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Projeto de Lei 3293/21 - Desvalorização do instituto da Arbitragem

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Atualizado às 08:10

A arbitragem é o método de resolução de controvérsias pelo qual disputas sobre direitos patrimoniais disponíveis (em geral, disputas empresariais) são submetidas a julgamento por particulares, especializados em suas áreas de atuação. O referido instituto é regulado pela Lei nº 9.307/1996 e sofreu avanços significativos ao longo dos anos produzidos pela lei 13.129/15.

Esses avanços permitiram rapidamente a inserção do Brasil nas melhores práticas de solução de controvérsias, colocando o país como um relevante player no campo das arbitragens internacionais e desenvolvendo um mercado importante (centros de arbitragem e serviços a eles ligados), que atrai investimentos e contribui para um panorama de segurança e celeridade na solução de litígios, favorecendo a proliferação do ambiente de negócios no país, a redução dos custos de transação na solução de disputas legais e a integração no cenário internacional.

A lei 9.307/1996, inspirada na Lei Modelo da UNCITRAL1, constitui pilar fundamental para o sucesso da arbitragem no Brasil. No entanto, o recente PL 3293/2021 - já muito bem comentado em artigo anterior na presente coluna2 - causou agitação na comunidade jurídica e, especialmente,  nos usuários da arbitragem, preocupados com os impactos negativos que as mudanças propostas podem causar, bem como a consequente desvalorização do instituto.

A lei 9.307/96, em sua redação atual, prevê mecanismos para controle da atuação dos árbitros, tanto para os profissionais indicados pelas partes, quanto para aqueles indicados pelas instituições arbitrais. Se, de um lado, não há qualquer requisito ou qualificação específica para que alguém possa atuar como árbitro, salvo ser dotado de capacidade; de outro, a confiança das partes revela-se como atributo essencial para a indicação dos árbitros (Art. 13º). Para preservar a confiança das partes, o profissional indicado para atuar como árbitro deve revelar os fatos que, aos olhos de um "terceiro de bom senso", poderiam causar desconfiança quanto à sua imparcialidade e independência.

Veja-se que, apesar de a lei 9.307/1996 fazer referência, no que couber, às situações de impedimento e suspeição dos juízes previstas no Código de Processo Civil, por certo que não há um rol taxativo de quais fatos devem ou não ser revelados, o que deverá ser analisado diante do caso concreto. Regras internacionais como as Guidelines on Conflict of Interests da International Bar Association3, apesar de não serem cogentes, usualmente servem de guia para nortear a verificação de situações que podem gerar conflito de interesses e, portanto, devem ser objeto de revelação. Vige, portanto, um modelo de dúvida justificada (Art. 14, § 1º), em que as razões para a impugnação do árbitro em razão de supostos conflitos de interesses devem ser fundamentadas e pautadas pela razoabilidade4.

Ocorre que, a redação do PL 3.293/21 introduz na lei 9.307/1996 a expressão "dúvida mínima", que propõe um conceito subjetivo de verificação de conflitos de interesses, sujeito, portanto, à interpretação pessoal. É evidente que um critério fundado em tamanha subjetividade insere na arbitragem um parâmetro de incerteza que, ao contrário se afirma ser o objetivo do PL 3.293/21, traz insegurança jurídica que, se aprovadas, poderão aumentar significativamente o número de ações anulatórias de sentenças arbitrais.

Ainda neste tema, o PL 3.293/21 propõe também a alteração do art. 14º § 1º, em sua primeira parte, para exigir que os profissionais indicados para atuar como árbitros informem, antes da aceitação do cargo, a quantidade de arbitragens em que estão atuando. A justificativa do projeto de lei é que "a presença de um mesmo árbitro em algumas dezenas de casos simultaneamente" supostamente seria causa do aumento do tempo em na duração dos procedimentos, e que isto "abre brecha para o ajuizamento de uma maior quantidade de ações anulatórias"5.

Contudo, a limitação da quantidade de arbitragens em que um profissional pode atuar não resultará em procedimentos mais céleres, mas limitará seriamente as possibilidades de escolha de árbitro pelas partes, que não poderão por vezes indicar os profissionais capacitados para as disputas envolvendo matérias complexas, que exigem profissionais especializados e experientes.  Tal medida por certo implicará distinção indesejável do Brasil aos olhos do mercado internacional, afastando investidores e distanciando o país da posição merecidamente conquistada nos rankings dos principais países como sede de arbitragem.

As regras que concernem à atividade do árbitro, o número de arbitragens em curso, os relacionamentos mantidos com as partes e/ou seus patronos e a respectiva revelação de tais pontos são questões autorreguláveis6. À prática arbitral, especialmente a internacional, coube disciplinar tais questões, o que se dá por meio de boas práticas internacionais, como é o caso dos já mencionados IBA Guidelines e instrumentos similares. Da mesma forma, o próprio mercado trata de regular as boas práticas relacionadas à atividade do árbitro, uma vez que um árbitro que não desempenha sua função de forma diligente e adequada por certo não será nomeado novamente para atuar em outros procedimentos arbitrais pelas mesmas partes.

Ademais, as partes estão livres para fazer aos árbitros os questionamentos que entendam necessários para a análise de conflito de interesses, seja no início do procedimento ou, justificadamente, a qualquer tempo. Não é, portanto, a quantidade de arbitragens em que um árbitro atua que influenciará o tempo de tramitação do procedimento arbitral e a qualidade das decisões arbitrais, mas sim o caráter ético e a seriedade dos julgadores escolhidos pelas partes para resolver a controvérsia. Não há necessidade de se estabelecer regramento específico, como propõe o PL em questão, tampouco seria salutar, pois, repita-se, sepultaria a autonomia da vontade das partes, desvirtuando-se por completo a liberdade contratual caracterizadora da arbitragem.

Ainda sobre a indicação de árbitros, a vedação aos dirigentes das instituições arbitrais ao exercício das atividades de árbitro também gera preocupação. Além de não haver regulação semelhante no direito comparado, a inclusão do art. 14, § 3º, proporciona uma limitação injustificada dos profissionais para atuarem como árbitros. Novamente, destaca-se que a Lei 9.307/96 não exige nenhum requisito específico para o exercício da função de árbitro, a não ser a capacidade e confiança das partes e ausência de impedimento. A criação de limitações genéricas e desvinculadas da análise de conflito de interesses no caso concreto vai na contramão da evolução da arbitragem e da ampliação do rol de profissionais qualificados e aptos a atuarem como árbitros.

No que se refere à inclusão dos arts. 5º-A e 5º-B, acerca da publicação da composição dos tribunais arbitrais, do valor da causa e da íntegra das sentenças arbitrais, verifica-se, a princípio, que a redação legal é lacunosa, pois despreza a circunstância de que nem todas as arbitragens são administradas por instituições arbitrais, a exemplo do procedimento arbitral ad hoc. Aliás, o modelo de arbitragem ad hoc é prática comum na maioria das arbitragens marítimas internacionais, conforme será comentado em futuro artigo na presente coluna. Assim, os dispositivos do referido Projeto de Lei criam uma exigência desnecessária, sem trazer qualquer solução prática para a publicação das informações relacionadas às arbitragens ad hoc, o que poderá prejudicar o uso de tal modalidade procedimental, bem como criar dúvidas irrazoáveis sobre a validade de tais procedimentos na ausência da publicação "adequada".

Sobre a composição dos tribunais arbitrais, destaca-se que a sua publicação já é praxe em algumas instituições arbitrais com atuação relevante no Brasil, como a Câmara de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá7 e a Câmara de arbitragem da CCI8, por exemplo. As partes que veem vantagem nessa publicação podem optar por terem seus procedimentos arbitrais administrados por estas e outras câmaras que adotam prática semelhante. Cuida-se, em essência, da liberdade de escolha dada aos usuários da arbitragem por instituições que adotem ou não tais práticas.

Com relação à segunda obrigação proposta neste dispositivo, de que as instituições arbitrais manterão um banco de dados online de todas as sentenças arbitrais prolatadas, também se observa uma lacuna no que tange à forma de publicizar tais atos em procedimentos ad hoc, favorecendo a proliferação de disputas judiciais acerca do procedimento, o que, de forma contraditória, é justamente aquilo que a Justificação do PL declaradamente busca evitar.

Ainda acerca da confidencialidade da arbitragem, deve-se observar que ela constitui uma das vantagens internacionalmente apontadas para a utilização da arbitragem, em substituição à justiça estatal. Isso porque o ambiente de negócios frequentemente lida com informações sensíveis e a manutenção da confidencialidade dessas informações é de elevada importância para os agentes econômicos que optam pela arbitragem.

Tanto o é verdade que a Lei de Arbitragem não obriga confidencialidade ou publicidade, pois premia a autonomia da vontade, pilar central do instituto. Essa característica é tão importante que o Código de Processo Civil de 2015 passou a respeitar a confidencialidade, quando escolhida pelas partes, também nos processos judiciais relacionados à arbitragem (Art. 189, inc. IV, do CPC 2015). Note-se que a regra não existia no códex9 processual anterior. Foi incorporada justamente por uma demanda dos usuários da arbitragem, pois a publicidade, principalmente das ações anulatórias, punha por terra o benefício da confidencialidade e a própria racionalidade econômica do contrato, demonstrando que a justificativa da criação do art. 33, §1º não se sustenta. 

A desnecessidade da alteração legislativa, bem como os efeitos deletérios que o projeto de lei em comento pode trazer ao instituto da arbitragem fizeram com que inúmeras associações de relevo, tanto no âmbito nacional como internacional10 se manifestassem contrários ao PL.

A exemplo de tais efeitos, cita-se a exportação de conflitos brasileiros, especialmente em matéria marítima, para câmaras estrangeiras, causando uma desvantagem econômica e política ao país. O desincentivo à arbitragem no território brasileiro, acabará por interromper a atual concreta tendência de crescimento da arbitragem marítima no Brasil. Neste ponto, é importante relembrar que 98% do comércio internacional praticado pelo Brasil ocorre pelo mar, não havendo dúvidas de que a arbitragem marítima tem que ser incentivada pelo direito interno, o que não será possível caso o referido PL seja aprovado.

Um reflexo dos avanços da arbitragem marítima no país, inclusive, foi a realização do International Congress of Maritime Arbitrators - ICMA, conhecido como o mais importante evento de arbitragem marítima no mundo, que foi sediado pela primeira vez na América Latina, na cidade do Rio de Janeiro, no ano de 2020, reforçando o reconhecimento internacional do Brasil como foro de resolução de disputas marítimas por meio da arbitragem.

A Lei de Arbitragem (lei 9.307/96), já com 26 anos desde a sua edição, deve o seu desenvolvimento justamente ao fato de propor um modelo moderno, flexível, que enfatiza a autonomia da vontade das partes e permite que se alcance, por via consensual, todos os efeitos que o Projeto de Lei pretende impor à generalidade dos litigantes.

A arbitragem, ao longo desses anos, se consolidou no Brasil como o principal e mais adequado método para resolver determinados litígios, servindo muito bem a disputas marítimas e àquelas relacionadas a grandes projetos de infraestrutura, como inclusive reconheceu a Justificação do PL, na medida em que os contratos mais complexos da administração pública também já se socorrem da arbitragem.

Nesse sentido, entendemos que o aludido PL 3293/21 representaria um retrocesso ao instituto da arbitragem, o qual deveria ser ampliado e estimulado, ao invés de restringido, prejudicando-se sobremaneira o modelo arbitral e colocando em risco o crescente potencial de realização de arbitragens marítimas domésticas e internacionais no país.

__________

1 United Nations Commission on International Trade Law

2 Disponível aqui.

3 Diretrizes da International Bar Association sobre Conflitos de Interesses na Arbitragem Internacional. Fonte: IBA Guidelines on Conflict of Interest Nov 2014 TEXT PAGES.indd (ibanet.org).

4 "Sobreleva de importância a aferição do ínfimo número de impugnações de árbitros nas Câmaras pesquisadas representando em 2021 menos de 1% (0,6%) das impugnações aceitas, num universo de 1047 arbitragens em andamento. Saliente-se que nesta pesquisa temos as maiores instituições de arbitragem do Brasil e uma das maiores instituições mundiais: a CCI. Muito se especula quanto à impugnação de árbitros e ações de anulação de sentença arbitral pelo motivo de que o árbitro não poderia ser árbitro, em razão do dever de revelação (art. 14, §1º). Todavia, esta pesquisa demostra que no âmbito das Câmaras a impugnação de árbitros é insignificante e as partes indicam pessoas capacitadas e com os atributos que a lei determina (independência e imparcialidade) para serem árbitros. Indubitavelmente, esse é um dos principais motivos pelos quais o Brasil é um dos maiores líderes em arbitragem, ocupando o segundo lugar mundial nas estatísticas da CCI de 2021". Fonte: Arbitragem em números e valores. Pesquisa 2020/2021, realizada em 2022 pela pesquisadora Selma Ferreira Lemes, com auxílio de Vera Barros e Bruno Hellmeister.

5 Veja que o PL vai na contramão das estatísticas, que apontam que os processos arbitrais ficaram 8% mais rápidos em 2020 em comparação com 2019. Fonte: Arbitragem em números e valores. Pesquisa 2020/2021, realizada em 2022 pela pesquisadora Selma Ferreira Lemes, com auxílio de Vera Barros e Bruno Hellmeister.  

6 Ver, nesse sentido, ROGERS Catherine A. Ethics in International Arbitration. Oxford University Press, 2014, p. 234

7 Disponível aqui. Último acesso em: 22/08/2022

8 Disponível aqui. Último acesso em: 22/08/2022

9 Ver Garcia da Fonseca, Rodrigo. O Segredo de Justiça e a Arbitragem. In A reforma da Lei de Arbitragem. (Coord. Campos Mello, L. e Beneduzi, R.) Ed. Forense. Pag. 389.

10 Para exemplificar, relaciona-se as seguintes instituições: Associação dos Advogados de São Paulo, a Associação Comercial do Paraná, a Câmara do Mercado, a Confederação das Associações Comerciais e Empresariais do Brasil, a Ordem dos Advogados do Brasil, o Centro de Arbitragem e Mediação, o Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem, a International Chamber of Commerce, a OAB de Pernambuco, a OAB do Ceará, a OAB do Maranhão, o Centro de Estudos da Sociedade de Advogados, o Comitê de Jovens Arbitralistas, o Conselho Nacional de Instituições de Mediação e Arbitragem, a Federação Nacional dos Institutos dos Advogados do Brasil, o Instituto dos Advogados Brasileiros, o Instituto dos Advogados do Distrito Federal, o Instituto de Direito Processual, o Instituto de Arbitragem da Bahia, o Instituto de Advogados do Paraná, a FGV Direito do Rio de Janeiro, a Câmara de Arbitragem da Federasul, o Instituto de Direito Privado, a OAB de Minas Gerais, a OAB de São Paulo, a Câmara de Mediação e Arbitragem Especializada (CAMES), o Instituto Brasileiro da Construção, a Câmara de Arbitragem e Mediação da Fiesp, Senai, Sesi, a Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais, a Câmara Americana de Comércio para o Brasil, entre outras.