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As funções do tribunal marítimo - Parte II - A função registral

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Atualizado às 07:51

Na primeira parte dessa série de textos, apresentei uma visão panorâmica das funções do Tribunal Marítimo (TM).  Dando prosseguimento ao tema, na coluna de hoje falarei sobre a função registral.

A função registral do TM é definida nos dispositivos da lei 2.180/54, a seguir transcritos:

Art . 13. Compete ao Tribunal Marítimo:

II - manter o registro geral:

a) da propriedade naval;

b) da hipoteca naval e demais ônus sôbre embarcações brasileiras;

c) dos armadores de navios brasileiros.

O primeiro e mais importante destes registros é o registro da propriedade, que funciona como um registro da própria embarcação, e que tem a importante consequência de definir a bandeira do navio, isto é, a qual nação estará vinculada, determinando seu ordenamento jurídico de origem e, até mesmo, a territorialidade brasileira a bordo, isto é, o navio registrado no Brasil é território brasileiro, não importando onde esteja navegando ou em que porto esteja fundeado ou atracado.  Naturalmente, sendo o navio, para certas finalidades, um bem imóvel por ficção, os ônus reais, como a hipoteca, devem ser registrados junto à propriedade da embarcação, sendo de competência do TM.  Por fim, o TM registra os armadores de navios brasileiros, ou seja, aquelas pessoas físicas ou jurídicas que aprestam o navio para uso comercial, explorando-o economicamente.

A função registral é ainda objeto de lei específica sobre os registros marítimos: a Lei 7.652/88 desenvolve as competências já definidas no art. 13 da lei 2.180/54, nos seguintes dispositivos:

Art. 3º. As embarcações brasileiras, exceto as da Marinha de Guerra, serão inscritas na Capitania dos Portos ou órgão subordinado, em cuja jurisdição for domiciliado o proprietário ou armador ou onde for operar a embarcação. 

Parágrafo único. Será obrigatório o registro da propriedade no Tribunal Marítimo, se a embarcação possuir arqueação bruta superior a cem toneladas, para qualquer modalidade de navegação. 

Art. 12. O registro de direitos reais e de outros ônus que gravem embarcações brasileiras deverá ser feito no Tribunal Marítimo, sob pena de não valer contra terceiros.

Art. 15. É obrigatório o registro no Tribunal Marítimo de armador de embarcação mercante sujeita a registro de propriedade, mesmo quando a atividade for exercida pelo proprietário.

A Lei estabelece uma divisão entre as embarcações com arqueação bruta superior a 1001, que devem ser registradas no TM, ou inferir a 100, que devem ser registradas na Capitania dos Portos com atribuição territorial onde a embarcação se encontra.  As embarcações classificadas como "miúdas" (inferiores a 5 metros de comprimento ou inferiores a 8 metros de comprimento, neste segundo caso se atendidos requisitos adicionais) podem, de acordo com sua finalidade, estarem dispensadas de registro ou terem o registro simplificado.

Merece referência, ainda na função registral, o Registro Especial Brasileiro (REB), criado pelo art. 11 da lei 9.432/972, que também deve ser feito pelo TM.  Este regime estabelece algumas facilidades ao armador que opta por registrar a embarcação no Brasil, ou seja, "arvorar a bandeira brasileira".  Isto ocorre porque há uma verdadeira concorrência, no âmbito internacional, entre Países conhecidos por oferecerem regimes facilitados, como Panamá, Libéria e Ilhas Marshall.  O tema, que extrapolaria os objetivos deste artigo, é bastante controverso, a começar pelo nome utilizado: os críticos dos regimes facilitados chamam esta prática de "bandeira de conveniência", apontando a inexistência, na maioria dos casos, de vínculos efetivos entre a embarcação e o País em que foi registrada. Apontam, ainda, que estes Países teriam padrões muito baixos de fiscalização de segurança, trabalhista e ambiental, configurando verdadeira concorrência desleal e perigo para a navegação. Outros, que rejeitam esta denominação, entendem que as facilidades de registro podem constituir parte lícita da livre concorrência em escala mundial, desde que respeitados certos padrões mínimos de segurança.

Do ponto de vista do Direito Público, a função registral do TM não apresenta grandes diferenças com relação aos atos administrativos em geral.  Esses registros, de natureza pública, mas que têm efeitos sobre as relações entre os particulares, são semelhantes a tantos outros existentes no Direito Brasileiro. Assim, o registro da emissão de títulos mobiliários é feito pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM, lei 6.385/763), as sociedades comerciais são registradas nas Juntas Comerciais (lei 8.934/944), a propriedade de veículos automotores tem registro nos Departamentos de Trânsito (Código de Trânsito Brasileiro, lei 9.503/975), e as marcas e patentes no INPI (lei 5.648/706).

Destarte, poderia o Legislador ter escolhido qualquer órgão, vinculado ou não à Marinha, para exercer tais atribuições, ou até mesmo ter criado um órgão específico para o registro da propriedade naval.  Nada obstante, entendo que foi acertada a opção pelo TM, dadas as peculiaridades que envolvem as embarcações e a jurisdição nacional da Corte do Mar.

Assim, a função registral tem natureza administrativa, tratando-se de atividade estatal de controle das informações sobre a propriedade naval.  Embora a compra, venda e propriedade de embarcações sejam livres, posto que protegidas pelas garantias constitucionais da propriedade (art. 5º, XXII7) e da livre iniciativa (art. 1º, IV8), há interesse público no registro estatal da propriedade, dada sua intrínseca ligação à questão da segurança da navegação: a base de dados do TM é essencial no controle da regularidade das embarcações e na aplicação de sanções.  Há interesse público, ainda, na segurança jurídica, decorrente da centralização do registro de propriedade, de modo a garantir a qualquer interessado a possiblidade de saber se está comprando do real proprietário, à semelhança do que ocorre com os registros de imóveis, além de saber se aquela embarcação está regular perante a Autoridade Marítima

Note-se que boa parte da função registral do Poder Público em geral, qual seja, aquela exercida pelos cartórios de registro de imóveis, registro civil, de títulos e documentos, etc., está sob fiscalização "interna" do Poder Judiciário (geralmente através das corregedorias de justiça dos tribunais estaduais). Nem por isso, tais funções perdem sua natureza administrativa. 

Por fim, cabe ressaltar que, a exemplo do que ocorre em outros tribunais administrativos, mesmo se tratando de atos essencialmente não-judiciais, no TM existe recurso, ao Colegiado, das decisões tomadas pelo Presidente9 nos processos de registro. É o que prevê o art. 157 do Regimento Interno Processual do Tribunal Marítimo (RIPTM):

Art. 157 - Os agravos interpostos às decisões proferidas pelo Juiz-Presidente nos Processos de registro serão apresentados em petição circunstanciada, acompanhada ou não de documentos.

Assim, é possível concluir que a função registral do Tribunal Marítimo é de grande importância, resguardando vários bens jurídicos relevantes e peculiares, como, indiretamente, a própria segurança da navegação e, diretamente, a segurança jurídica relativa à propriedade das embarcações. Neste contexto, um registro de propriedade marítima ágil, confiável e eficiente, é parte necessária do chamado "ambiente de negócios", essencial ao desenvolvimento de qualquer país.

__________

1 A arqueação bruta (AB) é uma medida adimensional, enquanto a tonelagem de arqueação bruta (TAB) costuma ser apresentada em "tonelagem de arqueação".  Em ambos os casos, são medidas de cálculo bastante complexo, específicas da Engenharia Naval. No que importa para o presente artigo, a medida pode ser relacionada, de forma aproximada, ao volume da embarcação.

2 Art. 11. É instituído o Registro Especial Brasileiro - REB, no qual poderão ser registradas embarcações brasileiras, operadas por empresas brasileiras de navegação.

§ 11. A inscrição no REB será feita no Tribunal Marítimo e não suprime, sendo complementar, o registro de propriedade marítima, conforme dispõe a lei 7.652, de 3 de fevereiro de 1988.

3 Art. 8º. Compete à Comissão de Valores Mobiliários:

II - administrar os registros instituídos por esta Lei;

4 Art. 3º Os serviços do Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins serão exercidos, em todo o território nacional, de maneira uniforme, harmônica e interdependente, pelo Sistema Nacional de Registro de Empresas Mercantis (Sinrem), composto pelos seguintes órgãos:

I - o Departamento Nacional de Registro do Comércio, órgão central Sinrem, com funções supervisora, orientadora, coordenadora e normativa, no plano técnico; e supletiva, no plano administrativo;

II - as Juntas Comerciais, como órgãos locais, com funções executora e administradora dos serviços de registro.

5 Art. 22. Compete aos órgãos ou entidades executivos de trânsito dos Estados e do Distrito Federal, no âmbito de sua circunscrição:

III - vistoriar, inspecionar quanto às condições de segurança veicular, registrar, emplacar, selar a placa, e licenciar veículos, expedindo o Certificado de Registro e o Licenciamento Anual, mediante delegação do órgão federal competente;

6 Art. 2º. O INPI tem por finalidade principal executar, no âmbito nacional, as normas que regulam a propriedade industrial, tendo em vista a sua função social, econômica, jurídica e técnica, bem como pronunciar-se quanto à conveniência de assinatura, ratificação e denúncia de convenções, tratados, convênios e acordos sobre propriedade industrial.

7 XXII - é garantido o direito de propriedade.

8 Art. 1º. A República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa

9 A competência do Presidente do TM para decisão nos processos de registro é estabelecida no art. 22, g) da lei 2.180/54:

Art. 22. Compete ao presidente:

g) deferir ou denegar o registro da propriedade marítima e a averbação de hipoteca e demais ônus reais sobre embarcações bem como o registro de armadores nacionais.