Desvendando o nexo de causalidade na ação regressiva de ressarcimento frente ao transportador marítimo
quinta-feira, 21 de setembro de 2023
Atualizado às 08:24
O código civil brasileiro estabelece que o dano é passível de reparação pelo seu agente causador. Mas, antes disso, faz-se necessário demonstrar o nexo de causalidade entre o dano sofrido e a culpa do agente, sendo fundamental que determinada conduta seja de fato a causa do dano. Sem isso, não se pode identificar, no mundo dos fatos, o vínculo lógico e indispensável do nexo de causalidade para a reparação pleiteada em razão do dano sofrido.
Antes de adentrar juridicamente nos fundamentos e teorias do nexo de causalidade, em paralelo com o acórdão que aqui será abordado, faz-se necessário esclarecer, em breves linhas, o significado deste instituto, que é fundamento indispensável para a caracterização da responsabilidade civil e o dever de ressarcimento do dano.
Dito isso, partindo de um exemplo simplista, podemos considerar que em um transporte multimodal de cargas, quando determinada mercadoria chega ao seu importador final avariada, é necessário avaliar quem foi o agente causador do dano, quais foram as extensões do dano sofrido e, por fim, o vínculo lógico na conduta realizada e o dano ocasionado.
Neste passo, será necessário analisar, de forma pormenorizada, todos os agentes envolvidos na cadeia de transporte a fim de identificar o que levou àquela mercadoria a sofrer determinado dano. Neste caso hipotético, pode-se considerar que após as diversas práticas realizadas para identificar o autor do dano, restou identificado que a mercadoria chegou com avarias do tipo amassamento, arranhão e envergadura em razão da má condução do produto durante o transporte rodoviário de cargas, por exemplo.
Analisar todas as etapas do transporte se torna necessário para identificar o real agente causador do dano, de modo que o pedido de ressarcimento encontrará base legal para tanto.
Contrário a isso, qualquer tipo de ambiguidade ou incertezas quanto ao momento em que efetividade o dano ocorreu ou quem de fato foi seu agente causador fará com que o vínculo lógico entre conduta e dano não encontre o liame para a caracterização do nexo de causalidade, elemento indispensável a retratar o direito ao ressarcimento das avarias causadas.
Portanto, sendo o nexo causal a conexão factual que une o resultado à origem, representando a evidência de um dano concreto resultante da ação deliberada, da negligência ou da imprudência da parte responsável pelo referido dano, a imprescindibilidade da demonstração desse principal elemento para a caracterização da conduta de determinado agente é indispensável.
Sobre as teorias adotas pelo código civil brasileiro, podemos citar a teoria da causalidade adequada, elaborada por Von Kries1, na qual estabelece que "apesar de existirem várias condições antes de ocorrer o evento danoso, apenas uma delas será levada ao conceito de causa, por ser a mais adequada, sendo esta a causalidade sem a qual o evento não teria acontecido, se tornando a própria referência.
Segundo Kries, sem a existência do fato que efetivamente gerou o dano, a necessidade de reparação não existiria, ou seja, apenas o ato que gerou o efeito danoso causado por determinado agente é de fato o ensejador do nexo de causalidade.
Por outro lado, também podemos citar a Teoria do Queijo Suíço, a qual foi detalhadamente abordada no artigo Digressões sobre concausas nos acidentes marítimos - O queijo suíço e o canal do Egito, elaborado pelo magistrado Leonardo Grecco2.
No referido artigo, o autor faz uma analogia de que "os buracos de uma fatia de queijo suíço são os eventos e fatores que se podem encontrar numa situação potencialmente danosa".
Assim, o artigo remonta à ideia de que a falha humana e os eventos naturais são previsíveis, mas um acidente somente se materializa quando todos os "buracos de uma fatia de queijo suíço" se alinham, de modo que todos os eventos e fatores que levaram ao dano concreto, devem ser considerados.
Portanto, torna-se de extrema importância realizar uma análise detalhada de todos os vazios presentes na fatia de queijo, a fim de estabelecer um nexo causal e, consequentemente, determinar se é possível atribuir a responsabilidade há apenas um agente pelo eventual dano.
No ordenamento jurídico brasileiro, podemos encontrar o conceito de nexo de causalidade no artigo 403 do Código Civil, de uma forma pontualmente abstrata, veja-se:
Art. 403. Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual.
O artigo em questão estabelece que os danos passíveis de compensação estão restritos aos prejuízos efetivamente incorridos e aos lucros cessantes decorrentes, desde que estes últimos sejam diretamente causados pela falta de cumprimento contratual. Tal disposição implica que apenas os danos diretamente relacionados à não realização da obrigação podem ser objeto de compensação.
No mesmo contexto, também podemos identificar o art. 927, parágrafo único do Código Civil e arts. 186 e 187 do mesmo diploma legal. Note que, ainda que respectivos artigos tratem sobre a obrigação de reparar o dano, culpa objetiva e o risco da atividade, estes não afastam ou flexibilizam a necessidade de comprovar, irrefutavelmente, o nexo de causalidade, pois não basta apenas a prática da conduta ilícita, é necessário que ela seja a causa do dano, ligada a conduta de determinado agente, a se concluir pelo nexo de causalidade daquela ação ou omissão.
Assim sendo, no contexto do Transporte Marítimo, o debate frequentemente gira em torno da identificação do autor do dano e sua consequente responsabilidade, somada ao momento da cadeia do transporte marítimo de carga que este dano efetivamente ocorreu.
No caso, apesar da responsabilidade objetiva prevista no código civil, tem-se que a sua aplicabilidade depende de, no mínimo, comprovação de que aquele dano foi gerado por determinado agente, não sendo admissível imputar a obrigação de indenização ao transportador quando a relação causal entre a ação e o dano é inexistente, vez que no evento de uma quebra desse requisito, o transportador não pode ser responsabilizado por um prejuízo pelo qual não teve influência.
Entretanto, para a análise dos fatos e da relação de causa e efeito, o autor da ação que alega um evento - à luz de nossa discussão, no qual gerou um dano decorrente do transporte marítimo e sustente que a responsabilidade é do transportador, possui o dever de comprovar o nexo de causalidade entre o apontado e o dano gerado, devendo apresentar ao processo provas que demonstrem a responsabilidade do agente perante os danos ocorridos durante o transporte marítimo.
Nesse contexto, o doutrinador Humberto Theodoro Junior3 preconiza acerca da matéria:
"Diante da regra de distribuição estática do ônus probandi, traduzida no art. 373 do novo CPC, estabelecem-se as premissas de que (i) as partes, uma vez completada a fase postulatória do procedimento de cognição, sabem que fatos haverão de ser provados, e (ii) (...) A regra geral da lei é que, em princípio, quem alega um fato atrai para si o ônus de prová-lo."
Considerando a premissa de que o ônus de comprovar o dano recai sobre o autor da demanda, torna-se imperativo que as alegações apresentadas estejam respaldadas pelos documentos anexados.
Nesse contexto, recebemos com apreço a recente e precisa decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, onde o Ilustríssimo Desembargador conduziu uma análise minuciosa das evidências apresentadas nos autos.
Como previamente mencionado, tais evidências consistiram em laudos e relatórios, elementos que de forma clara sustentam a fundamentação do dano. No caso em questão, a análise do Acórdão, detalhada abaixo, demonstra de maneira inequívoca que a responsabilidade pelo dano não recaiu sobre o agente de cargas em razão da Autora da ação não conseguir demonstrar, de maneira clara e inequívoca, em que momento do transporte marítimo o dano efetivamente ocorreu. Veja:
E, ainda que assim não fosse, o que se aventa por mera epítrope, o decreto de improcedência também seria de rigor. O laudo técnico a fls. 114/117, unilateralmente elaborado, cabe ressaltar, dá conta de avarias na carga, mas não do nexo causal com a conduta da transportadora. Mesmo a vistoria realizada pela autora (cf. fls. 119 e seguintes) não comprova deforma irrefutável tal nexo causal e ainda revela questionamentos quanto ao agir da contratante do transporte, confira-se "Após levantamento dos fatos e análise dos documentos concluímos que a carga em algum momento durante o percurso da cadeia logística envolvida, sofreu algum tipo de dano grave com relação a lona protetora externa (rasgo), vindo causar a embalagem a exposição de água em demasia sobre a embalagem (caixa de madeira).
(...) Vale, por fim, notar que única vistoria que contou com participação de representante da ré (fls. 144/146) também não atesta o nexo de causalidade entre as avarias e a conduta da transportadora. Desse modo, o que se conclui é que a autora não demonstrou os fatos constitutivos do direito alegado, nos termos art.373, I, do C.P.C. Anote-se que, instada a manifestar-se sobre as provas que eventualmente desejasse produzir, a apelante postulou o julgamento antecipado da lie (cf. fls. 246/250). Nesse contexto, o que se pode concluir é que falta prova acerca do nexo causal entre os danos sofridos e conduta da ré, de forma que a improcedência do pleito indenizatório é de rigor.
Dessa maneira, a conclusão que se pode tirar é que a autora não apresentou os elementos essenciais do direito alegado, conforme estabelecido no art. 373, I, do CPC4, logo, pode-se que não houve evidências suficientes que estabeleçam um vínculo causal entre os danos suportados e as ações da Ré, sendo a improcedência do pedido de compensação, de fato, medida que se impõe. Sobre isso, comprovando que tal decisão está longe de ser inédita, é possível verificar diversos outros julgados na mesma linha de entendimento, constantes no livro de jurisprudência marítima, disponível através do seguinte link: Livro Jurisprudência Marítima (2023) (rlkpro.com).
Além disso, vale destacar que o acórdão também afastou qualquer tipo de responsabilidade solidária do agente. Isso porque, não basta a alegação de responsabilidade objetiva para caracterizar o dever de indenizar, devendo ser identificado no caso concreto o nexo de causalidade, elemento imprescindível para a identificação do causador dos danos.
Deste modo, sabendo-se que a solidariedade não se presume, decorre da lei ou da vontade das partes, nota-se que caso concreto não havia lei ou manifestação de vontade das envolvidas a fim de estabelecer uma pretensa solidariedade e, ainda que assim não fosse, a comprovação do nexo de causalidade seria medida crucial para condenar determinado agente ao pagamento dos danos causados.
Em suma, a jurisprudência analisada e o entendimento da relação entre ônus da prova, solidariedade e o estabelecimento do nexo causal, reforçam a importância da diligência na apresentação de evidências, a fim de afastar qualquer tipo de flexibilização do nexo causal e o instituto da culpa, apenas como forma de garantir que a vítima de indenizada, mesmo não sabendo de fato em que momento o dano ocorreu, ou quem realmente foi o seu causador.
Referências Bibliográficas
CAMPOS, Alan Sampaio. A presunção do nexo causal: teorias e reflexões. 3 de novembro de 2021, Artigo Migalhas - Disponível aqui. Data de acesso em 01/09/2023.
BAHIA, Carolina Medeiros. NEXO DE CAUSALIDADE EM FACE DO RISCO E DO DANO AO MEIO AMBIENTE: ELEMENTOS PARA UM NOVO TRATAMENTO DA CAUSALIDADE NO SISTEMA BRASILEIRO DE RESPONSABILIDADE CIVIL AMBIENTAL. 07 de março de 2012, Tese de Doutorado da Universidade Federal de Santa Catarina Centro de Ciências Jurídicas Curso de Pós-Graduação em Direito Programa de Doutorado. Disponível em: 302182.pdf (ufsc.br) Data de acesso em 01/09/2023.
SANTOLIM, Cesar. NEXO DE CAUSALIDADE E PREVENÇÃO NA RESPONSABILIDADE CIVIL, Dezembro de 2014, Revista de AJURIS, Disponível em: Vista do Nexo de causalidade e prevenção na responsabilidade civil (ajuris.org.br). Data de acesso: 01/09/2023.
KRETZMANN, Renata Pozzi, Nexo de causalidade na responsabilidade civil: conceito e teorias explicativas. Disponível em: 900ca64d-nexo-de-causalidade-na-rc-renata-k.pdf (meusitejuridico.com.br). Data de acesso 01/09/2023
SOUZA, Eduardo Nunes de, Nexo causal e culpa na responsabilidade civil: subsídios para uma necessária distinção Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 7, n. 3, 2018. Disponível aqui. Data de acesso 01/09/2023.
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1 O filósofo alemão Johannes Von Kries é reconhecido como o proponente da Teoria da Causalidade Adequada.
3 JUNIOR, Humberto Theodoro. Curso de Direito Processual Civil. Editora Forense. P. 1134.
4 Art. 373. O ônus da prova incumbe:
I - ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito;
II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.