial Brasileiro de 1850, mais precisamente em seus arts. 470, 471, 474, 479 e 482, que autorizam o arresto de navio em situações determinadas.
Em razão da evolução doutrinária e jurisprudencial sobre a matéria, foi criado um projeto lei do Senado 487/13 para substituição do antigo CCB, visando incorporar os julgados e entendimentos já consolidados ao longo de todos esses anos.
Além disso, nota-se que ainda há discussão em aberto para que o Brasil possa ratificar a Convenção de Arresto de 1999, que visa aumentar o alcance da legislação processual brasileira no que refere à matéria de arresto de navios (podendo ser chamado também de embargo/retenção/detenção/apreensão), bem como tornar o Brasil um lugar propício a credores nacionais e estrangeiros para que possam buscar efetividade a seus créditos em face de embarcações que se encontrem em águas jurisdicionais brasileiras, fomentando serviços a serem prestados no país.
O tema do arresto de embarcações já foi bem retratado por outros artigos anteriormente publicados nessa coluna2, razão pela qual, no presente, passaremos a analisar dois julgados constantes no livro de Jurisprudência Marítima que abordam questões importantes em casos envolvendo demandas de arresto, como a prestação de caução/garantia para a liberação do navio e a indenização por arresto indevido ("wrongful arrest").
Primeiro julgado:
"Do exame das alegações da requerente, em cotejo com os documentos juntados à inicial, em especial os de fls. 532/549 e fls. 227/251, consistentes em mensagens eletrônicas trocadas entre os litigantes e planilha indicando o montante devido pela requerida a título de despesas com custeio da embarcação, convenci-me de que estão presentes os requisitos autorizadores à concessão da medida liminar requerida. Ante o exposto, CONCEDO A LIMINAR para determinar que a requerida se abstenha de ausentar o navio 'ATREK' de águas territoriais brasileiras sem autorização deste juízo, sob pena de multa diária de R$ 100.000,00 (cem mil reais), até que a requerida preste caução idônea no valor de R$ 3.641.421,91 (três milhões seiscentos e quarenta e um mil quatrocentos e vinte e um reais e noventa e um centavos)."
(TJRJ, Cautelar Inominada 0464487-86.2012.8.19.0001, 6ª Vara Empresarial da Capital, Juíza Maria Cristina de Brito Lima, em 04/12/12).
Segundo julgado:
"RECURSO ESPECIAL (ART. 105, INC. III, "a", CF/88) - AÇÃO CONDENATÓRIA - DANOS DECORRENTES DA EXECUÇÃO DE MEDIDA CAUTELAR - INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS QUE JULGARAM IMPROCEDENTE O PEDIDO, SOB O FUNDAMENTO DE AUSÊNCIA DE ATO ILÍCITO. INSURGÊNCIA DA DEMANDANTE. Hipótese: Possibilidade de responsabilização da parte por prejuízos decorrentes do deferimento de cautelar preparatória, consubstanciada na retenção de embarcação por longo período, dada a posterior extinção do processo principal sem julgamento de mérito por força de cláusula compromissória arbitral. (...)
Os ônus pelos danos decorrentes da medida cautelar relacionam-se com circunstâncias posteriores à decisão liminar, sobretudo, no que tange à confirmação ou não do direito de pronto salvaguardado, que nunca se viabiliza, por óbvio, se não o perseguir a parte requerente da tutela de urgência, razão pela qual a norma processual lhe impõe um dever a esse respeito. 2. É entendimento desta Corte Superior que, por força da responsabilidade processual objetiva disciplinada nos artigos 811 c/c 808 do Código de Processo Civil de 1973, baseada na assunção do risco pela parte requerente, os danos causados com a execução de cautelar devem ser indenizados uma vez cessada a eficácia da medida pela extinção do processo principal, com ou sem julgamento do mérito."
(STJ; REsp 1.641.020; relator Min. Marco Buzzi; 4ª turma, j. 15.09.20)
No primeiro julgado, observa-se que a exigência de caução para a liberação da embarcação atua como uma garantia tanto para o cumprimento da obrigação quanto para a eventual indenização por possíveis danos. O montante da caução está diretamente vinculado ao alto valor desses bens e às suas implicações comerciais e econômicas. Ademais, a caução idônea preserva o equilíbrio entre o direito do credor, que busca assegurar o pagamento da dívida, e o direito do proprietário da embarcação, cujo bem é essencial para suas atividades comerciais e pode ser significativamente impactado.
Neste segundo julgado, verifica-se que o arresto foi indevidamente efetuado em virtude da existência cláusula compromissória arbitral, o que levou à extinção do processo sem resolução de mérito. Nesse contexto, observa-se que o longo período em que a embarcação permaneceu arrestada causou consideráveis prejuízos ao proprietário. Em razão disso, o proprietário teve direito à reparação pelos danos sofridos, com o objetivo de restabelecer o equilíbrio e compensar as perdas decorrentes do arresto indevido, na forma prevista pelo CPC.
Diante das decisões mencionadas, nota-se que ambos os julgados ressaltam a importância de garantir o equilíbrio entre as partes em processos de arresto de embarcações. No primeiro, a exigência de caução serve como uma proteção tanto para o credor quanto para o devedor, assegurando que, em caso de eventual improcedência do arresto, o proprietário seja ressarcido por possíveis danos. No segundo, a realização de um arresto indevido, devido à presença de cláusula compromissória arbitral, resultou em prejuízos que exigiram indenização. Em ambos os casos, destaca-se a necessidade de precaução jurídica ao se utilizar o arresto, de modo a evitar desequilíbrios e injustiças que possam prejudicar os direitos das partes envolvidas.
O conceito do arresto é secular e reconhecido pela jurisprudência pátria. Os julgados mencionados, assim como diversos outros envolvendo o tema de arresto, estão disponíveis no Livro de Jurisprudência Marítima, que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o direito marítimo. Para acessar o livro, basta clicar aqui.
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