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Navegando por mares jurisprudenciais: (I) Abalroamento entre embarcações

quinta-feira, 18 de julho de 2024

Atualizado em 10 de julho de 2024 13:26

O Direito Marítimo é especial. É um ramo autônomo do Direito, que disciplina operações relacionadas ao transporte marítimo, de cargas ou passageiros, englobando atividades que, como visto, mesmo nos mais difíceis tempos de pandemia, não podem jamais parar.

Internacional por natureza e, ao mesmo tempo, vital ao nosso país e ao nosso cotidiano, ainda que por vezes isso possa passar despercebido pelo cidadão comum.

Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos temas de Direito Marítimo, à luz da jurisprudência dos Tribunais brasileiros, abordando temas de Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima"1 e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria.

Neste primeiro, iremos tratar sobre o delicado e complexo tema do abalroamento entre embarcações, aqui representado por relevantíssimo caso julgado pelo Tribunal Marítimo e pelo Poder Judiciário do Rio de Janeiro, conforme citaremos abaixo.

O Brasil, juntamente com outros 158 países, representando mais de 99% de todo o transporte marítimo mundial em termos de tonelagem, é signatário da 'Convenção Sobre O Regulamento Internacional Para Evitar Abalroamentos No Mar', também conhecido por RIPEAM (COLREG 1972). Com isso, grande parte dos litígios envolvendo abalroamento entre embarcações, sejam embarcações mercantes ou aquelas de esporte e recreio, podem ser solucionados através da aplicação das regras estabelecidas no RIPEAM, instrumento internacionalmente reconhecido que regula o tráfego de embarcações. E não foi diferente a relevância do RIPEAM, em conjunto com as regras e princípios de responsabilidade civil, para o caso em questão.

O caso em si remonta, bem resumidamente, aos seguintes fatos. Durante travessia em águas jurisdicionais brasileiras, próximo ao litoral paulista, um navio graneleiro, navegando em piloto automático, com radares desligados e sem vigilância no passadiço, chocou-se com um navio tanque que trafegava em situação de rumo cruzado. O oficial de serviço no navio tanque, avistando o graneleiro em situação de rumo cruzado, seguiu estritamente as regras do RIPEAM, observando encontrar-se em situação de preferência de passagem, e tentou contato via rádio e apito com a outra embarcação, sem sucesso. Ao perceber que o graneleiro não alterava seu rumo e velocidade, na iminência de um abalroamento, o oficial do navio tanque fez uma manobra brusca para tentar evitar a colisão, o que acabou não sendo suficiente. O impacto causou um grande rasgo no casco do navio tanque, alagando a casa de máquinas e deixando-o à deriva até eu fosse rebocado a um estaleiro no Rio de Janeiro para reparos. O graneleiro, atingindo a outra embarcação com sua proa e bulbo, não sofreu danos significativos e após alguns instantes conseguiu seguir viagem. 

A Capitania dos Portos e posteriormente o Tribunal Marítimo iniciaram investigações e julgamento do caso para determinar administrativamente as responsabilidades dos atores envolvidos. 

Sem prejuízo, o armador e as seguradoras do navio tanque, severamente afetados, manejaram ações judiciais distintas em face do armador do graneleiro buscando indenização pelos prejuízos sofridos.

E o desenrolar dessa história será aqui narrado por alguns dos julgados proferidos em tais casos. 

Sentença de 1º grau:

"Trata-se a presente de Ação de Reparação de Perdas e Danos, pelo procedimento ordinário, na qual a parte autora relata que teve, em 12/2/99, por volta das 04:00 horas, seu navio, de nome GLOBAL RIO, de sua armação e propriedade abalroado pelo navio de nome NORSUL TUBARÃO, de propriedade da ré, quando navegava na altura da Ilha de São Sebastião, litoral norte do Estado de São Paulo. (...)

É incontroversa a colisão entre as embarcações, sendo certo que tal fato jurídico repercutiu diretamente nas esferas jurídicas tanto da parte autora quanto da parte ré, restando apenas elucidar qual das duas incidiu em conduta culposa ensejadora da obrigação ressarcitória dos danos daí advindos. Assim, o mérito do processo órbita em torno da análise do conjunto probatório produzido no curso do processo. Figurando como mais significativos os laudos periciais, e os pareceres técnicos elaborados pelos assistentes técnicos das partes. 

Inicialmente, faz-se necessário perquerir a existência da conduta culposa atribuída a ré, o que se dará através da análise do laudo pericial náutico. O PERITO, EM SUAS CONCLUSÕES, É TAXATIVO AO APONTAR A RESPONSABILIDADE DO NAVIO DE PROPRIEDADE DA EMPRESA RÉ PELA OCORRÊNCIA DA COLISÃO, RESSALTANDO QUE O NAVIO DA AUTORA AGIU NOS PRECISOS LIMITES ESTABELECIDOS PELO RIPEAM, NÃO CONCORRENDO PARA O FATO. 

Quanto a tal conclusão, recebeu total aquiescência pela parte autora, já no tange a parte ré, o mesmo não se deu, haja vista que imputa à autora a responsabilidade pela colisão já que esta teria efetuado manobra equivocada e imperita. A alegação da parte ré dá-se nos seguintes termos: O navio da ré não tomou nenhuma providência, sequer tendo tido ciência da existência de outro navio em rota de colisão, afirmando que, caso o navio da parte autora tivesse tido a mesma postura, teria passado a meia milha de distância. A alegação da ré é frágil, já que, segundo o laudo pericial, a manobra realizada, pelo navio da autora, deu-se dentro dos ditames do RIPEAM, sendo que a argumentação da ré parte da ideia errônia de que, mesmo não tendo agido nos termos do RIPEAM, caso a outra embarcação também tivesse desrespeitado tal norma, o acidente não teria ocorrido. Assim, a ré alega sua conduta ilícita em seu favor, tentando fazer supor que tal atitude desrespeitosa das normas internacionais que intentam evitar abalroações no mar poderia também ser exigida da parte autora. 

Não obstante o acima descrito, o laudo pericial é cristalino em afirmar que a suposição da ré é impossível de realizar-se, dada a imprevisibilidade das circunstâncias que permeiam a hipótese, já que o acidente ocorreu em mar aberto, com visibilidade restrita, durante a noite, sujeitas a variações de velocidade, ondas e correntes. RESSALTE-SE QUE O RIPEAM, DIANTE DAS CONDIÇÕES QUE APRESENTAVAM-SE, NÃO PERMITE OUTRA ATITUDE SENÃO A TOMADA PELO COMANDANTE DA EMBARCAÇÃO DA AUTORA. 

O perito reafirma suas assertivas ao responder a impugnação do laudo por ele elaborado, dizendo que tal impugnação não procede uma vez que apresentando-se uma situação de possível colisão entre navios deve-se adotar todas as recomendações previstas no RIPEAM, e não pilotar os navios pautando-se em avaliações probabilísticas de riscos, como tenta fazer supor a ré. (...)

PELO EXPOSTO, O ACIDENTE FOI FRUTO DA NEGLIGÊNCIA DA PARTE RÉ EM OBSERVAR AS REGRAS DO RIPEAM, NÃO SENDO A IMPUGNAÇÃO CAPAZ DE ELIDIR SUA RESPONSABILIDADE. 

Desta feita, impõe-se neste momento a análise do laudo contábil, por ser apto a deslindar a próxima questão processual, qual seja, os valores devidos a título de indenização. (...)

Ante o exposto, JULGO PROCEDENTE OS PEDIDOS, de modo a CONDENAR A EMPRESA RÉ, ao pagamento da reparação dos danos oriundos de sua conduta culposa. (...)."

(TJ/RJ; Proc. 2000.001.163119-2; 41ª Vara Cível/RJ; pub. 27.07.2006)

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1 Disponível aqui