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Desafios da retenção indevida de contêineres

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

Atualizado às 09:06

O contêiner transformou o transporte marítimo de mercadorias de modo que hoje é inimaginável a movimentação de cargas sem essa importante unidade. Para alguns, há inclusive a compreensão de que o transporte marítimo de mercadorias e o contêiner são contemporâneas, todavia, a unidade de carga data de 1956, tendo sua padronização apenas em 1968, ou seja, um advento extremamente recente - especialmente se considerarmos que o Código Comercial Brasileiro, datado de 1850 ainda vigora quanto a determinados assuntos de direito marítimo.

Em pouco tempo, o contêiner já se tornou imprescindível. Sua utilização garante melhor aproveitamento de espaço nas embarcações, bem como confere agilidade e segurança às operações de carga e descarga. O contêiner é tão útil que muitos esquecem que é parte integrante do navio e não embalagem.

O contêiner é bem individualizado, conforme código de identificação provido pela BIC - Bureau International des Containers, admitido em território nacional mediante regime especial aduaneiro de admissão temporário, do que decorre sua infungibilidade. Não bastasse, é bem limitado, cuja produção é menor que a demanda, bem como há severas exigências de resistência e adequação de sua fabricação.

Esses elementos demonstram a necessária compreensão de que o contêiner é elemento do navio conteineiro (ou porta-contêineres), embarcação construída ou adaptada para o transporte de mercadorias conteinerizadas.

A carga não depende de contêiner, é apenas nele acomodada para realização do transporte marítimo com maior agilidade e segurança, permitindo que o produto chegue em perfeito estado no momento da entrega. O contêiner não é embalagem daquela carga, a qual poderia ser armazenada em outros objetos caso não fosse a necessidade de embarque da mercadoria em um navio porta contêineres. O contêiner é um acessório do navio, configurando uma unidade ou local em que determinada carga é acondicionada para o seu transporte.

Ainda, embora o contêiner ofereça comodidade ao armazém, alfandegado ou não, também não é essencial para essa atividade, na qual as mercadorias podem ser armazenadas soltas ou em unidades não uniformes, o que não pode ocorrer no transporte marítimo.

Portanto, tem-se que o contêiner é bem individualizado, viabilizando, deste modo, o transporte marítimo de mercadorias em navios porta-contêineres. No mais, embora ele ofereça comodidade para outras atividades, como transporte terrestre ou depósito de mercadorias, esse não é o seu fim, não podendo o Terminal Alfandegado, ou até mesmo o importador, manter-se na posse do contêiner após o período acordado com o transportador marítimo.

Inclusive a lei 9.611/1998 assim determina:

DA UNIDADE DE CARGA

Art. 24. Para os efeitos desta Lei, considera-se unidade de carga qualquer equipamento adequado à unitização de mercadorias a serem transportadas, sujeitas a movimentação de forma indivisível em todas as modalidades de transporte utilizadas no percurso.

Parágrafo único. A unidade de carga, seus acessórios e equipamentos não constituem embalagem e são partes integrantes do todo.

Ou seja, por pelo menos 25 anos há lei que reconhece que o contêiner não se confunde com a mercadoria, não é embalagem. Todavia, os desafios da retenção indevida de unidades por terminais e armazéns alfandegados ainda são recorrentes, dificultando inclusive o cumprimento de contratos de transporte, quando não inviabilizando.

A crise mundial de contêineres tornou-se pública em 2022, divulgada por diversos órgãos de imprensa e decorrente do aumento da demanda, da queda da produção de unidades, agravada pelas medidas adotadas pela China durante a pandemia, pois o país é o principal produtor de contêineres. Não menos importante, a crise decorre também da retenção das unidades em terminais e depósitos alfandegados.

O abandono de cargas pelos seus importadores ou exportadores é uma realidade. Por motivos diversos, agentes do comércio internacional não conseguem concluir as operações de compra e venda, seja por problemas contratuais ou impossibilidade de atendimento das exigências legais. Com isso, abandonam a mercadoria conteineirizada nos pátios das zonas alfandegadas, fazendo com que os Terminais e Armazéns Alfandegados se recusem a devolver o contêiner, precisando o transportador adotar, nestes casos, as medidas adequadas para que possam reaver as unidades e reinseri-las na cadeia logística em outros transportes.

Ainda, existem as penalidades aduaneiras que impedem a finalização das operações de importação e exportação, levando ao perdimento da mercadoria em favor da Receita Federal do Brasil, a qual também se utilizada das zonas alfandegadas para a guarda dessas mercadorias.

Nessa pluralidade de cenários possíveis, há uma constante: alguns terminais e armazéns alfandegados tem se recusado a desunitizar as mercadorias e devolver os contêineres aos seus armadores. Os argumentos são diversos, mas não encontram amparo na lei, pois em verdade buscam revestir de alguma legalidade a retenção indevida dessas unidades para comodidade do próprio terminal.

Cumpre destacar que os terminais e armazéns alfandegados, na condição de delegatários de um serviço público, são obrigados a manter instalações para depósito de mercadorias apreendidas e perdidas em favor da Receita Federal do Brasil. Trata-se de uma obrigação legal assumida durante o processo de alfandegamento, a qual não condiciona a retenção do contêiner, em hipótese alguma.

Como dito, a unidade de carga é parte do navio e pertence à embarcação, não sofrendo apreensão junto da mercadoria. Inclusive, esse é o posicionamento uniforme das Alfândegas da Receita Federal do Brasil, sendo que muitas já têm portarias publicadas dispensando o processo administrativo prévio ao requerimento de desunitização ao terminal ou armazém.

A situação fática assim se desenha: o transportador verifica que a unidade não retornou à frota e a localiza em área alfandegada, todavia, ao requisitar a devolução do contêiner, é informado pela administração do terminal ou do armazém que isso não pode ser feito. Muitos, inclusive, condicionam indevidamente a liberação do contêiner ao pagamento de tarifas de armazenagem que são devidas pelo importador, e não pelo proprietário da unidade de carga.

Em alguns casos, o terminal inicialmente condiciona ao requerimento administrativo perante a RFB, mas mesmo depois do deferimento ainda há dificuldades para desova, a maioria das vezes em razão da falta de área para armazenamento de carga solta.

Embora o acúmulo de mercadorias nos terminais e armazéns seja um efetivo problema, não é legítimo ou legal que esse risco seja transferido ou compartilhado com o transportador. Sem dúvidas os contêineres oferecem facilidade no armazenamento das mercadorias, mas não pode o terminal ou armazém se beneficiar de um bem de terceiro a título gratuito, principalmente quando isso impede o terceiro de cumprir com suas obrigações contratuais.

O armazenamento de mercadorias é um risco decorrente do negócio de área alfandegada. O armazenamento da mercadoria, antes ou depois de seu perdimento e abandono, não se dá em benefício do transportador, mas do consignatário, do embarcador e da própria Receita Federal do Brasil. Nestes casos, não apenas o transportador sai perdendo, pois deixa de dispor em sua frota de um grande número de unidades, impedindo o uso de um bem particular, indispensável para o exercício da atividade econômica do transportador marítimo, mas toda a cadeia logística acaba sofrendo com a escassez de unidades de carga e consequente aumento de custos logísticos.

Essa postura da grande maioria dos terminais e armazéns tem levado ao ajuizamento de diversas ações judiciais visando a devolução de contêineres indevidamente retiros pelos terminais. Dentre as decisões, destacam-se:

E M E N T A MANDADO DE SEGURANÇA. APREENSÃO DE MERCADORIA E CONTAINER. UNIDADE DE CARGA ACESSÓRIA EM RELAÇÃO À MERCADORIA TRANSPORTADA. IMPOSSIBILIDADE DE RETENÇÃO 1. A Lei nº 9.611/98 que dispõe sobre o Transporte Multimodal de Cargas estabelece em seu artigo 24: "Art. 24 Para os efeitos desta Lei, considera-se unidade de carga qualquer equipamento adequado à unitização de mercadorias a serem transportadas, sujeitas a movimentação de forma indivisível em todas as modalidades de transporte utilizadas no percurso.Parágrafo único. A unidade de carga, seus acessórios e equipamentos não constituem embalagem e são partes integrantes do todo." 2. In casu, a mercadoria acondicionada no referido container de propriedade da impetrante não foi desembaraçada, o que evidencia que tais mercadorias foram abandonadas pelo importador. 3. Conforme entendimento pacificado na jurisprudência, a unidade de transporte não se confunde com a mercadoria nele transportada, de modo que a retenção da unidade em face da apreensão das mercadorias se mostra ilegal. 4. Com efeito, a apreensão das mercadorias, tidas por abandonadas, foi regular e encontra amparo na legislação aduaneira, no entanto, o mesmo não se aplica em relação ao container, porquanto este se encontra sujeito a regime aduaneiro distinto e com as mercadorias não se confunde por não se constituir em embalagem das mesmas. 5. Desta feita, conclui-se que a unidade de carga, que não constitui embalagem e, muito menos integra a mercadoria importada, não poderia ser retida por eventuais falhas no procedimento da importação que são de responsabilidade do importador e impedir o uso de um bem particular, essencial para o exercício da atividade econômica de transporte marítimo, em razão de omissão de terceiro, implica em prejuízos ao impetrante. 6. Ademais, pontuo que o responsável pela manutenção e guarda da mercadoria é o recinto alfandegado, o qual inclusive é remunerado para tanto, e não a transportadora. A desunitização no interior do recinto alfandegado em nada prejudica eventual procedimento administrativo. 7. Remessa oficial improvida.

(TRF-3 - RemNecCiv: 50072685520194036104 SP, Relator: Desembargador Federal MARCELO MESQUITA SARAIVA, Data de Julgamento: 12/06/2020, 4ª Turma, Data de Publicação: Intimação via sistema DATA: 16/06/2020).

ADMINISTRATIVO. APREENSÃO DE CARGA ABANDONADA. RETENÇÃO DE CONTÊINER. LEIS 6.288/75 E 9.611/98. 1. Segundo o artigo 24 da Lei 9.611/98, os contêineres constituem-se em equipamentos que permitem a reunião ou unitização de mercadorias a ser transportadas, não podendo ser confundidos com embalagem ou acessório da mercadoria transportada. 2. Inexiste amparo jurídico para a apreensão de contêineres, os quais, pela sua natureza, não se confundem com a própria mercadoria transportada. 3. Recurso especial improvido.

(STJ. REsp 908890 SP 2006/0267749-1, Relator: Min. Castro Meira. Data de Julgamento: 10/04/2007. Segunda Turma. Data de Publicação: 23/04/2007)               

[...] Não existe amparo jurídico para apreensão de contêiner, não podendo se confundir a unidade de carga com a mercadoria nela transportada. Assim, resta claro a responsabilidade da ré na desunitização das mercadorias abandonadas. A matéria envolvendo a proibição de retenção de contêiner, inclusive em casos de perdimento de mercadorias retidas pela Alfândega Brasileira, mostra-se pacífica nos nossos Tribunais: "ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL. APREENSÃO DE CARGA. RETENÇÃO DE CONTÊINER. LEIS nos 6.288/75 E 9.611/98.(...) 2. Segundo o art. 24 da Lei nº 9.611/98, os contêineres constituem equipamentos que permitem a reunião ou unitização de mercadorias a serem transportadas. Não se confundem com embalagem ou acessório da mercadoria transportada. Inexiste, assim, amparo jurídico para a apreensão de contêineres. 3. Agravo regimental não provido".(STJ, AgRg no AI nº 949.019/SP, 2ª-T., v.u., j. em 5.8.2008, Rel. Min. CASTRO MEIRA)." Ademais, a requerida, como armazém de terminal alfandegado, tem obrigação legal de manter local adequado para depósito e guarda das mercadorias apreendidas, nos termos da Portaria da Receita Federal Brasileira nº 3.518, de 30 de setembro de 2011. [...] Frise-se, outrossim, que a apreensão formal das mercadorias realizados pela Alfândega Brasileira, por meio dos termos de apreensão e guarda fiscal, não alcançam as unidades de transporte (contêineres), razão pela qual a sua desunitização e devolução independe de autorização da autoridade alfandegária. [...] 

(Processo nº 1000931-56.2017.8.26.0562, 1ª Vara Cível de Santos-SP, Juiz Paulo Sergio Mangerona, julgado em 26.04.2017) (Grifamos) 

"EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. FALTA DE INDICAÇÃO INEQUÍVOCA DE OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU OBSCURIDADE. IMPOSSIBILIDADE. RETENÇÃO DE CONTEINER. ATO ILEGAL. PROCEDIMENTO DE DESUNITIZAÇÃO. INCUMBÊNCIA DIRETA DO TERMINAL DEPOSITÁRIO. IMPROVIMENTO. (...) 4 O acórdão foi claro ao dizer que a retenção dos contêineres em virtude da pena de perdimento aplicado às mercadorias é ilegal, posto que estes não constituem mera embalagem, mas parte integrante do todo.5 - Por outro lado, o acórdão foi expresso ao esclarecer que o procedimento de desunitização pode ser diretamente solicitado no recinto depositário, independendo de prévia autorização da Alfândega, sendo certo que esta deve garantir que o procedimento foi efetivamente realizado.(...) 7 - Embargos de Declaração conhecidos e improvidos." (TRF-2ª Região, 6ª Turma Especializada, EDCL em MS nº 2008.51.01.017789-6, j. em14.6.2011, Rel. Des. GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA) (Grifamos) 

TUTELA ANTECIPADA. Obrigação de fazer. Containers. Devolução. Mercadoria apreendida pela Alfândega, juntamente com as unidades de carga utilizadas para seu transporte internacional. Impossibilidade de retenção dos containeres. Alegação de ilegitimidade, por ausência de determinação da Alfândega para liberação dos containers. Descabimento. A desunitização (retirada das mercadorias do container). Independe de comando formal da Receita Federal. Aplicação da Ordem de Serviço nº 4, de 29.9.2004, da alfândega do porto de Santos. Manutenção da liminar para imediata devolução dos containers, inclusive a imposição da multa diária, cabível ao caso e fixada em montante moderado. RECURSO NÃO PROVIDO. (Agravo de Instrumento nº 0162296-52.2012.8.26.0000, 13.04.13. da Comarca de Santos, REL.FERNANDO REDONDO).

Portanto, diante de uma situação de flagrante ilegalidade, na qual o terminal ou depósito retém indevidamente um bem de terceiro, que não o titular da carga, bem este que consiste em um acessório do navio e não deveria servir como embalagem, por tempo indeterminado - inclusive disso decorre a deterioração da unidade, o transportador tem como alternativa o socorro do Poder Judiciário, que felizmente tem, em regra, reconhecido o direito à imediata devolução das unidades, em caráter liminar.

Assim, tendo em vista que a retenção indevida de unidades tem se agravado nos últimos anos e a solução urgente desse problema interessa a todos os envolvidos na cadeia do transporte marítimo, mais do que buscar transferir ou compartilhar os ônus, é relevante que os diversos agentes atuem de modo integrado para solucionar esse entrave que dificulta principalmente as operações de exportação, fundamentais para a balança comercial brasileira.