Entendendo a lei 14.301/22 - BR do Mar
quinta-feira, 9 de junho de 2022
Atualizado em 8 de junho de 2022 15:12
Em 1997, depois um longo debate no Congresso, foi concluída a lei 9.432/97, que contou com intensa participação dos representantes de empresas de navegação, indústria naval e trabalhadores marítimos. As notas taquigráficas das reuniões são registros muito interessantes para entender como ocorreram as negociações e quem era os parlamentares atuantes, alguns ainda presentes no Congresso.
A nova lei vinha para atender o previsto na nova Constituição Federal, o fim das famosas "conferências de frete", e tentar colocar a navegação brasileira nos moldes liberalizantes da época.
Dentre os inúmeros conceitos e acordos fechados, merecem destaques:
1) A definição dos cinco tipos de navegação que a lei abordaria (longo curso, cabotagem, apoio marítimo, apoio portuário e navegação interior), para que ao longo da lei fossem diferenciados os tratamentos dados a cada tipo de navegação. O objetivo era oferecer segurança para investimentos e consequente desenvolvimento da frota de bandeira brasileira, especialmente na cabotagem e no apoio marítimo. Infelizmente, o crescimento da participação da bandeira brasileira no longo curso não ocorreu, exceto aquele garantido pelos acordos bilaterais de transporte marítimo, como os existentes com o Chile, Argentina e Uruguai.
2) Definição de Empresa Brasileira de Navegação - EBN, atrelada apenas à atividade de transporte aquaviário, sem impor nenhuma limitação de origem do capital. No entanto, para que pudesse operar, estabelecia a necessidade de que a empresa fosse proprietária de navio, ou que tivesse um navio afretado a casco nu de outra empresa brasileira.
3) Constituição da frota. No tocante à cabotagem, a lei estabeleceu algumas possibilidades, mas sempre partindo da propriedade de embarcação, ou seja:
a. Afretamento de embarcação estrangeira a casco nu, com suspensão de bandeira (e assim a sua inscrição no Registro Especial Brasileiro) no limite de 50% da tonelagem de frota própria, garantido o afretamento de pelo menos uma embarcação de porte equivalente;
b. Afretamento de embarcação estrangeira a casco nu, com suspensão de bandeira limitado ao dobro da tonelagem de porte bruto das embarcações de tipo semelhante encomendadas a estaleiro brasileiro instalado no País, com contrato de construção em eficácia.
c. Direito de afretar embarcação estrangeira por tempo, pela empresa que tivesse encomendado a construção em estaleiro brasileiro, em substituição às embarcações em construção, enquanto durasse a mesma, por período máximo de trinta e seis meses, até o limite. Vale registrar que estas embarcações permaneciam arvorando a bandeira de origem.
d. Não bastasse todas estas opções de "multiplicação" da frota, o legislador, preocupado em não deixar desassistido os usuários da cabotagem, estabeleceu que poderiam ser afretadas embarcações estrangeiras por tempo ou por viagem, caso fosse verificada inexistência ou indisponibilidade de embarcação de bandeira brasileira do tipo e porte adequados para o transporte pretendido, processo conhecido como "circularização" e "bloqueio", controlado e operado pela ANTAQ.
Dentro deste modelo estável, as atividades de cabotagem eram realizadas com a entrada de novas empresas no setor, algumas, inclusive, com investimentos estrangeiros internalizados através de aquisição de navios. Além do crescimento ou substituição de empresas, houve um aumento considerável da frota própria e afretada a casco nu, com suspensão de bandeira, para atender a economia nacional. A cabotagem é diretamente ligada ao crescimento da economia do país, pois é transportado aquilo que é produzido ou demandado pela economia nacional.
Neste contexto, o transporte de cargas conteinerizadas vem crescendo a índices anuais superiores a 10% nos últimos 12 anos, especialmente pela crescente oferta de serviço porta-a-porta, com as empresas atuando como operadores de transporte multimodal. As empresas apresentam aos clientes as vantagens da cabotagem na sua logística, e, em alguns casos, reestruturam com o cliente a sua logística, por vezes sugerindo, por exemplo, mudança de localização dos seus centros de distribuição.
Por outro lado, as cargas a granel dependem do estabelecimento de projetos industriais, cabendo à cabotagem o transporte dos insumos (mais comum) ou dos produtos semiacabados ou acabados, ou até mesmo insumos para outra linha de produção. Assim, o crescimento da movimentação de graneis ocorre em saltos e patamares estáveis, enquanto novos projetos não são criados e desenvolvidos. É comum para este tipo de projetos de longa duração a aquisição de navios customizados, a fim de otimizar a atividade.
Tudo isso acontecia, mas alguns setores entendiam que o custo da cabotagem deveria ser o mesmo da navegação de longo curso, desconsiderando que nesta navegação é comum utilizarem bandeira de registros abertos, onde a carga tributária sobre a empresa de navegação e mão de obra é extremamente reduzida, diferentemente do que ocorre com as empresas sediadas no Brasil, que seguem a legislação trabalhista brasileira. Atendendo a esta insatisfação, inúmeros estudos foram realizados para diagnosticar o já conhecido "problema", mas a maioria dos trabalhos era encerrado com o diagnóstico, sem adoção das medidas corretivas.
O Governo atual, através do Ministério da Infraestrutura, deu destaque à navegação, dedicando uma Diretoria para cuidar de navegação e de hidrovias, subordinada à Secretaria de Portos e Transportes Aquaviários. Com foco exclusivo na navegação, a equipe da Diretoria de Navegação e Hidrovias reviu os diversos estudos e, em amplo debate com o setor, elaborou o PL 4.199, o BR do Mar. Neste PL foi proposta a criação de um programa de estímulo à cabotagem, o Programa BR do Mar, e mudança de algumas leis afetas à navegação.
Antes da apresentação do PL, muito se discutiu qual seria o melhor instrumento: se uma Medida Provisória, um PL com urgência constitucional, ou um PL, tendo sido escolhido, para possibilitar o amplo debate democrático, a apresentação do PL com urgência constitucional.
No encaminhamento do texto ao Congresso, os Ministros da Infraestrutura e Economia, na presença do Presidente da República, anunciaram que, ao final da aprovação do texto, haveria uma ampliação do volume de contêineres transportados, por ano, de 1,2 milhão de TEUs (unidade equivalente a 20 pés), em 2019, para 2 milhões de TEUs, em 2022, além de ampliar em 40% a capacidade da frota marítima dedicada à cabotagem nos próximos três anos, excluindo as embarcações dedicadas ao transporte de petróleo e derivados. Anunciaram, ainda, que haveria redução de custos da cabotagem, tendo a Empresa de Planejamento e Logística, por ocasião do PNL 2035, estabelecido que a redução seria de 15%.
Como mais um desafio, este PL tramitou na Câmara e no Senado durante o período de pandemia, quando foi impossível as articulações presencias. Atendidos os prazos regimentais na Câmara, o PL foi alterado e votado em Plenário, para então ser encaminhado ao Senado Federal. Ali, por questões políticas, houve a retirada da urgência constitucional, passando ao trâmite regular. O texto foi novamente alterado, o que exigiu nova apreciação da Câmara dos Deputados e, finalmente, em dezembro de 2021 o texto foi enviado para sanção presidencial, o que ocorreu no dia 07 de janeiro de 2022. O presidente vetou alguns pontos, os quais voltaram à apreciação do Congresso em 25 de março de 2022, sendo mantidos alguns e rejeitados outros.
Apesar do intenso debate e divergências de posicionamentos de governo, trabalhadores, indústria naval e representante da navegação, hoje temos em vigor a Lei 9.432/97 modificada, a Lei 10.893/2004 e o Programa de Estímulo à Cabotagem BR do Mar, ainda que alguns itens dependam de regulamentação e regulação.
Mas o que mudou?
A navegação de cabotagem continua sendo atividade exclusiva de empresa brasileira, como ocorre nos demais modais. No modal aéreo, por exemplo, somente empresas brasileiras podem realizar voos domésticos, e não haveria razão de ser diferente na navegação. Porém, a alteração promovida na lei 9.432 ajustou a definição de empresa brasileira de navegação para abrir a possibilidade da criação de empresas de navegação sem que sejam proprietárias de navios, e esta alteração impacta não apenas a cabotagem, mas todos os outros tipos de navegação. Fomos contrários a possibilidade de serem criadas empresas de navegação sem propriedade de navio (que é o grande patrimônio de uma empresa de navegação), pois é uma atividade de risco, ainda que o índice de acidentes seja baixíssimo. No entanto, quando ocorrem são de grandes proporções e, se a empresa transportadora não tiver lastro suficiente, poderá deixar o usuário totalmente desassistido, além de não ter como ressarcir pelos danos causados ao Estado e o meio ambiente. Mas fomos vencidos e agora vamos nos beneficiar da regra, se for o caso.
No tocante à composição da frota da empresa brasileira de navegação, foi mantida a regra já existente, sendo criada uma nova opção, entendida por alguns como abertura da cabotagem (o que não concordamos), para a empresa que, mesmo sem ser proprietária de embarcação, pode passar a afretar embarcações a casco nu, com suspensão de bandeira. A quantidade de afretamentos será crescente anualmente, até que, após 48 meses de vigência da Lei 14.301, não haja limites de embarcações a serem afretadas. Trata-se de mais uma opção para compor a frota das empresas de navegação. No entanto, esta embarcação afretada sem ser proporcional à propriedade de embarcação tem direitos limitados, como, por exemplo, ela não pode ser utilizada para comprovar a disponibilidade de embarcação brasileira para bloquear cargas que foram circularizadas, ou seja, as empresas terão que operar apenas com as cargas que conseguirem conquistar, sem poder disputar com o mercado de atuação de outras empresas sem embarcação suficiente.
Mas o que é o Programa BR do Mar? Podemos descrevê-lo como regras de afretamento de embarcações estrangeiras por tempo para operam na cabotagem (ou seja, de bandeira estrangeira), sem necessidade de consultar o mercado sobre a disponibilidade de embarcação de bandeira brasileira disponível para fazer o transporte. Apesar de ainda depender de regulamentação e regulação, vejamos as cinco possibilidades que o Programa cria.
Ampliação da tonelagem de porte bruto das embarcações próprias efetivamente operantes, registradas em nome do grupo econômico a que pertença a empresa afretadora, de acordo com a proporção a ser definida em ato do Poder Executivo Federal. Tem sido divulgado que a proporcionalidade será de 3 vezes a tonelagem de porte bruto das embarcações efetivamente operantes do grupo econômico. Exemplificando, se o grupo tiver 5 embarcações que totalizem 100.000 toneladas de porte bruto, ela poderá afretar a tempo, se habilitada no Programa BR do Mar, uma quantidade de embarcações estrangeiras cuja soma das tonelagens de porte bruto não ultrapasse 300.000. Aparentemente é uma ótima opção para as empresas (especialmente as que operam navios porta-contêineres) de aumentar a oferta de embarcações sem a necessidade de investimento em novas embarcações. Porém, se optarem por ter apenas embarcações afretadas a casco nu, com suspensão de bandeira, sem ser proporcional a frota de propriedade, não poderão se beneficiar deste dispositivo do Programa BR do Mar.
Afretamento em substituição às embarcações em construção. Quando a construção for em estaleiro brasileiro, além das regras de afretamento a casco nu e em substituição à construção, se a empresa se habilitar no Programa BR do Mar poderá afretar 200% da tonelagem em construção por 36 meses, mesmo que a construção termine antes deste prazo, o que pode ser considerado um estímulo para o uso da indústria naval brasileira. Quando a construção for no exterior, a empresa brasileira de navegação poderá afretar 100% da tonelagem em construção, porém o tempo será de até 36 meses, encerrando quando da finalização da construção.
Atendimento exclusivo a contrato de longo prazo. Outra inovação trazida pelo Programa BR do Mar, que permitirá que empresas que já operam na cabotagem, ou que sejam criadas, possam celebrar contratos com clientes que viabilizem que um ou mais navios possam ser trazidos em afretamento para atender exclusivamente este contrato. Aqui alguns pontos de indefinição, como a extensão que deve haver do contrato, bem como que eles sejam efetivos e mantidos dentro do prazo estabelecido. O ideal, ao que nos parece, que fossem estruturados em termos de uma operação financeira, onde o armador traria os navios (adquiridos ou afretados) por um período próximo ao que justificasse o investimento de um valor de aquisição (CAPEX), desta forma as empresas de navegação só aceitariam contratos em que o retorno financeiro fosse viável. As empresas brasileiras de navegação que forem criadas para atender exclusivamente estes contratos de longo prazo, também não deverão poder circularizar cargas e nem bloquear cargas com os navios que possuem.
Operações especiais. Esta modalidade criada pelo Programa BR do Mar ainda é pouco clara quanto à forma que será analisada, se é um mercado não atendido ou uma nova modalidade de operação. Por outro lado, estas operações com navios afretados dentro do Programa BR do Mar serão limitadas a 36 meses, podendo ser prorrogada por mais 12 meses, após o que deixam de ser consideradas como especiais.
A lei 14.301 trouxe outras alterações que também são importantes como:
- Criação da Empresa Brasileira de Investimento na Navegação, que não será transportadora, mas apenas proprietária de embarcações e fretarão para outros operadores, além de poderem utilizar recursos do Fundo da Marinha Mercante;
- Obrigatoriedade de embarque de alunos egressos das escolas de formação da Marinha Mercante para realização da parte prática;
- Flexibilização do uso dos recursos da Conta Vinculada das empresas de navegação para realização de manutenção em todas as suas modalidades, aquisição direta de partes e peças e pagamento de seguro. Além disso, a possibilidade de contratação de empresas especializadas para a realização dos serviços;
- De forma similar, os recursos do FMM também tiveram as regras atualizadas para atender as mesmas opções acima;
- Isenção da exigência do certificado de Livre Prática para navios de bandeira brasileira, quando navegando entre portos brasileiros;
- Isenção do pagamento da Taxa de Utilização do Mercante, nos casos de não incidência do Adicional de Frete para a Renovação da Marinha Mercante - AFRMM;
- Redução da alíquota do AFRMM de 10% para 8% na cabotagem, reduzindo a receita das empresas brasileiras de navegação, e que não onerava o usuário da cabotagem;
- Criação da alíquota do AFRMM de 8% para cargas de granel sólido na navegação interior nas regiões Norte e Nordeste.
Ainda teremos pela frente muito trabalho com a regulamentação e a regulação. No entanto, urge dar continuidade a todo esse processo para que, ao final, o País possa ser beneficiado de alguma forma.