Reflexões sobre o julgamento do recurso especial 1.988.894/SP. Parte 2: A extensão e o alcance dos efeitos da subrogação da seguradora
quinta-feira, 31 de agosto de 2023
Atualizado às 09:20
Prosseguindo no debate e exposição das conclusões exaradas no julgamento do Recurso Especial 1.988.894/SP da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, sob a relatoria da eminente Ministra Isabel Gallotti, esse segundo artigo tratará de outro tema relevante enfrentado na ocasião e que merece grande destaque: o efeito e o alcance da sub-rogação operada entre segurador e proprietário da carga.
Para melhor compreensão, é importante relembrar a origem do julgamento, uma ação de ressarcimento proposta em decorrência de perdas e danos à carga durante a execução de transporte marítimo internacional, movida pela seguradora sub-rogada nos direitos do contratante do transporte em face do armador-proprietário do navio, do afretador e do agente de carga. Importa ainda, para o tema a ser aqui tratado e em virtude do quanto enfatizado no acórdão, acrescentar que todos os envolvidos pertencem a conglomerados econômicos e que a carga transportada seria utilizada na construção de uma usina hidrelétrica em país vizinho sul-americano.
Neste segundo artigo serão pormenorizadas as razões que levaram os ínclitos ministros da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça afastarem a alegação da seguradora, no sentido de que o efeito da sub-rogação seria limitado ao direito material. Conforme alegado, haveria assunção do crédito pelo segurador sub-rogado após o sinistro, sendo inoponíveis questões procedimentais dos contratos firmados entre o transportador e demais players com o tomador do seguro/segurado.
A análise sobre o tema é inaugurada no acórdão da lavra da ínclita ministra relatora Isabel Galloti com a afirmação da natureza da sub-rogação em casos como o julgado, ser legal e não convencional, a teor do quanto disposto no artigo 346, inciso III, do Código Civil. Essa afirmação é de curial importância, haja visto implicar na irrelevância da manifestação de plena vontade quanto, a exemplo, a previsão da convenção de arbitragem no contrato primitivo.
Partindo dessa compreensão, a ínclita Ministra Relatora excele em distinguir a sub-rogação convencional, isto é, aquela "que decorre de escolha das partes, no exercício da autonomia privada (artigos 421 e 421-A do CC), inclusive quanto à extensão aos efeitos" para a legal, em que, nas palavras do doutrinador Cláudio Luiz Bueno de Godoy, o sub-rogado passa a "ocupar a posição jurídica do segurado".
Ao mencionar o entendimento doutrinário de Francisco José Cahali e Viviane Rosolia Teodoro, os quais defendem que, a teor do quanto disposto no artigo 786 e na Súmula n° 188 do Supremo Tribunal Federal, a sub-rogação transmite a integralidade do contrato coberto pela apólice de seguro, tanto em relação ao direito material quanto ao direito de ação - aqui se compreendendo a jurisdição escolhida pelas partes originais do contrato assegurado. A Ministra Relatora complementa a lição doutrinária aludida para afirmar que a "cláusula compromissória não pode ser compreendida como condição personalíssima da parte, justamente por se tratar de instituto legal genérico e comum aplicável a qualquer contratante capaz, não derivando de característica pessoal cuja prestação não poderia ser efetuada por terceiro".
Nesse sentido, faz-se menção quanto à ponderação da Ministra Relatora acerca da ciência da existência de compreensão diversa oriunda da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça. Importante trazer a lume que um dos precedentes suscitados é de relatoria da eminente Ministra Nancy Andrighi, a qual, recentemente, no julgamento do SEC 14.930/EX pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça demonstrou ter alterado o seu entendimento justamente no que tange a questão da natureza não personalíssima das cláusulas compromissórias:
"A única limitação reconhecida para a sub-rogação se encontra nas condições personalíssimas do credor. Contudo, uma cláusula deve ser considerada personalíssima apenas se é firmada em razão das condições pessoais do sub-rogado, cuja prestação não pode ser efetuada por outrem. (...) Por suas características próprias, não seria possível afirmar que a cláusula compromissória seja uma condição personalíssima de uma data relação jurídica. Ao contrário, uma vez celebrada, seus termos são genéricos e comuns a todos os contratantes, independentemente da qualidade da parte, podendo ser firmada por todas as pessoas capazes."
A esse respeito, cumpre transcrever, ainda, o seguinte trecho do voto declarado pelo Desembargador Castro Figliolia, que compôs o julgamento no Tribunal de Justiça de São Paulo como 3º Julgador: "Na sub-rogação, não há uma ampliação do direito, ou seja, não há exclusão das limitações existentes no direito originário, apenas porque o sub-rogado é terceiro e não aquiesceu. Em verdade, o sub-rogado não tem que aquiescer. Ele se limita a receber o direito existente (.). Justamente porque a sub-rogação se dá quanto ao direito, o sub-rogado não pode ter mais direito do que aquele que o transmitiu. Se o direito transmitido tinha limitação, o sub-rogado o recebe com ela."
Na verdade, acaso fosse a intenção do legislador ao elaborar o artigo 786 (ou até mesmo dos excelsos Ministros do Supremo Tribunal Federal na edição da súmula 188), limitar os efeitos da sub-rogação nos casos envolvendo seguradoras, as exceções teriam sido expressas, de modo que os ônus e obrigações não abarcados no translado dos direitos assim estariam dispostos em lei.
Exsurge, no debate, o dever legal da seguradora, amparado pelo princípio da mutualidade que rege os contratos de seguro e insculpido no artigo 757 do Código Civil, por ter prévio conhecimento do risco coberto pela apólice de seguros contratada. Nesse aspecto, como bem pontuado pelo Desembargador Tasso Duarte, relator do acórdão originário no Tribunal de Justiça de São Paulo, a previsão contratual de cláusulas compromissórias tal como a arbitral é praxe do mercado de transporte marítimo, não sendo possível a presunção de ciência prévia do segurador quanto a sua incidência em eventuais litígios oriundos desse modal.
Baseada nessa premissa, aliás, exceleu novamente a ínclita Ministra ao afirmar que "(...) afastar a sub-rogação na cláusula arbitral, previamente exposta à aprovação da seguradora e de conhecimento de todos, implicaria submeter as partes do contrato de transporte marítimo ao arbítrio da contraparte na livre escolha da jurisdição aplicável à avença, pois depende única e exclusivamente da seguradora escolhida pelo consignatário da carga."
Ainda no tocante ao prévio conhecimento da seguradora, os ínclitos Ministros debateram acerca do alcance dos efeitos da sub-rogação à luz do quanto disposto no artigo 786, parágrafo 2º, do Código Civil, o qual reza serem ineficazes os atos do segurado caso estes extingam ou diminuam, em prejuízo do segurador, os direitos aos quais serão sub-rogados pela seguradora.
A conclusão exarada no acórdão é primorosa sobre este ponto: "Não há como incidir a mencionada regra quando a disposição contratual integra a unidade do risco objeto da própria apólice securitária, dado que elemento objetivo a ser considerado nos cálculos atuariais efetuados pela seguradora e objeto da autonomia das partes". Aliás, a ínclita Ministra Relatora complementa afirmando que intepretação em sentido contrário permitiria ao segurador, ao seu livre arbítrio, determinar a jurisdição aplicável ao caso em flagrante dissonância à presunção de paridade e simetria entre as partes contratantes.
Atentando-se à obrigação legal do segurador ter prévio conhecimento dos riscos acobertados, a qual permite concluir pelo prévio conhecimento dos termos contratuais e das praxes do mercado de transporte marítimo, tem-se, pelo quanto debatido durante o julgamento, que a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça reconheceu que, com a sub-rogação, o sub-rogado recebe todos os direitos de que desfrutava o credor primitivo, bem como todos os privilégios, garantias e obrigações daí decorrentes.
Concluindo, o sub-rogado, por força da sub-rogação, não recebe mais direitos e obrigações do que detinha o segurado, isto é, o credor primitivo. Logo, se o segurado não tinha o direito acionar judicialmente, em detrimento da via arbitral, também não terá o sub-rogado.
Ao segurado não é possível transferir mais direitos e obrigações ao segurador do que lhe competia originariamente, tendo assim, portanto, que os efeitos das cláusulas compromissórias vinculam a sub-rogação.
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Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação 1011916-50.2018.8.26.0562.
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Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1988894/SP.
Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1424074/SP.
Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1189050/SP.
Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no AREsp 2214857/CE.