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A valoração da prova constituída através de acórdãos proferidos no âmbito do tribunal marítimo enquanto órgão auxiliar do Poder Judiciário

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Atualizado às 08:18

O Tribunal Marítimo constituído nos termos da lei 2180, de 1954, que lhe conferiu o "status" de órgão auxiliar do Poder Judiciário (art. 1º: "O Tribunal Marítimo, com jurisdição em todo o território nacional, órgão autônomo, auxiliar do Poder Judiciário, . tem como atribuições julgar os acidentes e fatos da navegação marítima .").

A teor do artigo 13, inciso I, da referida lei, ao julgar os acidentes e fatos da navegação, o Tribunal Marítimo deverá definir-lhes a natureza, determinando-lhes as causas, circunstâncias e extensão, bem como indicar os seus responsáveis1.

A importância do Tribunal Marítimo como órgão auxiliar do Poder Judiciário é sublimada pelo valor que a lei atribui às suas decisões. Primeiramente, a lei lhe atribui presunção de certeza (artigo 18) e, bem por isso, lhe empresta a qualidade de prova indispensável (artigo 19), verbis:

Artigo 18

"As decisões do Tribunal Marítimo, nas matérias de sua competência, têm valor probatório e se presumem certas, sendo suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário."

Artigo 19

"Sempre que se discutir em juízo uma questão decorrente de matéria de competência do Tribunal Marítimo, cuja parte técnica ou técnico-administrativa couber nas suas atribuições, deverá ser juntada aos autos a sua decisão definitiva."

Diga-se, por oportuno, que o referido artigo 18 teve a sua redação re-ratificada pelo artigo 1º da Lei nº 9578, de 19/12/97, de modo que não cabe argumentar que não tenha sido recepcionado pela atual ordem constitucional2.

Circunscrito nesse quadrante legal, o julgamento das ações judiciais, fundadas em acidentes e fatos da navegação, passa necessariamente pelo exame do Tribunal Marítimo, ao qual a lei confere valor de prova técnica indispensável. Importa ressaltar, neste particular, que a qualidade dessa prova reside também no alto gabarito do quadro de juízes do Tribunal Marítimo, integrado por Oficiais da Armada e da Marinha Mercante e especialistas em Direito Marítimo e Direito Internacional.

Tais decisões gozam de presunção juris tantum, na medida que resultam do próprio direito (artigo 18) e, embora não gozem de caráter absoluto, suas conclusões subsistem até que se prove o contrário. Isso significa que não basta uma simples negação da decisão do Tribunal Marítimo. É indispensável, para que seja afastada, a contraposição através de prova judicial convincente, em sentido contrário, realizada com grau técnico equiparado ao nível do corpo de Juízes do Tribunal Marítimo.

A hipótese é, pois, de presunção legal relativa, que integrada no gênero das presunções jurídicas ou legais e mostram as verdades concluídas ou deduzidas, segundo a norma instituidora. Tem, portanto, como característica principal, reverter o ônus da prova ao impugnante.

Questionou-se durante muito tempo se as decisões do Tribunal Marítimo vinculariam o Poder Judiciário. Isso realmente não pode. A Constituição Federal consagra o princípio da unidade de jurisdição, que corresponde à supremacia do Poder Judiciário sobre as decisões administrativas, de sorte que as decisões do Tribunal Marítimo, que é um órgão administrativo, não vinculam as Cortes de Justiça. No entanto, por força de lei, essas decisões valem como prova técnica, e nesse passo não podem ser pura e simplesmente desprezadas. Mesmo que o Juízo da causa possa ter uma convicção formada pelas provas já existentes nos autos judiciais, ele não pode prescindir da prova técnica (decisão) produzida pelo Tribunal Marítimo, pois, a partir dela, pode até rever seus conceitos e reformular sua posição.

O valor probante das decisões do Tribunal Marítimo também tem sido discutido em todas as nossas instâncias judiciais, desde os Tribunais de Apelação até a Suprema Corte, passando pelo extinto Tribunal Federal de Recursos, donde se concluiu que essas decisões devem ser acolhidas pelo Judiciário como prova técnica de maior valia, e que somente podem ser contrariadas por prova judicial mais convincente.

Tendo o valor de prova técnica indispensável e gozando da presunção de certeza, o descarte da conclusão do Tribunal Marítimo pelo juiz deverá ser devidamente fundamentado, não podendo se restringir a uma mera negação geral.

A jurisprudência pátria, já de longa data, sinaliza nesse exato sentido, como se denota dos trechos relevantes a seguir transcritos:

"A criação do Tribunal Marítimo, órgão administrativo integrado por técnicos, a que se atribui competência quase jurisdicional para o deslinde de questões de direito marítimo se insere na tendência do Estado moderno de aliviar as instituições judiciais de encargos puramente técnicos, para os quais não estão ela preparadas."3

"As decisões do Tribunal Marítimo, nas matérias de sua competência, têm valor probatório com presunção de certeza, constituindo-se verdadeiros laudos técnicos auxiliadores na decisão do Judiciário."4

"Se o Tribunal Marítimo, órgão competente, segundo a lei, para examinar os fatos e acidentes de navegação, determinando-lhes causa, circunstâncias, extensão, decidiu que o evento proveio de fortuna do mar, não pode a ação judicial estabelecer entendimento diferente, salvo quando a manifestação oficial contrariar a evidência."5

Corroborando também com estas afirmações, importa ressaltar a declaração de voto vencedor do então Juiz Carvalho Viana, no julgamento proferido pela 3.ª Câmara do E. 1.º TACivSP no Agravo de Instrumento n.º 1.022.952-4, que exprime não só a importância das decisões do Tribunal Marítimo, mas também a sua imprescindibilidade, com a determinação para suspender o processo judicial para aguardar a juntada aos autos da conclusão do Tribunal Marítimo:

"Quanto a se aguardar decisão do Tribunal Marítimo, observo que afirmou a agravada não ter responsabilidade pelo evento, atribuindo o fato ao fortuito. Para que se chegue a essa conclusão, é necessária a prova, e esta está sendo feita, nos termos da Lei, em processo perante o Tribunal Marítimo. Se é Verdade que o transportador responde objetivamente pelo transporte da carga, também é verdade que ele pode se exonerar da obrigação de indenizar, se provar o caso fortuito, ou a força maior, que ora se alega. Portanto, não se pode desprezar a produção de provas, no caso feita em sede própria, e que convém aguardar, ainda que o Poder Judiciário não esteja obrigado a endossar a conclusão do Tribunal. Trata-se de prova presumivelmente correta, e que só não subsistirá se for cabalmente contrariada pela prova judicial".  (Superior Tribunal de Justiça, RE nº 38082 do Paraná, Rel. Min. Ari Pargendler).

Conforme manifestou o ilustre Ministro Bilac Pinto, do STF, no julgamento do Agravo de Instrumento n.º 62.811-RJ, de 20/6/75, do qual foi Relator, existe uma tendência do Estado moderno de atribuir o exercício de funções quase-jurisdicionais a órgãos da administração, aliviando e auxiliando os órgãos do Poder Judiciário do exame de matérias puramente técnicas, como é o caso das funções magnificamente exercidas pelo Tribunal Marítimo.

De fato, a lei não pode suspender a competência natural do Poder Judiciário para atribuir coisa julgada às decisões de tribunais quase judiciais, cuja função é de ministrar provas ao Poder Judiciário. Assim, a natureza jurídica de suas decisões é apenas de perícia, é prova, mas de poder quase irresistível de persuasão, como bem salientou o insigne mestre Waldemar Ferreira:

"Embora composto de juízes, (o Tribunal Marítimo) não se entrosou no poder judiciário, mantendo-se à ilhança do poder executivo, como simples órgão administrativo e técnico. Não mais do que isso. Não é órgão judiciário, mas sim auxiliar dos juízes e tribunais comuns, na matéria de sua competência.

Espraiou-se a matéria da competência do Tribunal Marítimo, como se acaba de verificar; e essa é matéria cheia de dificuldades, porque tal tribunal, não obstante decepada sua denominação do adjetivo, que inicialmente o caracterizava, nem por isso deixou de ser órgão simplesmente administrativo, sem nenhuma das funções pertinentes, por dispositivos da Constituição Federal, aos órgãos do poder judiciário. É o que nunca se deve perder de vista, no apreciar as suas decisões.

A decisão do Tribunal Marítimo, proveniente de órgão administrativo, mas técnico, não judiciário, inscreve-se entre as provas de maior valia. Não tem como se pretendeu, efeitos conclusivos de molde a valer como coisa julgada. Isto não.

Opera como laudo de técnicos, de autoridade imensa; mas juízes e tribunais, em face de outros elementos probatórios, podem propender por estes, havendo-os como mais convincentes."6

Com suporte nas lições de Waldemar Ferreira, o Supremo Tribunal Federal, no aludido julgamento, pronunciou-se no sentido de que, livre é, em princípio, ao Poder Judiciário conhecer da matéria decidida pelo Tribunal Marítimo. Suas decisões não têm efeito de coisa julgada. As conclusões de natureza técnica do Tribunal Marítimo, no entanto, inscrevem-se, no particular, entre as provas de maior gabarito, devendo merecer a mais destacada consideração de juízes e tribunais, por se tratar de órgão oficial e especializado. Sem prova mais categórica em contrário, nada autoriza sejam descartadas as conclusões técnicas do Tribunal Marítimo.

Em se tratando de acórdãos históricos, talvez o mais emblemático seja aquele proferido pelo Superior Tribunal de Justiça por ocasião do julgamento do REsp nº 38.082-PR, datado de 20 de maio de 1999, de Relatoria do ilustre Min. Ari Pargendler, cuja ementa segue:

"CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. TRIBUNAL MARÍTIMO.

"As decisões do Tribunal Marítimo podem ser revistas pelo Poder Judiciário; quando fundadas em perícia técnica, todavia, elas só não subsistirão se esta for cabalmente contrariada pela prova judicial."

Nos dias atuais, a jurisprudência firmada e consolidada em torno do tema e ao longo de décadas permanece inalterada, cabendo citar, pela relevância e a título de exemplo, o esmerado acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, sob a relatoria do eminente Desembargador Marco Fábio Morsello e realizado em 202, cujo trecho da ementa segue transcrito:

"Como é cediço, o Poder Judiciário não está vinculado às decisões administrativas proferidas pelo Tribunal Marítimo, contudo, há presunção de veracidade destas quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação - Provas produzidas pelas autoras que se revelaram insuficientes para infirmar a conclusão técnica exarada pelo Tribunal Marítimo, nomeadamente à luz do estado da técnica à época dos fatos e inexistência de adoção da teoria do risco integral em causas desse jaez".7

No mesmo sentido segue a doutrina maritimista moderna, conforme se extrai dos ensinamentos da conceituada professora Eliane Octaviano Martins, para quem as decisões proferidas no âmbito do Tribunal Marítimo "constituem elementos probantes praticamente inquestionáveis".8

Não por acaso, o legislador estabeleceu na lei 2.180/54 que "não corre a prescrição contra qualquer dos interessados na apuração e nas consequências dos acidentes e fatos da navegação por água enquanto não houver decisão definitiva do Tribunal Marítimo"9, visando, justamente, resguardar a utilização de acórdãos e provas produzidas no âmbito do referido órgão administrativo em disputas judiciais decorrentes do mesmo fato ou acidente navegação.

Esta mesma lógica foi adotada no atual Código de Processo Civil que prevê a possibilidade de suspensão do processo judicial enquanto houver processo administrativo relativo ao mesmo objeto pendente de decisão perante o Tribunal Marítimo10.

Concluindo: a exegese do artigo 18 da lei 2.180/54, construída pela jurisprudência ao longo de muitos anos, como amplamente demonstrado, é assente no sentido de que as decisões do Tribunal Marítimo têm força de prova plena relativa- presunção juris tantum - que se origina da própria lei, embora admitam prova em contrário. No entanto, enquanto não contrariadas, elas induzem a existência ou a veracidade dos fatos que delas se deduzem ou se presumem.

__________

1 Lei 2180/54, art. 31, inciso I.

2 Lei 9578/97, artigo 1º.

3 Supremo Tribunal Federal, AI n.º 62.811, m.v., j. 20.6.75.

4 Tribunal Federal de Recursos, AC n.º 44.227, DJU 17.11.83.

5 Tribunal Federal de Recursos, EI na AC nº 26.301, DJU 9.10.72.

6 Instituições de Direito Comercial, 4ª ed., IV vol., ps. 96 a 102.

7 TJSP, 11ª Câmara de Direito Privado, Embargos de Declaração em Apelação Cível 9221073-86.2003.8.26.0000/50001, Rel. Des. Marco Fábio Morsello, j. 29.10.2021, acolheram os embargos, v.u.

8 Martins, Eliane Maria Octaviano. Curso De Direito Marítimo, Vol. I, 3ª Edição, Barueri, SP: Manole, 2008, pág. 130.

9 Lei 2180/54, artigo 20.

10 Código de Processo Civil, artigo 313, inciso VII.