Navegando por mares jurisprudenciais: Parte III - Afretamento
quinta-feira, 10 de outubro de 2024
Atualizado às 09:44
As atividades do setor marítimo, além de possuírem uma dinâmica própria, são essencialmente contínuas e não podem ser interrompidas. O Direito Marítimo, como não poderia deixar de ser, por sua vez, revela essa especialidade. É um ramo autônomo do Direito, que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia não pôde jamais parar. Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano.
Diante de tamanha relevância, buscamos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos de Direito Marítimo, à luz da jurisprudência dos tribunais brasileiros, abordando tópicos de Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima" 1 e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria.
Trataremos, neste artigo, o tema do "Afretamento", retratando o conceito desse contrato marítimo e trazendo um caso concreto para uma análise mais aprofundada.
O "Afretamento", ou "Fretamento" é o contrato por meio do qual o fretador cede ao afretador, por um certo período, direitos sobre o uso da embarcação. Nesse sentido, o afretamento configura-se, em síntese, pela disponibilidade comercial de determinada embarcação a outrem.
Nesse contexto, a ilustre profª Eliane M. Octaviano Martins (2008, p.1782) leciona que a principal obrigação do fretador, independentemente da modalidade do contrato de afretamento, é disponibilizar a embarcação, em data e local convencionados e perfeito estado de navegabilidade. Já as principais obrigações do afretador, independentemente da modalidade3, são pagar o frete ("hire" ou "taxa diária")4, além de receber o navio e restituí-lo em condições, lugar e prazos convencionados.
Corroborando o que se afirma, a doutrina especializada e a jurisprudência5 reconhecem que o afretamento dá ao afretador o "controle operacional dos navios"6, assumindo a gestão comercial da embarcação e a responsabilidade pela alocação dos riscos do negócio durante o período contratual.
Dito isso, é importante ressaltar que os contratos de afretamento contêm cláusulas que isentam o afretador da obrigação de pagar as taxas diárias em situações específicas, conhecidas como "off-hire-clause" (ou "downtime"). A cláusula off-hire dispõe que o aluguel deixará de ser pago quando o navio não estiver disponível para utilização, isto é, quando o navio deixar de atender às condições acordadas.
Usualmente, qualquer causa imputável pelo fretador, que torne a embarcação indisponível para o afretador, autoriza a suspensão do pagamento do frete. Por esta cláusula, há, portanto, uma redistribuição do risco por perda de tempo ou impossibilidade de uso da embarcação, com o fretador assumindo esse risco.
No direito brasileiro, a "off-hire clause" não possui natureza jurídica de cláusula penal, tratando-se, em verdade, de uma dedução no valor do aluguel em razão da ausência de prestação de serviço, sem caracterizar qualquer penalidade ao fretador. Tal hipótese encontra amparo legal na exceptio non adimpleti contractus, consagrada no art. 476 do CC7, que engendra ser vedado, nos contratos bilaterais, ao contratante inadimplente exigir o cumprimento da obrigação da outra parte antes de cumprir a sua própria. Assim, com base no princípio da equidade, o fretador que não cumpriu sua obrigação não pode exigir o cumprimento por parte do afretador.
Ainda sobre a disciplina dos contratos de afretamento, a doutrina especializada afirma que os contratos de afretamento, quando voltados às atividades do setor de petróleo e gás, obedecem à lex petrolea8, padronizando os usos transnacionais praticados no setor. Assim, somam-se às práticas e costumes do contrato de afretamento as especificidades da atividade exploratória de óleo e gás.
Nesse sentido, embora os contratos de afretamento geralmente prevejam que o afretador não está obrigado a pagar o aluguel quando o navio estiver indisponível para prestação de serviços, há situações em que essa indisponibilidade não pode ser atribuída aos fretadores, especialmente considerando especificidades da atividade exploratória do setor petrolífero e de gás. Nesses casos, devido à lógica da lex petrolea e a prática consolidada na indústria de exploração e produção de petróleo e gás, compete à afretadora a absorção dos riscos do negócio, em virtude de seu papel protagonista na faina exploratória, levando, em certas hipóteses à inaplicabilidade da cláusula "off-hire clause" em sua amplitude tradicional.
Feitas estas considerações iniciais, passaremos a analisar um julgado recente constante no livro de Jurisprudência Marítima, no qual se analisou a obrigação de a afretadora pagar as taxas diárias do contrato de afretamento durante os períodos de suspensão das atividades operacionais exploratórias devido à contaminação dos tripulantes pela Covid-19.
Julgado:
Apelação cível. Ação de tutela cautelar em caráter antecedente. Contrato de afretamento de embarcação do tipo RSV. Alegação de downtime indevido aplicado pela empresa afretadora pela ocasião de contaminação de colaboradores pela covid-19. Permanência da embarcação fundeada ou em porto para testagem de colaboradores. Negativa de pagamento das taxas diárias de fretamento por parte da afretadora. Sentença que julgou procedente o pedido autoral. Determinação para pagamento das taxas diárias à empresa fretadora. Inviabilidade jurídica de se atribuir a fretadora a responsabilidade em relação aos fatos que ensejaram a paralisação de suas atividades. Interpretação dos itens 2.1 e 2.3 do anexo ii-a do contrato de afretamento. Não pagamento indevido de taxas diárias à fretadora (downtime). Sentença devidamente fundamentada. Correta interpretação do contrato. Recurso desprovido.
(TJRJ, AC 0296919-64.2020.8.19.0001, Des. Cláudio Brandão de Oliveira, 7ª Câmara Cível, DJe: 15/3/23)
No caso mencionado, observa-se que o ponto central da discussão é a tentativa de a afretadora aplicar a "off-hire clause" ("downtime"), suspendendo integralmente o pagamento das taxas diárias previstas no contrato de afretamento por um período de um pouco mais de 8 dias, devido à indisponibilidade da embarcação causada pela necessidade de testagem de toda a tripulação em razão da Covid-19.
Conforme previsto no contrato, o "downtime" se aplica apenas às situações de desempenho inferior ao previsto na proposta da fretadora ou em atrasos e falhas atribuíveis à fretadora ou a terceiros solidários, o que não ocorreu nesta hipótese. A suspensão das operações foi provocada por dificuldades relacionadas ao coronavírus, circunstâncias totalmente imprevisíveis no momento da assinatura do contrato de afretamento e que não podem ser imputáveis à fretadora, sendo, e verdade, um risco da atividade econômica desenvolvida pela afretadora.
Sendo assim, ante a ausência de responsabilidade da fretadora e conforme a lógica de alocação de riscos da lex petrolea, o pagamento das taxas diárias é devido pela afretadora.
Diante do exposto, constata-se que a indisponibilidade da embarcação em decorrência dos efeitos da Covid-19 não pode ser imputada ao fretador, não havendo fundamento para a aplicação da "off-hire clause" e a consequente suspensão automática do pagamento das taxas diárias.
O julgado mencionado, assim como diversos outros envolvendo o tema de afretamento, estão disponíveis no livro de Jurisprudência Marítima, que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o direito marítimo.
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1 Livro de Jurisprudência Marítima. Disponível aqui.
2 OCTAVIANO MARTINS, Eliane M. Curso de direito marítimo. Barueri: Manole, 2008.v. 2
3 Os principais tipos de contratos de afretamento são: casco nu, por período (ou por tempo) ou por viagem. O afretamento a casco nu é aquele em que o fretador cede ao afretador os direitos de exercer a gestão náutica e também a gestão comercial do navio. No afretamento a casco nu o afretador tem não apenas o direito de estabelecer a programação comercial que o navio irá cumprir durante o período do contrato, mas também tem a incumbência de armar e tripular a embarcação para permitir que as operações do navio sejam realizadas. O afretamento por período, ou também afretamento por tempo é aquele em que o fretador cede ao afretador, por certo período de tempo, a gestão comercial da embarcação, mantendo consigo a gestão náutica. Neste contrato, enquanto é o afretador quem define a programação comercial que o navio irá cumprir, a armação do navio continuará sendo providenciada pelo fretador. O afretamento por viagem, por sua vez, tem a mesma conceituação que o afretamento por período. No entanto, tendo em vista que a duração deste tipo de contrato é de somente uma ou algumas viagens específicas, a gestão comercial do navio é transferida ao afretador apenas parcialmente, e por isso, o exercício dos poderes comerciais pelo afretador são limitados, quando comparados a um afretamento por período. Contratos de afretamento de embarcação. Disponível aqui. Acesso em: 30 set. 2024.
4 Nas palavras de Paulo Campos Fernandes, "em princípio o afretador é obrigado a pagar aluguel, continuamente, durante a vigência do contrato de afretamento". (2007, p. 241)
5 "(...) NOS CONTRATOS DE FRETAMENTO MARÍTIMO TIME CHARTER (TCP) COMPETE À FRETADORA ZELAR PELA FUNCIONALIDADE DA EMBARCAÇÃO APRESTADA, ASSUMINDO A AFRETADORA A GESTÃO COMERCIAL DA EMBARCAÇÃO DURANTE O PERÍODO PREVISTO CONTRATUALMENTE. DEVER DA AFRETADORA DE HONRAR COM O CUSTEIO DO COMBUSTÍVEL UTILIZADO PELA EMBARCAÇÃO AFRETADA, SALVO SE ULTRAPASSAR AO CONSUMO BÁSICO, QUANDO DEVERÁ A FRETADORA PAGAR PELO EXCESSO (...)". (TJRJ, Apelação Cível nº 0418985-85.2016.8.19.0001, 9ª Câmara Cível, Rel. Des. LUIZ Felipe Miranda de Medeiros Francisco, j. em 02/10/2018)
6 Stopfor, Martin. Economia Marítima. 3ª ed. São Paulo: Blucher, 2017, p.223.
7 Art. 476. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro.
8 O "papel central no surgimento e afirmação da lex petrolea" é atribuído à conferência proferida pelo Professor Ahmed El Kosheri na Academia de Direito Internacional da Haia em 1975 (cf. BARROS, João António Fernandim Fernandes de. Da lex mercatoria à lex petrolea: a afirmação de uma ordem jurídica autónoma. Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Lisboa, 2017, p. 59).