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Cruzeiros marítimos: Breves comentários sobre suas controvérsias jurídicas

quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

Atualizado às 09:04

Poucas indústrias foram tão impactadas pela pandemia quanto a do turismo. Mas, dentro da indústria do turismo, uma das atividades mais afetadas foi, sem dúvida, a dos cruzeiros marítimos, em razão de suas especificidades. Os leitores da coluna possivelmente se recordarão de que, em fevereiro de 2020, no início da pandemia, quase 4.000 passageiros do navio cruzeiro Diamond Princess, que zarpou da cidade de Yokohama, no Japão, foram mantidos em quarentena durante semanas após um dos passageiros desembarcar em Hong Kong com sintomas de Covid-19.

Os dias seguintes foram trágicos com mais de 700 passageiros contaminados e 14 mortes, levando autoridades sanitárias do mundo inteiro a impor severas restrições à realização dos cruzeiros marítimos, algumas vezes até de forma desproporcional ou incompatível com as restrições impostas a outras atividades, o que foi posteriormente questionado pelas associações e companhias de cruzeiros marítimos. Fato é que, no período de quase três anos, aproximadamente, a indústria de cruzeiros sofreu prejuízos bilionários, com perda de milhares de empregos diretos e indiretos.

Felizmente, essa indústria mostra uma retomada vigorosa, com boas notícias no horizonte. O setor que, ano passado, injetou cerca de R$ 1,4 bilhão na economia do país -- antes da pandemia esse número era de quase R$ 2 bilhões/ano -- promete trazer resultados ainda mais expressivos para a próxima temporada, na medida em que as restrições sanitárias são flexibilizadas. Corroborando esse movimento, algumas das redes hoteleiras mais luxuosas do mundo estão lançando navios-hotéis, equipados com restaurantes, adegas e cabines dignas de resorts cinco estrelas, reforçando que o futuro da indústria é promissor.

No cenário nacional, a situação não é diferente. No Porto do Rio de Janeiro, devem circular cerca de 500 mil passageiros de cruzeiros durante a temporada de 2022/2023, ao passo que no Terminal Marítimo de Salvador, somente durante o Carnaval, serão recebidos quatro cruzeiros, simultaneamente, com mais de 20 mil passageiros no total.

Assume especial destaque, assim, a análise dos aspectos jurídicos que permeiam essa indústria, sobretudo os temas controvertidos que têm sido enfrentados pelos Tribunais pátrios no âmbito da responsabilidade civil, trabalhista e tributária, como será brevemente examinado a seguir.

Em relação ao aspecto contratual, a primeira dúvida que se poderia cogitar reside na natureza jurídica da relação contratual existente entre a empresa de cruzeiro e seus passageiros. A questão consiste em verificar se essa relação seria de consumo ou se estaríamos diante de um mero contrato de transporte, regido pelo Código Civil.

Embora haja controvérsia na doutrina sobre o assunto, os Tribunais estaduais brasileiros têm se posicionado no sentido de que essa seria uma relação de consumo, caracterizando a empresa operadora do cruzeiro como a fornecedora do serviço, que não estaria limitado ao serviço de transporte, englobando também o de hotelaria e entretenimento, em razão das diversas atividades de lazer oferecidas a bordo. Os passageiros, assim, não seriam contratantes apenas de um serviço de transporte de um ponto a outro, mas verdadeiros consumidores, que utilizam os diversos serviços existentes nesse tipo de viagem como destinatários finais1.

A título de exemplo, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro já se posicionou pela existência de relação de consumo, quando da ocorrência de alteração do itinerário do cruzeiro, reconhecendo o dever de indenização em favor do passageiro (leia-se, consumidor) que se sentiu lesado2. No caso, houve alteração do itinerário originalmente previsto, com substituição de duas cidades que faziam parte do roteiro contratado, sendo a primeira alteração noticiada cinco dias antes do embarque e a segunda apenas durante a viagem, tendo o Tribunal aplicado a legislação consumerista no julgamento da causa:

"No caso concreto, tem-se que a relação havida entre as partes litigantes, trata-se de relação de consumo, e como tal deve ser regida pelo Código de Defesa do Consumidor, no qual é abordada a falha do serviço, plenamente aplicável à questão destes autos [...] O artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor estabelece a responsabilidade objetiva do fornecedor de serviços (...)"

A empresa ré chegou a alegar excludente de responsabilidade, aduzindo que o cancelamento havia se dado em razão de condições meteorológicas. No entanto, o argumento não foi acolhido pelo Tribunal, como se verifica abaixo:

"Note-se que, de acordo com o documento acostado em fls. 32000031, encontra-se o registro da primeira alteração no itinerário da viagem, resultando em causa desconhecida, informada aos autores 5 dias antes do embarque. A segunda modificação, porém foi comunicada aos autores, já nas dependências do navio contratado, em virtude do cancelamento do porto, em virtude de condições metereológicas, conforme registro de fls. 191/195-000191.  (...)

Trata-se de responsabilidade objetiva pelo fato do serviço, fundada na teoria do risco do empreendimento, segundo a qual todo aquele que se dispõe a exercer alguma atividade no campo do fornecimento de bens e serviços tem o dever de responder pelos fatos e vícios resultantes do empreendimento independentemente de culpa, cabendo a parte ré comprovar a ocorrência de algumas das causas excludentes de ilicitude, quais sejam, culpa exclusiva da vítima, caso fortuito ou força maior ou culpa de terceiros, o que não ocorreu nos autos, tendo em vista que as alegações da ré, imputando a responsabilidade aos fatores meteorológicos e náuticos, não restaram adequadamente comprovadas."

Em que pese a controvérsia sobre a existência ou não de caso fortuito apto a romper o nexo causal e, ainda, se esse seria um fortuito interno ou externo à atividade, o que dependeria da análise das provas produzidas no processo, o acórdão ilustra o posicionamento do Tribunal em favor da existência de uma relação de consumo e não de transporte.

No mesmo sentido, o Tribunal de Justiça do Paraná condenou empresa de cruzeiro à indenização de dano moral, no valor de R$ 15.000,00, em virtude de dois passageiros terem sido impedidos de desembarcar no destino escolhido porque outros passageiros estavam acometidos de doenças gastrointestinais graves3. Novamente, seria necessário avaliar as circunstâncias do caso concreto para verificar possível rompimento do nexo causal, mas o acórdão reforça o entendimento pela relação de consumo e não de transporte. Confira-se:

"Assim, observa-se que o que prevalece na demanda em questão é a relação de consumo existente entre as partes, a qual, como cediço, é regulada em nosso ordenamento jurídico pelo Código de Defesa do Consumidor, que deverá ser a legislação aplicada. (...) Diga-se, ainda, que, no ramo de atividade desenvolvido pela recorrida a possibilidade da ocorrência da situação como a dos autos está incluída no risco do desempenho da atividade. Diante deste contexto, a requerida deve suportar os danos causados aos seus consumidores, em virtude da ausência de cautela nos procedimentos de higienização. (...) Portanto, inquestionável a negligência da apelante por não proceder com a cautela necessária."

O mesmo entendimento - relação de consumo e não contrato de transporte -- foi aplicado aos seguintes casos: (i) atraso de algumas horas na chegada do navio ao porto de destino, ocasionando perda de voo de retorno de passageira idosa4; (ii) atraso de dois dias na partida da embarcação devido a reparos no casco do navio, o que foi considerado fortuito interno5; e (iii) queda e posterior recuperação de bagagem no mar, com danos a pertences de passageiros.6 Em todos esses casos, houve aplicação do diploma consumerista para dirimir a controvérsia.

De todo modo, seja com a aplicação do regime consumerista, seja no âmbito de um contrato de transporte, a defesa das empresas responsáveis pela realização dos cruzeiros acaba ficando bastante dependente da existência de excludentes de responsabilidade aptas a romper o nexo causal, como o fato de terceiro, culpa exclusiva da vítima, caso fortuito ou força maior, sendo ainda preciso avaliar se o fortuito seria considerado interno ou externo à atividade7. É necessário sempre uma avaliação precisa quanto à existência ou não dessas excludentes com base na prova dos autos, evitando-se uma responsabilização demasiadamente ampla somente em razão da aplicação da legislação consumerista.

Ultrapassado o exame do aspecto da responsabilidade civil, vale tecer comentários sob a ótica trabalhista, um dos pontos mais complexos quando se trata de cruzeiros marítimos e sobre o qual também pairam dúvidas a respeito da legislação aplicável, notadamente a relação existente entre o cruzeiro e seus tripulantes. Mais especificamente, há divergência na doutrina e jurisprudência se a legislação aplicável seria a da lei da bandeira do navio ou se poderia haver a aplicação de legislação outra que não a do país onde a embarcação está registrada.

A problemática envolvendo esse ponto se relacionava com o fato de que muitas embarcações vinham sendo registradas em países onde as regras trabalhistas eram precárias - as ditas "bandeiras de conveniência". Assim, surgiu a teoria do "centro de gravidade", segundo a qual a legislação trabalhista aplicável seria fixada de acordo com o local onde a empresa tivesse a sua atuação comercial mais relevante. Essa teoria surgiu nos Estados Unidos, onde a Suprema Corte Americana adotou, em 2005, no precedente Spector v. Norwegian Cruise Line.

Ainda que haja também decisões entendendo que deve ser aplicada a norma mais favorável ao trabalhador, na prática, existem diversos aspectos a serem ponderados. Como se sabe, trabalham em um navio cruzeiro centenas e, em alguns casos, milhares de tripulantes de variadas nacionalidades, de modo que a aplicação de diferentes legislações com base na nacionalidade do tripulante, além de representar um desafio logístico para o setor de RH das empresas que atuam no ramo, poderia violar a necessária isonomia de tratamento entre os trabalhadores.

Vale notar, ainda, que a edição da Convenção do Trabalho Marítimo nº 186 ("CTM"), pela Organização Internacional do Trabalho, procurou afastar a controvérsia da bandeira de conveniência, fixando garantias mínimas para os trabalhadores marítimos. O Brasil ratificou a CTM, que entrou em vigor em maio de 2021. Com isso, a despeito dos argumentos lançados por aqueles que defendem a aplicação da legislação mais favorável aos tripulantes, havendo legislação específica em nosso ordenamento, e por respeito ao princípio da isonomia, existe forte entendimento no sentido de ser respeitada a legislação da bandeira do navio, observando as garantias mínimas fixadas pela CTM.

Por fim, ultrapassada a questão trabalhista, em terceiro e último lugar vale abordar brevemente o âmbito fiscal, notadamente a controvérsia existente em torno da tributação das mercadorias comercializadas em cruzeiros marítimos internacionais.

As autoridades fiscais federais já lavraram autuações exigindo recolhimento de tributos sobre a importação e a renda auferida na comercialização desses produtos consumidos a bordo dos navios8.

Todavia, as empresas entendem que essa tributação é indevida, uma vez que, não há, tecnicamente, importação dessas mercadorias para o país, com seu ingresso no âmbito da economia nacional, estando as mercadorias nesse caso, submetidas ao regime especial de trânsito aduaneiro de passagem, com suspensão de todos os tributos federais. Além disso, argumentam que não há elemento de conexão com o país para que se caracterize a tributação sobre rendimentos auferidos em uma mera passagem por águas brasileiras.

Apreciando a questão, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região entendeu que a tributação seria cabível, abrindo um precedente preocupante para o setor. No entanto, o Superior Tribunal de Justiça, em recente julgado, determinou a anulação do acórdão e o retorno dos autos ao Tribunal de origem para que fosse realizado um exame mais acurado acerca da aplicação do regime especial de trânsito aduaneiro a essas mercadorias.

Como se nota, são muitas e variadas as questões jurídicas controvertidas em relação aos cruzeiros marítimo, atividade cuja importância econômica é crescente no Brasil e no mundo. Com a expectativa de crescimento do setor para a próxima temporada, as controvérsias envolvendo o regime jurídico dos cruzeiros tendem a aumentar, exigindo ainda mais atenção daqueles que atuam nesse importante ramo da indústria marítima e de turismo.

Referências

Comexblog. "Breves considerações sobre a legislação aplicável aos cruzeiros marítimos".

Consultor Jurídico. "Cruzeiros devem pagar impostos sobre mercadorias comercializadas no país".

Migalhas. "Trabalhadores de cruzeiros marítimos e a legislação aplicável a partir da ratificação da Convenção 186/CLT".

Panrotas. "Temporada de cruzeiros 21/22 injeta R$ 1,4 bilhão na economia do País".

Portos e Navios. "Setor de cruzeiros marítimos tem ótimas perspectivas para os próximos anos". 

Portos e Navios."Aberta a temporada de cruzeiros no Porto do Rio de Janeiro".

__________

1 Vale destacar que o Projeto de Lei nº 487/2013, referente a um novo Código Comercial pátrio, prevê expressamente em seu art. 778 que o transporte de passageiros será regulado pela legislação consumerista: Art. 778. O transporte de passageiros é regulado pela Lei Civil e pelo Código de Defesa do Consumidor na relação entre passageiros e transportador.

2 TJRJ, Apelação Cível nº 0043117-14.2015.8.19.0001, 14ª Câmara Cível, Rel. Des. Cleber Ghelfenstein, j. 13.06.2018.

3 TJPR, Apelação Cível nº 867339-8, 9ª Câmara Cível, Rel. Des. D'Artagnan Serpa Sa, j. 12.07.2012.

4 TJRJ, Apelação nº 0020240-77.2015.8.19.0002, 23ª Câmara Cível, Rel. Des. Sônia de Fátima Dias, j. 14/03/2018.

5 TJRJ, Apelação nº 0020587-42.2013.8.19.0209, 26ª Câmara Cível, Rel. Des. Wilson do Nascimento Reis, j. 19/10/2017.

6 TJRJ, Apelação nº 0431049-64.2015.8.19.0001, 24ª Câmara Cível, Rel. Des. Cintia Santarem Cardinali, j. 16/11/2016.

7 Inclusive, o Código Civil prevê expressamente que só haverá exclusão de responsabilidade no transporte de pessoas em casos de força maior, conforme se verifica de seu art. 734: "O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade."

8 Mais especificamente: Imposto de Importação ("II"), Imposto sobre Produtos Industrializados ("IPI"), Contribuição ao Programa de Integração Social ("PIS"), Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social ("COFINS"), Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica ("IRPJ") e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido ("CSLL").