A lei (quase) bicentenária: Notas sobre o arresto de embarcações na legislação brasileira
quinta-feira, 21 de outubro de 2021
Atualizado em 22 de outubro de 2021 08:24
O Código Comercial (formalmente promulgado como Lei nº 556, de 25 de junho de 1850), embora revogado naquilo que o Código Civil de 2002 o suplantou, ainda subsiste para o Direito Marítimo. Como é de se imaginar, entretanto, um diploma que recentemente celebrou 171 anos possui anacronismos em relação a aspectos comerciais e sociais contemporâneos. Dentre estes, é possível citar, especialmente, o regramento sobre o arresto de embarcações, objeto deste breve estudo.
De enorme importância para o comércio marítimo, o arresto ou embargo de embarcações sofreu profundas mudanças desde a entrada em vigor do Código Comercial. A jurisprudência e doutrina pátrias, como se verá adiante, paulatinamente superaram comandos específicos do Código Comercial, que em muito restringiam a aplicação do instituto e que encontram sua razão de ser nas condições históricas do antigo Brasil imperial.
O assunto é relevante na prática e ultrapassa a discussão meramente doutrinária. As disputas levadas ao Poder Judiciário brasileiro sobre a aplicação do instituto remontam ao início do século XX (merecendo especial destaque o ano de 1908, como se verá adiante). Não é de hoje que se aponta a defasagem entre o Código Comercial e a realidade do comércio marítimo, sendo a insegurança jurídica decorrente desse cenário uma constante pelos últimos (no mínimo) 113 anos.
Nesse sentido, importam para a presente análise, em particular, as regras dos arts. 470, 471, 474, 479 (cujo caput estabelece três requisitos distintos) e 482. Esses são os dispositivos que, em grande parte, tratam do contencioso envolvendo arresto de embarcações, sendo frequentemente citados pelas partes atingidas pelo arresto a fim de evitar o embargo do navio.
Em breve síntese, os arts. 470, 471 e 474 trazem o rol de créditos privilegiados (maritime liens) capazes de ensejar o arresto de embarcação, nos termos da primeira parte do art. 479. O final da primeira parte do art. 479, por sua vez, estabelece a vedação ao arresto de embarcação que já tenha carregado 25% ou mais de sua carga. Ainda em relação ao art. 479, sua segunda parte traz o impedimento ao arresto de embarcação que esteja na posse dos despachos necessários para zarpar. Por fim, o art. 482 proíbe expressamente o arresto de embarcações estrangeiras por dívidas não contraídas no Brasil.
Assim, para fins didáticos, os referidos dispositivos podem ser agrupados conforme seu assunto, da seguinte maneira: (i) arts. 470, 471, 474 e 479 (primeira parte) - créditos privilegiados; (ii) art. 479 (final da primeira parte) - óbice ao embargo de navio que já tenha carregado mais de um quarto de sua carga; (iii) art. 479 (segunda parte) - vedação ao embargo de navio que já detenha a documentação necessária para deixar o porto; e (iv) art. 482 - impossibilidade de arresto de embarcação estrangeira por dívidas não contraídas no Brasil. Como se verá, esses obstáculos à decretação do arresto foram sendo, um por um, gradualmente afastados pela jurisprudência e doutrina pátrias.
Em primeiro lugar, a exigência de configuração de crédito privilegiado há muito é abrandada pelos Tribunais brasileiros. Já na vigência do CPC/1973, não era incomum o deferimento de embargos a navios com base no poder geral de cautela do magistrado, previsto no art. 798 do referido diploma. Nesses casos, exigia-se tão somente a demonstração de fumus bonis iuris e periculum in mora para a concessão da medida, sendo dispensada a existência de crédito privilegiado. Embora com regramento distinto em alguns pontos, o CPC/15 também não previu a necessidade de constituição de crédito específico para a concessão do arresto. A jurisprudência passou a reconhecer que a manutenção dessa exigência poderia configurar afronta ao princípio constitucional de inafastabilidade do Poder Judiciário, assegurado no art. 5º, XXXV, da CF/88.1
Sobre esse ponto, o Tribunal de Justiça de São Paulo, ainda esse ano, teve a oportunidade de se manifestar. Em sede de agravo de instrumento, o Tribunal reformou decisão de primeira instância que havia indeferido pedido de cautelar de arresto de embarcação. In casu, o autor pleiteava o embargo do navio devido a crédito oriundo de honorários advocatícios, não havendo, no Brasil, qualquer outro bem do réu que pudesse responder pela dívida. Assim, o Tribunal decidiu pela concessão da medida, dispensando a exigência de que o crédito exequendo fosse privilegiado, como exigido pelo Código Comercial.2
Em relação ao impedimento de arresto de navio que já tenha embarcado mais de 25% de sua carga, também esse óbice vem sendo superado pelo Poder Judiciário. Essa regra encontra sua razão de ser em um passado distante do atual funcionamento do sistema de carga e descarga de mercadorias. Antigamente, o trabalho de transposição de bens do porto para o navio (e vice-versa) era essencialmente braçal, feito, quando muito, com o auxílio de algum guindaste. Assim, era comum que dias inteiros fossem investidos apenas no processo de loading e unloading da embarcação. Entretanto, hoje em dia, diante de cargas transportadas por meio de contêineres ou a granel, cuja manipulação é quase inteiramente mecanizada (à exceção da operação das próprias máquinas), as operações de carga e descarga reduziram-se a uma questão de horas, não subsistindo, portanto, motivo para o impedimento trazido pelo final da primeira parte do art. 479.
A esse respeito, o próprio TJSP já se pronunciou contrariamente à aplicação do art. 479. No caso, uma armadora pleiteou indenização pelo arresto do navio, que entendia ilegal com base no referido dispositivo. O TJSP, entretanto, entendeu pelo desprovimento do apelo, como pode se ver abaixo:
"No caso dos autos, após minuciosa análise do processo, andou bem o d. Julgador monocrático dando pela improcedência da ação.
Com efeito, sempre com a devida licença, no campo do direito marítimo, novas normas foram progressivamente sendo editadas, removendo antigos obstáculos e consequentemente franqueando o amplo acesso de credores, privilegiados ou não, às medidas que visam paralisar a movimentação de embarcações, segundo lições do Professor Luís Felipe Galante, em judicioso artigo publicado na internet "O Embargo de Embarcações no Novo CPC".
Assim é que doutrina e jurisprudência dando conta de que nossos Tribunais não têm mais aplicado o pressuposto negativo constante do art. 479 do Código Comercial ao deferir, repetidas vezes, medidas impeditivas de saída de embarcações de Portos Nacionais, independentemente da quantidade de carga porventura existente a bordo (Obra citada do Prof. Dr. Luís Felipe Galante).
Por outro lado, como precedentemente já colocado, as peculiaridades do caso concreto demonstravam à saciedade o perigo de dano e o risco ao resultado útil do processo. A bem da verdade, cuidava- se de fiança/caução de R$ 36.000.000,00 (sendo R$ 18.000.000,00 em cada Cautelar)".3
Da mesma forma, o Superior Tribunal de Justiça também já entendeu pela superação dessa limitação imposta pelo art. 479, citando, para sustentar esse entendimento, a ausência da previsão de tal óbice na Convenção de Bruxelas, internalizada no Direito Brasileiro por meio do decreto 351/19354.
A segunda parte do art. 479, que veda a constrição de embarcação já em posse dos documentos necessários para deixar o porto, também tem sido considerada ultrapassada. Os motivos são semelhantes aos já expostos: atualmente, a expedição da referida documentação é processada com extrema rapidez, de forma que as embarcações não precisam aguardar longos períodos de tempo para sua obtenção. Nesse sentido, o art. 479 é facilmente contornável, pois caso a documentação não tenha sido expedida, a decisão judicial dirigida à Capitania dos Portos deverá determinar a sua não expedição; ao revés, se já tiver sido entregue, a decisão deverá determinar a sua revogação.5
Ainda na vigência do CPC/73, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro já havia adotado esse entendimento, conforme pode se ver abaixo:
"DIREITO COMERCIAL E PROCESSUAL CIVIL. MEDIDA CAUTELAR EQUIVALENTE AO ARRESTO. NAVIO ESTRANGEIRO QUE COLIDE COM TERMINAL PORTUÁRIO. AÇÃO CAUTELAR QUE BUSCA OBTER GARANTIA DO RESSARCIMENTO. SAÍDA IMINENTE DO NAVIO DO TERRITÓRIO NACIONAL. EFEITOS. Cabível a concessão de medida liminar para compelir o armador e o operador de navio estrangeiro a caucionarem o Juízo para garantia de eventuais prejuízos causados por colisão do navio no terminal portuário, independentemente da existência de título executivo que autorize o arresto. Princípio fundamental da garantia ao resultado prático da ação. Provimento parcial do recurso para deferir a medida, impedindo a concessão de passe de saída do navio do porto enquanto não prestada caução idônea."
(0007762-24.2007.8.19.0000 - AGRAVO DE INSTRUMENTO. Des(a). ARTHUR EDUARDO DE MAGALHAES FERREIRA - Julgamento: 02/04/2008 - DÉCIMA TERCEIRA CÂMARA CÍVEL, sem ênfase no original)
Por fim, mas não menos importante (talvez, inclusive, o mais controverso dos impedimentos), o óbice ao arresto de embarcação estrangeira do art. 482 também não merece guarida, há, pelo menos, 113 anos. Em poucas palavras, a jurisprudência tem entendido que o comando do art. 482 viola flagrantemente o princípio da igualdade, positivado em nosso ordenamento pelo art. 5º, caput da CF/88, uma vez que estabelece clara distinção de tratamento entre as embarcações estrangeiras e de bandeira brasileira.
Nesse ponto, vale fazer uma breve digressão sobre a origem da regra: nos distantes idos do século XIX, quando a jovem nação brasileira ainda procurava atrair para sua costa o lucrativo fluxo do comércio internacional, era justificável que se incluísse em nosso Código Comercial artigo limitando o arresto de embarcações estrangeiras. Afinal, a expectativa era que a segurança outorgada pelo dispositivo tornasse nossos portos mais atrativos ao comércio internacional.[6] Hoje em dia, porém, seja em virtude de sua inconstitucionalidade, seja por força da realidade do comércio internacional contemporâneo, o dispositivo não encontra mais razão de ser, sendo verdadeiro vestígio arqueológico. Nesse sentido, ainda em 1908, o Supremo Tribunal Federal já havia se pronunciado pela inconstitucionalidade do art. 482, como pode se ver a seguir:
(...) o nosso direito comercial codificado data de 1850, quando o commercio marítimo era feito por navios à vela e as abalroações eram raríssimas. De então para cá tudo mudou e outras necessidades surgiram, e, como diz o ilustre escriptor, quando as leis não mais servem de instrumento para as necessidades dos homens e não lhes dão as garantias que elles reclamam, cahem em desuso; mas, se não são desde logo revogadas pela vontade do legislador, o Juiz liberta-se das mesmas, sahe fora dos seus limites asphyxiantes e busca nos fundamentos racionaes do direito o que lhe é negado pelo texto absoluto da lei.7
Por outro ângulo, a despeito da flexibilização dos requisitos para a concessão do arresto, vale mencionar que o CPC/15 também tratou de resguardar as hipóteses de dano causado à parte que suporta a restrição. O art. 302 do diploma processual em vigor estabelece que aquele que pleiteia o embargo responde pelo prejuízo causado à parte adversa se: (i) a sentença lhe for desfavorável; (ii) obtida a tutela, não fornecer os meios para citação da outra parte no prazo de cinco dias; (iii) ocorrer a cessação da eficácia da medida; ou (iv) o juiz acolher pretensão de decadência ou prescrição.
Como se vê, o instituto do arresto de embarcações no Direito brasileiro trilhou um longo caminho desde a entrada em vigor do nosso Código Comercial. Longe de permanecer estanque, a interpretação dada por nossos tribunais e pela doutrina especializada atualizou a aplicação do instituto do arresto ou embargo de embarcações, cuja utilização, se permanecesse amarrada aos estreitos limites do Código, certamente tornaria a medida praticamente inviável nos dias atuais. Em tempo, vale lembrar que o Projeto de Lei do Senado 487/2013 ("Novo Código Comercial"), na parte relativa ao embargo de navios, descarta o vetusto regramento do Código Comercial e incorpora a evolução doutrinária e jurisprudencial sobre a matéria.
*Luis Cláudio Furtado Faria é sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados.
**Vitor Chavantes Godoy da Costa é associado da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados.
***Gabriel Cavalcante Maia é estagiário da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados.
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1 VIANNA, G. M.; MARQUES, L. L.; CARDOSO, F. M. V. F. O Arresto de Embarcações no Brasil. R. EMERJ: Rio de Janeiro, v. 19, n. 74, p. 77 - 97, 2016.
2 TJ-SP - AI: 22950001420208260000 SP 2295000-14.2020.8.26.0000, Relator: Jonize Sacchi de Oliveira, Data de Julgamento: 31/03/2021, 24ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 31/03/2021.
3 TJ-SP - AC: 00497363320128260562 SP 0049736-33.2012.8.26.0562, Relator: Egidio Giacoia, Data de Julgamento: 28/08/2018, 3ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 30/08/2018.
4 "Destaco, a propósito, que a própria validade da proibição legal de arresto quando o navio está carregado com mais de 25% (vinte e cinco por cento) de sua carga, tal qual defendido pela requerente, tem sido questionada pela doutrina especializada, frente às disposições da Convenção de Bruxelas, internalizada pelo Decreto n. 351/1935, que não faz referência a qualquer limite para adoção da medida." (STJ, MEDIDA CAUTELAR Nº 21.042 - SP, Rel. Antonio Carlos Ferreira, 4ª Turma, julgado em 22.5.2013)
5 SILVA FILHO, Nelson Cavalcante. Embargo de embarcação ou arresto de navio? In: LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo (Coord.). Direito Marítimo: estudos em homenagem aos 500 anos da circum-navegação de Fernão de Magalhães. Belo Horizonte: Fórum, 2021.
6 CARVALHO, L. J. R. Aspectos Controversos no Arresto de Embarcações. Revista Direito Aduaneiro, Marítimo e Portuário: São Paulo, Vol. 1, n. 5, p. 98 - 114, 2011.
7 VIANNA. Op. cit.