Arbitragem marítima: Especializar ou não?
quinta-feira, 29 de setembro de 2022
Atualizado às 08:09
Recentemente, no excelente Congresso de Direito Marítimo e Portuário da ABDM, realizado em Santos, tive a oportunidade de debater o tema da arbitragem marítima com grandes nomes, como Frederico Messias, Camila Mendes Vianna, Diogo Nolasco, Lilian Bertolani e Luis Claudio Faria. Naquela ocasião, me foi feita uma instigante pergunta, sobre a necessidade ou conveniência de se ter uma especialização na arbitragem marítima. O texto a seguir é, somente, a expressão escrita das breves reflexões que expus na minha resposta, sem qualquer pretensão de esgotar o assunto, muito menos de ditar como as coisas são ou deveriam ser.
Inicialmente, é preciso separar a questão em duas: a especialização dos árbitros e a especialização das instituições (câmaras ou centros de arbitragem). As respostas a uma e outra questão não serão, necessariamente, idênticas.
O tema também necessita de alguma contextualização.
No âmbito internacional, as disputas no âmbito marítimo são resolvidas predominantemente por arbitragem, o que é uma tradição de séculos, com instituições como a LMAA (London Maritime Arbitrators Association), a SMA (Society of Maritime Arbitrators, New York) e, mais recentemente, a SCMA (Singapore Chamber of Maritime Arbitration)1, que apresentam números expressivos2. Como os próprios nomes indicam, são todos órgãos especializados em arbitragem marítima, que, obviamente, congregam árbitros especializados nessa matéria. Da mesma forma, nota-se que estes órgãos são estruturados como associações de árbitros, enquanto o Brasil segue um sistema diferente, em que há instituições arbitrais, geralmente inseridas em câmaras de comércio bilaterais ou multilaterais, ou suportadas por associações de setores econômicos.
As razões que levam a uma especialização na arbitragem marítima estão ligadas a peculiaridades próprias do setor marítimo.
Em primeiro lugar, as questões relativas à navegação e ao comércio marítimo são muito especializadas, demandando até mesmo um vocabulário próprio. É certo que outros setores, especialmente na infraestrutura, como mineração, petróleo e aviação, também apresentam grande especialização. Todavia, a especialização marítima vai além da atividade em si ou dos seus contratos peculiares, influenciando o próprio Direito Marítimo e a forma de raciocinar, interpretar as normas e decidir as lides. É já muito conhecida a história (infelizmente real) de um julgamento no Poder Judiciário em que os magistrados discutiam regras de preferência do código de trânsito ao tratar de uma abalroação entre navios. O próprio conceito de "culpa", quando se trata de acidentes e fatos da navegação, demanda uma visão peculiar, diferente daquela a que nos habituamos no Direito Civil3.
Em segundo lugar, a internacionalização das lides é predominante no Direito Marítimo. As diferentes nacionalidades dos envolvidos - armadores, embarcadores, seguradores - e as diferentes "bandeiras" das embarcações são a situação mais comum nos litígios marítimos. Assim, a determinação do foro e da lei aplicável é sempre o primeiro desafio na resolução de conflitos marítimos. Daí porque a arbitragem é largamente utilizada nos contratos marítimos, por permitir a prévia definição do "foro" (na verdade, da sede da arbitragem) e da lei aplicável, além de outras questões práticas, como o idioma em que será realizada.
Em terceiro lugar, e como decorrência da própria internacionalização, há uma forte presença dos costumes no Direito Marítimo e, em consequência, na solução dos litígios nesse âmbito. De fato, quando diferentes partes de uma mesma relação jurídica estão sujeitas a diferentes ordenamentos, o costume se apresenta como solução eficiente para regular e harmonizar estas relações.
De tudo isso decorre, em quarto lugar, uma multiplicidade de fontes normativas - ordenamentos locais, costumes, tratados internacionais - incidindo na matéria. Com o perdão pelo truísmo, a solução de disputas se dá pela aplicação das normas jurídicas aos fatos subjacentes ao litígio. Se estas normas jurídicas vêm de fontes distintas e variadas, é essencial a vivência e experiência de quem vai aplicá-las na resolução da disputa. É quase intuitivo que um árbitro especializado terá melhores condições de lidar com essa multiplicidade de fontes que um árbitro não especializado e, por óbvio, muito mais ainda que um juiz estatal.
Os contratos marítimos, vale lembrar, são comumente padronizados, com modelos elaborados por entidades especializadas. A mais conhecida delas é a BIMCO (Baltic and International Maritime Council), fundada em 1905 e com sede em Copenhague, na Dinamarca. Em decorrência de todos estes fatores até aqui listados, estes modelos já preveem instituições arbitrais específicas, geralmente as referidas no início deste trabalho.
Passando à reflexão sobre a arbitragem marítima no Brasil, uma breve contextualização também é necessária.
Por um lado, o Brasil tem hoje uma moderna legislação de arbitragem, editada em 1996 e modernizada em 20154, que vem sendo amplamente prestigiada pelo Poder Judiciário, inclusive no que tange à regra da Kompetenz-Kompetenz5. Diversos órgãos arbitrais de excelência têm prosperado, administrando centenas de arbitragens por ano6. A Corte Internacional de Arbitragem da ICC7, um dos mais prestigiados centros de arbitragem no mundo, abriu em 2014 um Comitê Brasileiro, sediado em São Paulo. Enfim, vive-se um momento vigoroso de prestígio e crescimento da arbitragem no Brasil. Essas arbitragens abarcam vários temas dos Direitos Comercial e Civil, em vários setores econômicos. Mesmo no Direito Administrativo, especialmente em temas portuários e de infraestrutura em geral, a arbitragem com o Poder Público vem ganhando espaço. Por outro lado, porém, no mercado marítimo, as arbitragens no Brasil, embora crescentes, ainda não refletem a participação que o instituto tem no exterior. Este quadro tende a mudar com a recente introdução, pelo maior player do mercado de afretamento de embarcações de apoio marítimo, de cláusulas arbitrais em seus contratos.
Diante disso, no que tange aos árbitros, esta especialização tende a ser natural. Dada a presença, em listas dos principais centros brasileiros (e, obviamente, a possibilidade de escolha de árbitros fora das listas) de árbitros com especialização marítima, o mercado tenderá a se adaptar naturalmente, com a formação de tribunais arbitrais especializados, no âmbito de cada arbitragem, individualmente considerada.
No que tange à especialização das câmaras ou centros, o Brasil tem algumas experiências neste sentido, como a própria câmara de arbitragem da ABDM (Associação Brasileira de Direito Marítimo), o CBAM (Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima) e uma Vice-Presidência específica do CBMA (Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem) para a área marítima. A óbvia vantagem dos centros especializados está na possibilidade de editarem regulamentos e normas procedimentais que atendam às peculiaridades das arbitragens marítimas, inclusive por terem seus conselhos gestores formados por especialistas na matéria.
Estas iniciativas, embora importantes, não se desenvolveram como o esperado, não tendo estes órgãos administrado, ainda, um número significativo de arbitragens. É possível que venham a fazê-lo no futuro, como consequência natural do desenvolvimento da arbitragem marítima no Brasil. Para isso, porém, será necessário que o próprio mercado tenha maior desenvolvimento, e que os maiores players usem de seu peso para impor, mesmo nas contratações internacionais, a arbitragem no Brasil, quando esta for claramente a melhor opção.
Creio, no entanto - e aqui vai um assumido palpite de futurologia - que o mais provável será a consolidação de árbitros marítimos especializados atuando em câmaras generalistas. Como dito acima, a especialização dos árbitros será uma tendência natural. É possível até que, em algum momento, se tenha uma escassez de árbitros especializados para atender a um crescimento significativo da demanda.
Quanto às câmaras, é certo que a comunidade arbitral brasileira já se acostumou ao trabalho da estrutura de apoio dos centros estabelecidos, sendo pouco comum a arbitragem ad hoc.
No entanto, para que se tenha êxito nesta combinação (árbitros especializados em câmaras generalistas) será necessário ter em vista a possível necessidade de editar regulamentos específicos para as arbitragens marítimas, pelos quais as partes poderiam optar na celebração do termo de arbitragem, ou até mesmo na própria cláusula arbitral.
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1 Merecem referência, também, como instituições emergentes, o Maritime Arbitration Group, da Hong Kong Ship Owners Association e o EMAC (Emirates Maritime Arbitration Centre). A China, principal player do comércio internacional na atualidade, não poderia ficar para trás: em 30/07/2018, foi inaugurado, em Hainan, o segundo tribunal de arbitragem internacional daquele país, o qual, segundo informações oficiais, "estabelecerá um centro para arbitragem marítima e outro para arbitragem financeira" (Disponível aqui. Acesso em 11/08/2018).
2 Como bem apontou Luis Cláudio Furtado Faria, recentemente (25/08/2022), nesta mesma coluna: "Apenas a título de exemplo, de acordo com a London Maritime Arbitrators Association ("LMAA"), principal instituição da área no cenário internacional, em 2021, foram nomeados 2.777 árbitros para condução de arbitragens marítimas, além de terem sido proferidas 531 sentenças arbitrais. Muito embora tais números não reflitam o número de procedimentos efetivamente instaurados, eles indicam a expressividade do uso desse método de solução de disputas no âmbito global. A Câmara de Arbitragem Marítima de Singapura, por sua vez, que registrou 37 procedimentos arbitrais ao longo de 2021 e a Comissão Chinesa de Arbitragem Marítima registrou 110 casos no ano de 2020."
3 Como exemplo, uma das mais conhecidas diretrizes na análise de acidentes da navegação - pouco compreensível para o leigo - é a last clear chance, segundo a qual a embarcação "certa", ou seja, aquela que não tem a obrigação de manobrar naquela situação, deve fazê-lo se, no último momento em que ainda seja possível evitar a abalroação, a embarcação "errada" (aquela que tem a obrigação de manobrar na hipótese) não o fizer. O descumprimento desta regra pode levar, em certas circunstâncias, a uma distribuição, entre as embarcações, da responsabilidade pelo acidente, com uma parcela, mesmo menor, sendo atribuída a quem "tinha razão".
4 Lei 9.307, de 23/09/1996 e lei 13.129, de 26/05/2015.
5 De modo bastante simplificado, essa regra significa que cabe ao tribunal arbitral, primeiramente, a definição de sua própria competência.
6 Cite-se, entre outras, as câmaras de arbitragem da Câmara de Comércio Brasil-Canadá (CAM-CCBC) e da Câmara Americana de Comércio (AmCham) e o Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA).
7 International Chamber of Commerce, com sede em Paris.