A regra do artigo 754 do Código Civil e os efeitos da sub-rogação
quinta-feira, 28 de outubro de 2021
Atualizado às 08:10
O Código Civil estabeleceu regras específicas para o transporte de coisas, consagradas nos seus artigos 743 e seguintes. Trataremos aqui da regra específica do artigo 754, o chamado protesto do recebedor, assim definido:
"As mercadorias devem ser entregues ao destinatário, ou a quem apresentar o conhecimento endossado, devendo aquele que as receber conferi-las e apresentar as reclamações que tiver, sob pena de decadência dos direitos.
Parágrafo único. No caso de perda parcial ou de avaria não perceptível à primeira vista, o destinatário conserva a sua ação contra o transportador, desde que denuncie o dano em dez dias a contar da entrega."
O texto legal vigente revogou a regra anteriormente existente, consagrada no artigo 756 do Código de Processo Civil de 1939, com algumas alterações:
"Salvo prova em contrário, o recebimento de bagagem ou mercadoria, sem protesto do destinatário, constituirá presunção de que foram entregues em bom estado e em conformidade com o documento de transporte.
§1º Em caso de avaria, o destinatário deverá protestar junto ao transportador dentro em três (3) dias do recebimento da bagagem, e em cinco (5) da data do recebimento da mercadoria.
§2º A reclamação por motivo de atraso far-se-á dentro de quinze (15) dias, contados daquele em que a bagagem ou mercadoria tiver sido posta à disposição do destinatário.
§3º O protesto, nos casos acima, far-se-á mediante ressalva no próprio documento de transporte, ou em separado.
§4º Salvo o caso de fraude do transportador, contra ele não se admitirá ação, se não houver protesto nos prazos deste artigo."
Nota-se que, além da separação em relação ao transporte de bagagem, este inserido no âmbito das relações jurídicas de consumo e, portanto, submetido às regras consumeristas, a regra vigente estabeleceu alteração em relação ao prazo para que o recebedor promova o competente protesto, que na regra anterior era de cinco dias e que, atualmente, opera de duas formas, imediato para os casos de falta e/ou avaria aparentes e de dez dias, nos demais casos.
O objetivo do legislador ao estabelecer essa regra é claro no sentido de permitir ao transportador tomar conhecimento do fato em tempo hábil, de modo que possa acompanhar as vistorias e demais procedimentos destinados a apuração da efetiva ocorrência de danos, sua causa e extensão, com a preservação do direito ao contraditório.
A não obediência a essa regra faz com o que o transportador somente tome ciência do alegado dano quando não for mais possível exercer o seu direito, uma vez que o estado da mercadoria já não será mais o mesmo do momento da conclusão do transporte.
Isto, por si só, justifica a gravidade da consequência pelo não atendimento do disposto no artigo 754 do Código Civil, ou seja, fulminar o direito do recebedor, a decadência.
Vale citar, neste sentido, trecho relevante do voto proferido pelo Desembargador Ricardo Pessoa de Mello Belli, do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo1:
"A razão da exigência legal e da grave consequência prevista para o respectivo descumprimento é muito fácil de ser entendida: procura a lei assegurar que o transportador tenha pronto conhecimento do dano cuja responsabilidade lhe é atribuída, para que possa aferir a correspondente existência, extensão, a procedência ou não da imputação etc., até para poder reunir elementos de defesa frente a eventual ação indenizatória".
A aplicação e exigibilidade do quanto dispõe a lei não deve ser objeto de discussão, tendo sido amplamente reconhecido pela jurisprudência, a teor do acórdão acima mencionado e outros tantos exemplos de julgamentos realizados pelos Tribunais de Justiça pátrios acerca da matéria em comento.
E aqui analisaremos também os efeitos da incidência dessa norma em contraponto aos efeitos da sub-rogação, notadamente a sub-rogação legal do segurador.
A forma natural de extinção das obrigações se dá pelo pagamento, o qual comporta algumas modalidades, dentre as quais a sub-rogação, aqui destacada. No pagamento, como forma de extinção das obrigações, pode ocorrer que, não tendo sido este pagamento efetuado pela própria pessoa do devedor, a extinção só opere em relação ao credor originário, sobrevindo o vínculo obrigacional entre o terceiro que pagou a dívida em relação àquele que figurava como devedor na relação primitiva.
Este é o instituto jurídico denominado sub-rogação, cujo objetivo é garantir o terceiro que pagou dívida alheia, com a transferência dos direitos que originalmente eram do credor. Nesta modalidade, com o pagamento subsiste o vínculo obrigacional com substituição do credor.
A sub-rogação legal, ou seja, decorrente de lei, prescreve a titularidade dos direitos de credor a terceiros que solvem dívida alheia, sendo independente da manifestação de vontade das partes. Estas hipóteses encontram-se expressamente previstas nos incisos I a III do artigo 346 do Código Civil.
É no âmbito da sub-rogação legal que encontramos os seguradores sub-rogados, que pagam em face do dano ocorrido à coisa segurada, conforme dispõe o artigo 786 do Código Civil:
"Paga a indenização, o segurador sub-roga-se, nos limites do valor respectivo, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano.
§1º Salvo dolo, a sub-rogação não tem lugar se o dano foi causado pelo cônjuge do segurado, seus descendentes ou ascendentes, consanguíneos ou afins.
§2º É ineficaz qualquer ato do segurado que diminua ou extinga, em prejuízo do segurador, os direitos a que se refere este artigo".
Assim, o segurador, uma vez sub-rogado nos direitos do seu segurado, deverá reclamar em face daquele que tinha a obrigação originária, primitiva. Entretanto, importa salientar que o segurador "paga dívida própria, e não para solver a dívida do terceiro perante o segurado", argumento contrário à sub-rogação pessoal do segurador que "contraprestou, e recebera, antes, a prestação"2, em alusão ao fato de que o segurador nada mais fez do que cumprir o contrato celebrado com o segurado, do qual recebeu o pagamento do prêmio, comprometendo-se em indenizá-lo na hipótese de ocorrência do sinistro.
Desta forma, alinha-se ao pensamento no sentido de que o segurador não se configura um terceiro interessado, posto que, ao indenizar o segurado, paga dívida própria e não de terceiro. Assim, se não houver uma resposta daquele a quem se atribui a responsabilidade, cumprirá o segurador a função para a qual fora contratado, prestando ao segurado um pronto e imediato ressarcimento.
Pagando a indenização o segurador antecipa a obrigação que a princípio era de outrem, o que, a partir daí, origina seu direito de pleitear junto àquele o crédito equivalente a esta obrigação.
Isto significa que o mecanismo reparatório tem por escopo a indenização da vítima do dano, a qual, uma vez paga, satisfaz plenamente a reparação, subsistindo, no caso de sub-rogação do segurador, o direito de reembolso em face do causador do dano.
Assim, o que o segurador tem direito é ao ressarcimento dos valores despendidos, não havendo lugar para pleitear uma indenização em face do terceiro responsável pois o mecanismo reparatório já se consolidou, com a indenização paga àquele que é o único que tem a legitimidade para recebê-la, a vítima do evento.
Daí, para exercitar seus direitos de credor sub-rogado, cabe ao segurador fazer prova do pagamento da indenização ao segurado, bem como do nexo de causalidade entre o dano indenizado e o fato que se imputa à responsabilidade de terceiro.
Na prática, portanto, a sub-rogação representa para o segurador o reembolso ou ressarcimento da indenização paga ao segurado, por conseqüência de evento danoso causado por outrem.
Em resumo, o segurador assume o lugar do seu segurado na qualidade de credor do mesmo montante a que aquele tinha direito, não o substituindo na qualidade de vítima do evento, uma vez que só se indeniza uma vez.
A relação jurídica original é que precedeu e originou todos os atos jurídicos posteriores, mas ainda que se verificando a hipótese de sub-rogação, aquela permanece intacta, envolvendo credor e devedor primitivos.
Vê-se, então, que trata a espécie de duas obrigações distintas, a primeira que é a do segurador em face do segurado, por força do contrato de seguro, e a outra, que é a obrigação de indenizar não cumprida pelo causador do dano, derivada de outra relação jurídica, havida entre o segurado e o terceiro a quem se imputa a responsabilidade pelos danos.
Com efeito, a sub-rogação acarreta o aproveitamento pelo sub-rogado dos direitos creditórios outrora pertencentes ao credor primitivo. Por outro lado, não se apaga a existência da relação originária, primitiva, bem como consequentemente os seus respectivos efeitos jurídicos.
A busca de ressarcimento, com base na sub-rogação, será exercida pelo segurador em face do terceiro causador do dano ao segurado por força do direito que originariamente cabia ao segurado.
Portanto, se na relação jurídica originária o direito do segurado foi atingido pelos efeitos do que dispõe o artigo 754 do diploma civil, ou seja, caracterizada a falta de protesto tempestivo pelo recebedor, não há que se falar em direito de a seguradora buscar o respectivo reembolso, tendo operado a decadência na relação primitiva e a partir daí os seus efeitos reverberam às relações subsequentes.
Se inexistente o direito por força da decadência, não há sub-rogação, uma vez que fulminado o direito do credor originário. Recorrendo mais uma vez à jurisprudência, vale mais vez citar o acórdão anteriormente mencionado neste ensaio:
"Ora, é evidente que a sub-rogação prevista no art.786 do CC, em virtude do pagamento da indenização securitária, "nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano", só se verifica desde que efetivamente existente o direito e a pretensão que lhe é correlata.
Obviamente, portanto, desaparecendo o direito ou a correspondente pretensão, mercê de decadência ou prescrição produzida pelo segurado, a sub-rogação não se opera".
Desse modo, a decadência caracterizada na relação jurídica primitiva atinge toda a cadeia, não havendo mais um direito a sub-rogar.
Seguindo no campo da jurisprudência, em julgamentos ainda mais recentes, devemos citar o esclarecedor trecho do voto proferido pelo Desembargador Castro Figliolia3:
"O que se tem nos autos é que a segurada da autora deixou de realizar, no prazo, o necessário protesto relativo às avarias, motivo pelo qual caducou o seu direito à reparação dos danos.
Ao indenizar o segurado, a seguradora se sub-roga nos direitos e ações dele no estado em que se encontram. Justamente por isso, se o direito do segurado com relação aos transportadores foi alcançado pela decadência, a seguradora também não tem mais o direito de haver reparação".
(...)
"De resto, a falta de protesto não pode ser havida como ato do segurado que diminua ou extinga, em prejuízo do segurador, os direitos advindos da subrogação. De passagem, anote-se que nada impedia que a circunstância - a falta de protesto pelo segurado - constasse da apólice como causa excludente do dever de indenizar pela seguradora."
Finalmente, lançamos aqui relevante conclusão extraída do voto do Desembargador Roberto Mac Cracken, também do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo4:
"Tendo em vista que não foi comprovada a realização de protesto ao transportador no prazo de 10 dias da entrega das mercadorias nem foram impugnados as datas, informações e documentos mencionados pela requerida em sua contestação, de rigor reconhecer que restou configurada a decadência prevista no artigo 754, do Código Civil.
Também não merece acolhimento a alegação de não aplicação de tal prazo decadencial à seguradora, pois esta se sub-roga em todos os direitos e ações do segurado e, quando do pagamento com sub-rogação, o segurado já havia decaído do seu direito de ação."
A norma legal do artigo 754 do Código Civil, objetivamente, dispõe que o recebedor, para conservação de eventual direito indenizatório, deve apresentar o competente protesto ao transportador, tempestivamente. Trata-se de elemento formativo gerador do direito do recebedor, requisito formal para a sua existência.
*Marcus Sammarco é advogado e sócio no escritório Sammarco Advogados.
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1 Apelação Cível nº 1003097-29.2016.8.26.0002, TJSP, 19ª Câm., rel. Des. Ricardo Pessoa de Mello Belli, j. 22.5.2017, DJe 1.6.2017.
2 Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, Tomo 45, p. 341.
3 Apelação Cível nº 1084537-78.2015.8.26.0100, TJSP, 12ª Câm., rel. Des. Castro Figliolia, j. 8.7.2020, DJe 9.7.2020.
4 Apelação Cível nº 1122521-57.2019.8.26.0100, TJSP, 22ª Câm., rel. Des. Roberto Mac Cracken, j. 21.12.2020, DJe 21.12.2020.