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O processo do Tribunal Marítimo e a suspensão do processo judicial sobre os mesmos fatos

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

Atualizado às 07:47

Muito já foi falado, neste espaço, sobre o art. 18 da lei 2.180/54 (Lei do Tribunal Marítimo - TM) e os possíveis efeitos da decisão da Corte do mar sobre o processo judicial que trate dos mesmos fatos. No entanto, a par deste dispositivo - e mesmo de modo a dar maior coerência ao sistema - o art. 19 da mesma Lei prevê a suspensão do processo judicial, na pendência do processo marítimo.  Eis o seu teor:

Art. 19. Sempre que se discutir em juízo uma questão decorrente de matéria da competência do Tribunal Marítimo, cuja parte técnica ou técnico-administrativa couber nas suas atribuições, deverá ser juntada aos autos a sua decisão definitiva. 

Com já dito aqui, anteriormente, tal juntada é obrigatória, incorrendo em ilegalidade a decisão judicial que a dispensa.  Todavia, um problema prático se coloca: e quando não existir, ainda, decisão do TM, por ter o processo judicial tramitado mais rápido que o processo administrativo relativo ao acidente ou fato da navegação (AFN)?

Antes mesmo do CPC/15, já havia quem defendesse a suspensão do processo judicial, até que houvesse decisão do TM.

Eliane Octaviano Martins faz percuciente análise do tema, concluindo com a seguinte e ponderada síntese:

"A suspensão do processo judicial para que se aguarde decisão final do TM não importa, per se, em afastabilidade da jurisdição. Não se trata de sobreposição de cláusula contratual a princípio constitucional nem de concorrência de jurisdição. Trata-se de produção de prova técnica que será valorada pelo juiz que decidirá ou não pela sua influência. (...) Se a decisão do TM for relevante para o deslinde da questão, há que se atender ao comando do art. 19 da LOTM e proceder à suspensão do processo judicial para possibilitar a juntada aos autos da decisão definitiva do TM."1

Manifestando, desde logo, concordância com tal análise, pode-se acrescentar outra consideração: a suspensão do processo judicial, ainda no CPC revogado, encontrava fundamento justamente da combinação do art. 19 da lei 2.180/54 com o art. 265, IV do Código:

Art. 265. Suspende-se o processo:

IV - quando a sentença de mérito:

a) depender do julgamento de outra causa, ou da declaração da existência ou inexistência da relação jurídica, que constitua o objeto principal de outro processo pendente;

b) não puder ser proferida senão depois de verificado determinado fato, ou de produzida certa prova, requisitada a outro juízo; (não destacado no original)

É possível, sem dificuldade, subsumir a decisão do TM a "determinado fato", expressão utilizada na parte inicial da alínea "b".  Mesmo quanto à alínea "a", porém, e até mesmo quanto à parte final da alínea "b", a evidente referência a outro "juízo", isto é, a outro órgão do Poder Judiciário, não impede que, ao menos por analogia, se entenda possível a suspensão.

Não havia maiores dificuldades, assim, em concluir pela suspensão, no regime do CPC/73.  Todavia, dois outros pontos merecem reflexão.

Em primeiro lugar, o fato de não haver uma determinação legal expressa, deixava a suspensão ao livre arbítrio de cada juiz, o que resultava em grande diversidade de procedimentos.  Eliane Octaviano, ao tratar do tema, também reporta julgados em sentidos diferentes (contra ou a favor da suspensão), na análise da jurisprudência2.

Em segundo lugar, a suspensão do processo judicial não é uma garantia efetiva de que a decisão do TM chegará aos autos judiciais ainda na fase probatória (antes da sentença), diante da limitação constante do § 5º do mesmo art. 265 do Código revogado:

§ 5º. Nos casos enumerados nas letras a, b e c do IV, o período de suspensão nunca poderá exceder 1 (um) ano. Findo este prazo, o juiz mandará prosseguir no processo.

Fernando Viana, ao mesmo tempo em que se manifesta, com absoluta naturalidade, pela obrigatoriedade da suspensão (que decorreria diretamente do art. 19 da lei 2.180/54), também entende aplicável o limite temporal de um ano:

"É sabido que o juiz togado deve suspender o processo judicial para aguardar a juntada da decisão definitiva do TM, consoante a regra do art. 19 da lei. Mas o tempo de suspensão do processo, por não ter sido fixado pelo legislador, tornou-se discutível. Penso que a melhor solução está na adoção da regra de suspensão prevista no CPC, aliada ao princípio da razoabilidade. Vale dizer, suspende-se por um ano, prorrogável por igual período, para que a Corte Especializada finalize o processo marítimo e remeta-o ao julgador togado, como peça de valor probante iuris tantum para a formação do convencimento judicante."3 (não destacado no original)

O Superior Tribunal de Justiça apreciou o tema, já em 2017, mas em recurso interposto contra decisão proferida ainda na vigência do Código anterior.  Em acórdão relatado pelo Ministro Moura Ribeiro, a Corte deu provimento ao recurso especial, para determinar o prosseguimento de processo suspenso pelo TJSP.  A ementa é a seguinte:

"PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. RECURSO MANEJADO SOB A ÉGIDE DO CPC/73. AÇÃO REGRESSIVA PROPOSTA PELA SEGURADORA CONTRA FÁBRICA DE IATES. SUSPENSÃO DO PROCESSO. ART. 265, IV, B, DO CPC/73. PREJUDICIALIDADE EXTERNA. PRAZO MÁXIMO DE UM ANO. PRECEDENTES. DESNECESSIDADE DO TÉRMINO DO PROCEDIMENTO EM ANDAMENTO PERANTE O TRIBUNAL MARÍTIMO. RELAÇÃO DE PREJUDICIALIDADE AFASTADA NO CASO CONCRETO. IMPOSSIBILIDADE DE MANUTENÇÃO DA DECISÃO DE SUSPENSÃO DO PROCESSO. PRECEDENTES. PRAZO DE HÁ MUITO ULTRAPASSADO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO."4

Embora se tenha feito alguma menção à "inexistência de prejudicialidade", o fato é que o provimento do recurso se deu, especialmente, em razão da circunstância de a suspensão já ter ultrapassado o prazo máximo de um ano, como se colhe do seguinte trecho da fundamentação:

"Nesse contexto, o acórdão recorrido encontra-se em dissonância com o entendimento prevalecente no âmbito desta Corte Superior de que consoante § 5º do art. 265, nos casos enumerados nas letras a, b e c do no IV, o período de suspensão nunca poderá exceder 1 (um) ano. Findo este prazo, o juiz mandará prosseguir no processo."

Como se percebe, era pacificado o entendimento, também na jurisprudência, de que o limite máximo de um ano era aplicável à suspensão do processo em razão de pendência de julgamento do AFN pelo TM.

Bastante original é o enfoque do trabalho de Larissa Thomaz Coelho, apresentado no XXV Encontro Nacional do CONPEDI (Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito), em julho de 2016.  A autora critica a aparente contradição legal, ao se relativizar o valor das decisões do TM (na qual ela se filia à corrente minimalista, em que esse valor seria diminuto) e, ao mesmo tempo, determinar a suspensão do processo, com suposto prejuízo para a celeridade e efetividade jurisdicionais. Aparentemente, Larissa Coelho se coloca, de lege ferenda, contra a referida suspensão, por entendê-la desnecessária e incompatível com a busca de um processo célere:

"Com recorrência, os tribunais comuns adotam a prática de sobrestar o processo judicial de modo a aguardar o pronunciamento do Tribunal Marítimo. Para legitimar essa atitude, os magistrados agarravam-se, de maneira irrestrita e arrebatadora, ao argumento - correto, é verdade - de que o órgão administrativo é quem detém a capacidade técnica necessária para apuração das questões marítimas.

Ocorre que justificar essa suspensão do processo judicial com base apenas na especialização do Tribunal Marítimo configura-se como uma motivação um tanto quanto rasa.

Como analisado, esse tribunal administrativo e o Poder Judiciário são independentes, autônomos, de modo que as decisões daquele não apresentam aptidão legal para vincular aquelas emanadas por este. Assim, por mais tecnicamente apurado que seja o parecer, por maior que seja o auxílio que ele prestará ao magistrado, nada disso justifica o sobrestamento do processo judicial."5 (não destacado no original)

Igualmente original, mas em sentido oposto, é a tese de Mônica Pimenta Júdice, que sustentava, antes do CPC/15, que a decisão do TM seria até mesmo documento indispensável à própria petição inicial:

"De modo que, conforme as premissas traçadas, verificada a ausência do documento indispensável (acórdão do Tribunal Marítimo) na petição inicial do processo indenizatório, nos termos da legislação (art. 283 do CPC/73), deveria o magistrado promover a extinção do processo sem julgamento de mérito (art. 267, I do CPC/73) ou, ainda melhor, a suspensão do processo judicial, em razão da prejudicialidade externa da decisão (art. 265, IV, "a" do CPC/73)."6

Reconhece a autora, porém, que tal entendimento não vinha sendo predominante: "Todavia, não é assim que atualmente se interpreta a LOTM, que ainda é presa a conceitos não contextualizados e atualizados em um Estado Democrático de Direito."7

Esse era o estado da arte, quanto à matéria, quando promulgado o CPC de 2015, no qual a suspensão foi positivada no art. 313,V:

Art. 313.  Suspende-se o processo:

VII - quando se discutir em juízo questão decorrente de acidentes e fatos da navegação de competência do Tribunal Marítimo;

O dispositivo, vale dizer, veio em boa hora, garantindo efetividade ao comando do art. 19 da lei 2.180/54, pois elimina as dúvidas quanto à importância do acórdão do TM para o julgamento de questões decorrentes dos AFN no Judiciário.  Se antes havia quem sustentasse que a suspensão seria uma faculdade do juiz, agora já não se pode ter dúvida da sua obrigatoriedade, e a negativa da suspensão representará violação literal de dispositivo de lei federal.

Nesse sentido, Mônica Júdice saúda a inovação:

"Nessa toada, o novo Código surpreende positivamente, quando destaca a necessidade de que se suspenda o processo judicial quando se discutir em juízo questão decorrente de acidentes e fatos da navegação de competência do Tribunal Marítimo."8

Se não há dúvida quanto à obrigatoriedade da suspensão, outra questão permanece em aberto: e se a decisão do TM demora a ser prolatada?  O processo judicial deverá ficar suspenso por tempo indeterminado, até que se possa dar cumprimento integral ao art. 19 da Lei 2.180/54?

No Código anterior, a interpretação mais comum era de que a suspensão deveria se limitar ao período de um ano, nos termos do seu § 5º do art. 265. Para Fernando Viana, como visto acima, esse prazo ainda podia ser prorrogado por mais um ano (totalizando dois anos de suspensão).

Tal solução, todavia, deixa sem resposta uma aparente violação ao art. 19 da Lei 2.180/54, que diz que a decisão do TM deverá ser juntada aos autos, sem estabelecer prazos ou exceções.

No CPC/15, a questão dos limites de suspensão mereceu nova e detalhada disciplina.  Para uma melhor visão sistemática do tema, os dispositivos foram agrupados na tabela a seguir, em que na coluna da direita estão transcritos os dispositivos que tratam dos prazos de suspensão (parágrafos do art. 313) e, na esquerda, os que tratam das respectivas hipóteses (incisos do mesmo art. 313).  Os destaques não são do original.

 (Imagem: Divulgação)

(Imagem: Divulgação)

Pois bem: o inciso VII - que trata da suspensão para que se aguarde a decisão do TM - não foi objeto de qualquer limitação expressa de prazo.  De plano, duas interpretações seriam possíveis:

a de que o legislador pretendeu, efetivamente, inovar, criando uma suspensão por prazo indeterminado e

a de que se deve aplicar o limite de um ano do § 4º, que incide sobre a hipótese do inciso V (prejudicialidade externa), o qual, por sua vez, reproduz o art. 265, IV do CPC revogado, no qual se baseava, no regime anterior, a suspensão do processo judicial.

Numa análise inicial, tenderia a optar pela primeira hipótese, pois é a que garantiria total efetividade ao art. 19 da lei 2.180/54, além de garantir a busca pela solução mais justa e com maior suporte técnico quanto à apuração de responsabilidades no AFN.  Em suma, a obrigatoriedade de juntar sempre a decisão do TM - independentemente do tempo de suspensão que a espera possa ocasionar - trabalharia em favor da efetividade da própria jurisdição e de maior justiça da decisão. 

Entretanto o simples cotejo dos textos legais nem sempre oferece a melhor solução para o intérprete. Desde a segunda metade do Século XX, quando o "habitat natural"9 dos princípios deixou de ser o Código Civil e passou a ser a Constituição - que passou a ocupar o centro do sistema jurídico em lugar daquele - nenhuma atividade interpretativa pode dispensar a incidência dos princípios constitucionais. Como ensina Luís Roberto Barroso:

"A eficácia interpretativa consiste em que o sentido e alcance das normas jurídicas em geral devem ser fixados tendo em conta os valores e fins abrigados nos princípios constitucionais. Funcionam eles, assim, como vetores da atividade do intérprete, sobretudo na aplicação de normas jurídicas que comportam mais de uma possibilidade interpretativa."10

Nesse sentido, entendo que a questão não pode ignorar o princípio inserto no art. 5º, LXXVIII da Constituição Federal:

Art. 5º. (...)

LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.

Assim, embora a juntada da decisão do TM seja obrigatória (art. 19 da lei 2.180/54), assim como a suspensão do processo judicial (art. 313, VII do CPC) e, mais do que isso, seja fator importante para a efetividade da jurisdição, a suspensão por prazo indeterminado seria incompatível com norma de maior hierarquia, qual seja, o art. 5º, LXXVIII da Constituição Federal.

Desse modo, ainda que a intenção do legislador do CPC/15 fosse a de estabelecer uma suspensão sem prazo-limite, no caso do inciso VII, isso seria impossível à luz do direito fundamental à duração razoável do processo.

Conclui-se, então, que deve haver algum limite temporal à suspensão do processo.  Esse limite poderia ter sido fixado pelo legislador em 6 meses, 1 ano ou 2 anos.  Mas o fato é que o CPC/15, deliberadamente ou não, é omisso quanto a esse prazo.

Estabelecida essa premissa, a determinação do prazo-limite não é difícil: a analogia com o inciso V (do qual o inciso VII, a rigor, é um mero desdobramento) aponta para o prazo máximo de um ano de suspensão, nos termos do § 4º do art. 313 do CPC/15.

Conclui-se, então, que a suspensão do processo judicial, quando aplicável o art. 19 da Lei 2.180/54, é obrigatória, nos termos do art. 313, VII do CPC/15, mas deve ocorrer pelo prazo máximo de um ano, por incidência do art. 5º, LXXVIII da Constituição Federal (que impede a suspensão por prazo indeterminado) e aplicação analógica do § 4º do art. 313 do CPC.

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1 MARTINS, Eliane M. Octaviano. Curso de Direito Marítimo, vol. III. Barueri: Manole, 2015, p. 343.

2 MARTINS, op. cit., p. 341-343.

3 VIANA, Fernando. A Sentença do Tribunal Marítimo e Sua Eficácia Perante o Poder Judiciário. Disponível aqui, acesso em 16/12/2016.

4 REsp 1.606.542-SP, Relator Ministro Moura Ribeiro, decisão proferida em 16/02/2017. 

5 COELHO, Larissa Thomaz. A decisões do Tribunal Marítimo brasileiro no âmbito do Poder Judiciário: a contraditória valoração atribuída aos pareceres técnicos do referido órgão administrativo no ordenamento jurídico pátrio. In: Claudia Maria Barbosa; Mônica Bonetti Couto; Ynes Da Silva Félix. (Org.). Política judiciária, gestão e administração da justiça. 1ª ed. Florianópolis: Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito, 2016, p. 212.

6 JÚDICE, Mônica Pimenta. O Direito Marítimo no Código de Processo Civil. Salvador: Jus Podivm, 2015, p. 192-193.

7 JUDICE, op. e loc. cit.

8 JÚDICE, op. cit., p. 193.

9 A expressão se encontra em FLÓRES-VALDÉS, Joaquín Arce. Los princípios del Derecho y su formulación constitucional. Madri: Editoral Civitas, 1990, p. 93-97, segundo noticia SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 49.

10 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 343.