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A ilógica recusa do credor em receber o contêiner sem antes receber o valor da sobrestadia

quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Atualizado às 08:46

Caro leitor. Tenho a mais absoluta certeza de que você nunca concebeu que um rato pudesse comer a lua.

Essa ideia é estapafúrdia, disparatada e ilógica. E por aqui quero começar este ensaio: pela lógica.

A lógica é disciplina afeita à filosofia e nos ajuda a estruturar nosso raciocínio.

O raciocínio lógico é formado por premissas, umas maiores, outras menores, as quais levam o pensador às suas conclusões. Vejam.

Se todo ser humano é mortal e se o caríssimo leitor dessa coluna é um ser humano, a conclusão funesta e lógica que cai no seu colo é: duas mortes não existem e de uma ninguém se escapa! Esse raciocínio é aquele que chamamos de silogismo. Lógico e verdadeiro.

Ocorre que o raciocínio pode não ser perfeito, por simulação da verdade, por conteúdo não veraz das premissas e por outros vieses, fazendo com que tenhamos à nossa frente um raciocínio falso, chamado de sofisma.

Alguém poderia nos iludir com poesias que comparam a lua a um lindo queijo iluminado, histórias de navegadores que se orientavam pelo queijo astral que brilhava no céu depois que o sol já tivesse se posto, com resenhas de como os astrólogos comparavam a lua a um queijo parmesão, entre uma olhadela e outra pelo telescópio.

Então, depois de todo este cenário criado, o sofista poderia arriscar nos convencer de que, se é verdade que todos os ratos comem queijos e se a lua é um queijo para astrônomos, poetas, navegadores e historiadores, lógico seria concluir que os ratos comeriam a lua.

A falsidade está no conteúdo da segunda premissa e leva, por ricochete, à falsidade da conclusão.

Mas e se a falsidade de conteúdo da premissa não ficasse tão evidente, a ponto dela nos levar a uma conclusão aparentemente possível, mas realmente falsa? E se o sofisma fosse traçado de propósito para fazer com que o julgador fosse levado a erro, expressão que sói pulular nos processos judiciais?

Pois bem.

Teríamos um pouco mais de trabalho investigativo, mas conseguiríamos encontrar a falsidade.

Este ensaio busca, pois, demonstrar que não é juridicamente lógico ter por legítima a prática do locador de um container de condicionar a devolução dele, depois do free time, ao pagamento integral do valor da sobreestadia.

Onde estaria a falsidade de premissa daqueles que entendem de maneira distinta?

Mantida a ideia da lógica, agora a jurídica, este artigo propõe fincas nos seguintes silogismos de direito civil e marítimo.

Nenhuma multa, taxa ou indenização prefixada em contrato se confunde com preço;

Ora, pagamento de sobrestadia de container é multa, taxa ou indenização pré-fixada;

Logo, pagamento de sobrestadia não se confunde com preço.

Seguindo na construção de raciocínios que este ensaio aborda:

O sistema que rege a aplicação das multas, taxa ou indenização pré-fixada é diverso do sistema que rege o pagamento do preço dos contratos;

Ora, se pagamento de sobrestadia de container é multa, taxa ou indenização pré-fixada, segue sistema de regras de aplicação de multa, taxa ou indenização pré-fixada;

Logo, o pagamento de sobrestadia de container, não segue o sistema de pagamento de preço.

Enfim, este artigo propõe ainda que:

Toda exceção aos princípios básicos do direito deve ser expressamente prevista em lei ou em contrato;

Ora, a autotutela é exceção aos princípios básicos do direito;

Logo, a autotutela deve ser expressamente prevista em lei ou em contrato.

Se o leitor entendeu que alguma das premissas acima indicadas é falsa em seu conteúdo, daqui para a frente se verá a construção de um ensaio baseado em um raciocínio falso.

Por outro lado, se as premissas acima forem confirmadas em sua verdade durante a leitura, não há outra conclusão lógica senão aquela que confirma a conclusão que se pretende deste apanhado de ideias: ser ilegítima a prática de condicionar a devolução do container ao pagamento do valor da sobreestadia.

Confiante no silogismo, sigo partindo do primeiro raciocínio.

Premissa maior: Nenhuma multa, taxa ou indenização previamente fixada se confunde com preço.

Sobre a multa, basta abrir o índice da clássica coleção Sinopses Jurídicas, da Editora Saraiva, do festejado processor Carlos Roberto Gonçalves que já se vê que o preço,  objeto de pagamento, é item do Capítulo Pagamento; do Título Adimplemento e extinção das obrigações, enquanto que a multa é capítulo do título Inadimplemento das obrigações.1

O mesmíssimo esquema é adotado pelo Código Civil, de modo que o preço está contemplado entre os artigos 313 a 326 e a multa, entre os artigos 408 e 416 e dependente da mora, prevista 394 e 401.

Taxa é instituto jurídico que não tem previsão específica no Código Civil, mas se encontra alguma menção a ela nos artigos 406 e 407 e não é, data vênia, a melhor das definições para a natureza jurídica do pagamento da sobreestadia.

Indenização previamente fixada é forma genérica de purgação de mora, como previsto no artigo 401, I do Código Civil.2

No entanto, qualquer que seja a linha escolhida, uma coisa é certa. Nem multa, nem taxa, nem indenização pré-fixada é preço.

Não percamos mais tempo nisso, então.

Premissa menor: Pagamento de sobrestadia de container é multa, taxa ou indenização pré-fixada.

Quando se assina um contrato de transporte marítimo, arrenda-se um equipamento ou acessório do navio que é o container. Neste contrato, o arrendante se compromete a devolver tal equipamento ou acessório dentro de um determinado prazo, chamado de free time. Caso o arrendante extrapole esse período, deve pagar um valor pré-estipulado que é a sobrestadia ou demurrage.3

Nos precedentes dos tribunais são encontradas menções sobre a natureza jurídica deste valor, alguns chamando de taxa4-5 (de sobrestadia - as vezes tarifa de sobrestadia), outros chamando de indenização previamente fixada6e outros até mesmo de multa.

ELAS7 nos ensinam que "(...) não se olvida a existência de duas correntes dominantes que discorrem sobre a natureza jurídica de sobrestadia de contêiner. Uma corrente que entende a cobrança como de natureza indenizatória e outra que se refere à sobreestadia como sendo cláusula penal."8

Como dito na nota de rodapé 2, a maioria dos precedentes jurisprudenciais entende que sobreestadia é indenização pré-fixada.

Enfim, a depender da preferência do leitor, pode-se eleger se o valor da sobreestadia é multa, taxa ou indenização pré-fixada.  O que não é possível é entender que - por se consubstanciar em entrega de dinheiro - é preço (vide nota de rodapé numero 2)

Eis uma armadilha da lógica. Às vezes os termos são equívocos, fazendo o intérprete se confundir pelo significado diverso de palavras idênticas (sequestro; que pode ser de bens ou de pessoas) e as vezes a confusão vem pela similitude da ação que o termo significa (entregar uma coisa; que pode ser transferência de patrimônio, empréstimo, locação).

Isso que acontece com a entrega de dinheiro, que as vezes denota o pagamento de um preço e outras denota o pagamento de uma multa ou indenização pré-fixada, sendo totalmente diverso o sistema de regulação de tal entrega.

Ora, se o sujeito entrega dinheiro para pagamento do preço, ao sistema não importa se o valor é alto demais, se as partes acordaram que tal entrega se daria de forma parcelada, se poderia tal valor ser compensado com outra dívida. Mas se o sujeito entrega dinheiro para pagar multa, o valor dela terá limite ou no valor do contrato ou no percentual de lei. Já o pagamento de indenização previamente fixada depende não só da vontade das partes, mas da ocorrência de um inadimplemento da obrigação principal, com incidência de taxas, etc.

Este são apenas exemplos que ilustram a diversidade de sistemas de regras que norteiam condutas parecidas na ação, mas diversa na conceituação jurídica.

Sei que esta explicação pode soar confusa, mas será melhor detalhada abaixo.

Por ora, basta considerar que o pagamento da sobrestadia pode ser tudo, menos pagamento de preço, concluindo-se, assim que:

Pagamento de sobrestadia não se confunde com pagamento de preço.

Se assim não fosse, os julgados não diriam que o pagamento de sobreestadia só tem lugar após o inadimplemento contratual ou estando em mora o devedor de tal valor.

Depois de um copo d'água e uma respirada profunda, o leitor já pode partir para o próximo raciocínio.

O sistema que rege a aplicação das multas, taxa ou indenização pré-fixada é diverso do sistema que rege o pagamento do preço dos contratos.

Voltemos à lei, já que a havemos.

A partir do Livro I, do Título III da Parte Especial do Código Civil, o leitor verá a inúmeras possibilidades de trabalhar com o pagamento do preço. Poderá ver a quem deve pagar, até para não ter que pagar duas vezes, poderá verificar como pagar, onde pagar, como imputar ao pagamento; enfim, se a intenção é verificar o sistema de pagamento da prestação principal do contrato, naquela parte do Código Civil é que estão as regras do jogo.

Dentre tais regras está o direito do credor de exigir o pagamento do preço à vista, caso assim esteja estipulado no contrato; como se lê expressamente no artigo 331 do Código Civil9.

Mas, repita-se, que tal artigo é uma das regras do sistema de pagamento do preço do contrato e não do sistema de pagamento da multa ou indenização pré-fixada, já que nem uma coisa, nem outra, integram o preço estipulado pelo arrendamento do contêiner.

Preço é o que se paga pela locação do cofre, dentro do free time. Para além disso, já não se fala mais de preço e não se usa mais o mesmo sistema de regras.

E se a premissa menor do raciocínio é: se pagamento de sobrestadia de container é multa, taxa ou indenização pré-fixada, segue sistema de aplicação de multa, taxa ou indenização pré-fixada, quais seriam as características deste sistema?

Aquelas previstas no Título IV, do Livro I da Parte Especial; entre os artigos 398 e 416 do Código Civil.

O credor pode cobrar juros e atualização monetária sobre tal valor; o devedor pode alegar ausência de culpa, se a escolha for pela natureza jurídica de cláusula penal (multa); sendo indivisível a obrigação, haverá solidariedade; devendo haver mora para cobrança, haverá as formas de constituição e purgação da mora, entre tantas outras regras que contemplam o pagamento de multa, taxa ou indenização previamente fixada.

O que não se pode fazer é cruzar uma regra prevista para pagamento de preço, v.g. Artigo 331, com o sistema de pagamento de multa, taxa ou indenização previamente fixada.

E se tivéssemos que sair da Parte Especial do Código Civil para visitar a Parte Geral veríamos também que a exigência de pagamento do valor da sobreestadia como condicionante para devolução do cofre é totalmente irregular.

Isso porque um contrato não pode deixar à total mercê do credor as consequências e quantificação do valor do contrato, o que redundaria - não estritamente, mas por analogia - na revelha e conhecida condição puramente potestativa prevista no artigo 122, in fine do Código Civil.10

Inclusive essa limitante estaria presente mesmo se, ao contrário de todo o dito até agora, o valor da sobreestadia fosse o próprio preço, já que até mesmo o valor da prestação principal não pode ficar totalmente a mercê de uma das partes.

Ora, alguém poderia dizer que o valor está no contrato. Mas salta aos olhos que se tal valor incide sobre uma hipótese fática (i.é dias de atraso) e o valor final redunda em quantos mais dias, mais caro, se está - repita-se, não propriamente, mas por analogia - diante de uma condição puramente potestativa.

O valor final está totalmente nas mãos do credor.

Ora, se o contrato de arrendamento do cofre passa a existir e ter validade com sua assinatura e o valor a ser pago aumenta ou diminui puramente ao alvedrio da parte credora, ainda que após o período de free time, a eficácia está viciada por um evento futuro, incerto que é a extrapolação do free time e, a partir daí, pelo puro arbítrio de uma das partes; o credor, em receber de volta o cofre.

O leitor poderia insistir. Mas a eficácia da devolução não depende só da vontade do credor. Basta o devedor pagar a dívida e tudo estará resolvido

Não é tão simples assim.

Se o devedor pagar o preço se fala de extinção do contrato e não do plano de eficácia do contrato, que é o campo no qual o contrato ainda não foi extinto e onde incidem as condições.

Mas este não é nosso tema. Haverá outras oportunidades.

Mas voltemos ao pagamento da sobreestadia com natureza diversa da do preço.

Ainda que não fosse a Parte Geral do Código Civil, os Princípio Gerais de Direito também formariam um sistema próprio a garantir o direito do devedor de devolver o contêiner, ainda que sem o pagamento à vista da sobresstadia.

O Princípio da Boa-fé contém o princípio da menor onerosidade ao devedor, não revogado pelo Código Civil de 2002 e que grassa nas relações marítimas.

Há precedente do Tribunal de Justiça de São Paulo que cita o mesmo princípio da Boa-fé dizendo que condicionar a devolução do contêiner ao pagamento integral da dívida é "Conduta que viola o princípio da boa-fé objetiva, previsto no art. 422, do Código Civil e afronta o dever de mitigar o prejuízo (duty to mitigate the loss) (..)"11

Aliás, fala-se muito do Princípio da Boa-fé e olvida-se que ele é filho do Princípio da Eticidade que, por sua vez, festeja a equidade e a justa causa.

Pergunta-se: qual a justa causa de se recusar a receber o contêiner? O não pagamento do valor da sobrestadia? Fazendo com isso que o valor suba à cada dia e o compila com isso a pagar imediatamente?

Não custa lembrar que o valor pela sobreestadia já é um tanto quanto imposto pelo locador, mas quanto a isso não vale a pena a discussão porque "os valores cobrados estão em consonância com os costumes do comercio marítimo (...)"12 e essa é uma tendência consagrada pelos precedentes jurisprudenciais.

Assim, se tudo o dito acima é verdade, conclusão lógica é que o pagamento de sobrestadia de container, não segue o sistema de pagamento de preço.

E por falar em Princípio da Eticidade, não se pode olvidar que outro dos três princípios norteadores do Código Civil é o Princípio da Socialidade, que prevê que sobre os interesses individuais dos credores estão os interesses de toda a coletividade.

Hei de concordar que dentro dos interesses da coletividade está o de prezar pelo cumprimento dos contratos (pacta sunt servanda) e de não permitir a má-fé do devedor ao procrastinar o pagamento de suas dívidas.

Exatamente por isso que o Código de Processo Civil de 2015 trouxe tantas medidas atípicas coercitivas para que o Juiz - e não o credor - cuide de não permitir a emulação do devedor no intuito de não pagar suas dívidas. São as previsões do artigo 139, IV daquele diploma legal.

Todavia, estender essas assertividades e entregá-las nas mãos do particular é flertar com a autotutela sem previsão legal, o que não se pode ver com bons olhos.  

É princípio básico do Direito que ninguém pode buscar suas razões por mão própria e toda exceção aos princípios básicos do Direito deve ser expressamente prevista em lei ou em contrato.

Eis, pois, a premissa maior do último silogismo deste ensaio.

Nos casos trazidos ao Poder Judiciário, não há previsão legal ou contratual do direito do credor de não receber o contêiner. Se houvesse uma cláusula expressa nesse sentido, faria ruir todo o dito neste artigo.

Mas não há.

Em verdade, ainda que o artigo 331 do Código Civil contivesse regra típica de sistema de pagamento de multa, taxa ou indenização prévia, ali está escrito que o credor pode exigir o pagamento a vista. Não está escrito que pode se recusar a receber a coisa locada antes de tal pagamento.

O contrário sim está previsto em lei, valendo a citação do direito de retenção do artigo 578 do Código Civil e do instituto do right of lien do Direito Estrangeiro.

A autotutela deve estar prevista em lei ou em contrato. E escrita expressamente a ponto de a interpretação gramatical não deixar dúvidas.

"Vamos descobrir toda uma categoria de direitos aos quais não se poderá aplicar  a ideia de abuso. São os direitos cujo exercício arbitrário a lei permite. (...). Esses direitos são raros, mas existem no entanto."13

Veja-se que desde o início do século passado já se previa a excepcionalidade do exercício arbitrário do Direito e da autotutela.

Não por acaso que dois dos mais brilhantes Magistrados do Estado de São Paulo, hoje em dia, deixam claro que só se deve interpretar a lei com base na boa-fé, nos usos e costumes do lugar da celebração ou ainda de acordo com a função social e outros elementos valorativos se a lei der o permissivo para tanto, usando conceitos jurídicos vagos ou indeterminados.14

E para exceções aos princípios do Direito Civil, mesmo tais conceitos vagos não devem grassar.

Ainda que assim não fosse, em nenhum lugar, seja na lei, seja no contrato, se encontram termos vagos ou indeterminados donde se possa dessumir espaço para uma interpretação autorizativa para o desmando do credor em só receber o container de volta depois de pago o preço da sobrestadia.

Sendo, pois, a autotutela, uma exceção aos princípios básicos do direito ela deve ser expressamente prevista em lei ou em contrato.

Assim não sendo, nem mesmo o Juiz pode dar validade a esta providencia.

Não nos esqueçamos que a evolução para um Estado sem permissão do exercício da autotutela é conquista que vem desde a Lei de Talião.

Finda a apresentação dos raciocínios que me propus neste artigo, há uma questão que precisa ser dita, por franqueza com o leitor.

Eu mesmo já aderi à tese ora atacada. Já entendi, em decisão reformada pela 14ª Câmara de Direito Privado, Apelação Cível nº 1001698-55.2021.8.26.0562, que a prática ora trazida à liça seria legítima.

Mas depois de analisar com mais detença inúmeros julgados do Tribunal Bandeirante, curvei-me ao entendimento para concluir não ser possível tal conduta.

Aliás, a mim parece que mesmo o precedente o Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível 1005951-86.2021.8.26.0562, citado nesta coluna como autorizador da cobrança à vista da sobrestadia, não pretendeu chancelar a recusa em receber o contêiner.

Vejam-se o porquê do meu entendimento:

Diz o Acórdão:

"Todavia, ao menos no caso concreto, ficou cristalino que: a ré não recusou o recebimento dos contêineres ou impôs pagamento prévio, mas sim o agendamento do pagamento para momento posterior à entrega (cessando as sobrestadias); o acolhimento do pedido da autora resultaria em interferência do Poder Judiciário em procedimento comercial da ré adotado com amparo no ordenamento jurídico, especificamente no art. 331 do Código Civil; é facultado à ré exigir o seu crédito imediatamente, quando não existir acordo entre as partes em sentido contrário. (...) Repise-se, partindo-se do pressuposto de que a ré pode, amparada no ordenamento jurídico vigente, exigir o seu crédito de imediato, cabia à autora, querendo interromper as sobrestadias (fls. 120/121), realizar a devolução dos contêineres e, então, invocar o Poder Judiciário para discutir a exigibilidade da fatura emitida como condição à devolução. Dessa maneira, ela preservaria o mesmo bem jurídico (interrupção da incidência das sobrestadias fls. 3/4, 120, 121), contudo, discutindo, no mesmo feito, a exigibilidade dessa verba." (destaquei)

A mim parece, com vênias supinas ao subscritor do artigo, que o Acórdão não permitiu que a devolução do contêiner fosse condicionada ao pagamento, mas sim que a devolução do contêiner fosse condicionada a confissão de dívida, consubstanciada pelo "agendamento do pagamento para momento posterior à entrega (cessando as sobrestadias" (vide Acórdão).

Aliás, até mesmo a natureza de confissão de dívida de tal agendamento é discutível, já que o julgado diz que mesmo com tal providência, poderia o devedor, além de "interromper as sobrestadias" também discutir "no mesmo feito, a exigibilidade dessa verba."

Se tira também do referido Acórdão, normativa da Antaq que também vê com maus olhos a tese do permissivo da condicionante de pagamento a vista do valor do demurrage para recebimento do contêiner.

Está no Acórdão:

"O mesmo se infere da decisão proferida pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região nos autos da ação anulatória movida pela ré em desfavor da ANTAQ - Agência Nacional de Transportes Aquaviários (fls. 247/251), "a fim de suspender os efeitos da resolução nº 7574 e do acórdão nº 250-2021, ambos da ANTAQ, proferidos nos autos do processo administrativo nº 50300.001825/2020-97, ou qualquer ato decisório que impeça a cobrança imediata da sobrestadia de contêiner na forma do art. 331 do Código Civil" (fl. 248), cujo trecho é transcrito a seguir:

(...)

"Na espécie, as Autoras estão impedidas de exigir o pagamento de sobrestadias de contêineres antes das devoluções dos equipamentos, até que a Agência promova o julgamento do mérito do respectivo processo administrativo. Observo, contudo, que não há qualquer prova nos autos de que vem ocorrendo a prática de cobrança antecipada de sobrestadias pela parte autora, tendo, inclusive, a própria ANTAQ, em sua manifestação (ID 663366497), reconhecido que o que as Autoras têm exigido no ato de agendamento da devolução é o comprovante de agendamento de pagamento, com vencimento para pagamento de até 24 (vinte e quatro) horas após a efetiva devolução da unidade, o que configura uma forma de cobrança imediata e não antecipada.

(...)

Por sua vez, a cobrança por atraso na entrega dos contêineres, conhecida como sobrestadia/demurrage, está autorizada e definida pela Resolução Normativa nº 18, de 21 de dezembro de 2017, editada pela ANTAQ, senão vejamos:

(...)

Portanto, em princípio, tenho que, sendo a prática reconhecida e validada pela ANTAQ e não estando demonstrado que as Autoras a realizam de forma antecipada, a ANTAQ não pode suspender a cobrança imediata da sobrestadia de contêiner, por estar a referida cobrança amparada na lei." (DES. JOSÉ MARRONE, Apelação Civel já citada - destaquei)

Análise gramatical insiste em concluir.

Cobrar a vista é possível.

Condicionar a devolução do contêiner ao pagamento, não é possível.

E assim como me curvei diante dos precedentes da Corte Bandeirante e do Superior Tribunal, sempre em nome da segurança jurídica, que se sobrepõe minha opinião pessoal, voltaria a decidir de forma contrária a esta minha opinião, lançada neste ensaio, caso a tendência majoritária da jurisprudência enveredasse para sentido oposto.

Entrementes, em nome da mesma segurança jurídica e da lógica que deve grassar para que ela seja alcançada, tenho que concluir que não é lícito ao credor condicionar a devolução do container ao prévio pagamento do valor de sobreestadia do contêiner.

Penso, inclusive, que tal recusa poderia ensejar por parte do devedor o depósito em Juízo do cofre, por recusa injustificada do credor de receber a coisa de volta, o que desaguaria num imbróglio processual para o Poder Judiciário.

Entre essa circunstância e concluir que os ratos não podem comer a lua, fico com a segunda opção, ainda que a detecção do sofisma seja tarefa que demande um pouco mais de atenção à lógica jurídica.

__________

1 Carlos Roberto Gonçalves in Sinopses Jurídicas, volume 05, Editora Saraiva

2 A natureza de indenização previamente fixada para o demurrage é a adotada pela maioria esmagadora dos precedentes, que também sempre citam a expressão 'mora' ou 'inadimplemento contratual', como fato gerador, comprovando que não se confunde com a prestação principal. No sentido vide C. Superior Tribunal de Justiça (REsp 1286209/SP, Relator Ministro João Otávio de Noronha, 3ª Turma, v.u., j. em 08/03/2016, neste com menção a outros - REsp n. 678.100/SP, Terceira Turma, relator Ministro Castro Filho, DJ de 5.9.2005; REsp n. 526.767/PR, Primeira Turma, relatora Ministra Denise Arruda, DJ de 19.9.2005; REsp n. 908.890/SP, Segunda Turma, relator Ministro Castro Meira, DJ de 23.4.2007; AgRg no Ag n. 932.219/SP, Primeira Turma, relator Ministro Teori Zavascki, DJ de 22.11.2007; e AgRg no Ag n. 950.681/SP, Primeira Turma, relator Ministro José Delgado, DJe de 23.4.2008 - REsp n. 1.295.900/PR, Primeira Turma, relator Ministro Benedito Gonçalves, DJe de 19.4.2013 e REsp 1554480/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª T. v.u., j. 17/10/2017. No mesmo sentido, o E. TJSP: Apelação Cível nº 1022016-25.2022.8.26.0562, Apelação Cível nº 1017610- 92.2021.8.26.0562, o Apelação Cível nº 1006690-93.2020.8.26.0562

3 "A unidade de carga deve ser devolvida após do decurso do prazo de devolução e isenção fixado contratualmente. Denomina-se free time o prazo de isenção de demurrage , a contar do primeiro dia útil seguinte ao dia em que o container é posto à disposição do consignatário" (OCTAVIANO MARTINS, Eliane M. in Curso de Direito Marítimo - Volume III, Ed. Manole, pag. 536. Ed. 2015)

4 Idem

5 STJ - Resp 1.192.847/SP

6 TJSP - Autos 1019827-16.2018.8.26.0562

7 Flávia Morais Lopes Takafashi e Luciana Vaz Pacheco de Castro

In Porto, Mar e Comércio Internacional POR ELAS, Wista Brazil, pag. 173/174

9 Art. 331. Salvo disposição legal em contrário, não tendo sido ajustada época para o pagamento, pode o credor exigi-lo imediatamente

10 Art. 122. São lícitas, em geral, todas as condições não contrárias à lei, à ordem pública ou aos bons costumes; entre as condições defesas se incluem as que privarem de todo efeito o negócio jurídico, ou o sujeitarem ao puro arbítrio de uma das partes.

11 Apelação Cível nº 1001698-55.2021.8.26.0562

12 TJSP Autos 1019827-16.2018.8.26.0562

13 RIPERT, Georges in A Regra Moral nas Obrigações Civis, Bookseller, pag. 182/183

14 TOSTA, Jorge e BENACCHIO, Marcelo in Negócio Jurídico - A interpretação dos Negócios Jurídicos  - Ed. Quartier Latin - Coordenação Armando Sérgio Prado de Toledo.