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Migalhas de Direito Marítimo no caso Ever Given - Parte IV - Investigação dos acidentes da navegação

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Atualizado às 09:33

O encalhe do navio Ever Given no Canal do Suez tem sido uma fonte de inspiração de diversos artigos na presente coluna, acerca de tópicos atinentes ao direito marítimo. Referido acidente terá, também, relevante papel pedagógico para o aprimoramento das regras e práticas em prol do sempre constante objetivo de segurança da navegação. E como elementos fundamentais nesta equação estão as investigações dos acidentes, realizadas pelas autoridades competentes, nas mais diversas searas, suas conclusões e recomendações delas advindas.

Um único acidente da navegação pode estar suscetível a mais de uma investigação, por autoridades de diversas esferas e jurisdições. A exemplo, podemos citar as investigações conduzidas pela autoridade marítima do porto ou região na qual ocorreu o incidente, bem como aquela conduzida pela autoridade do país da bandeira arvorada pela embarcação1.

Transmudando para a ótica da legislação brasileira, no caso de um incidente ocorrido dentro de um porto ou águas nacionais, o mesmo estaria suscetível a investigação por parte da Autoridade Marítima do Brasil. No mesmo sentido, no caso de uma embarcação de bandeira Brasileira vir a sofrer acidente em quaisquer espaços marítimos internacionais, a Autoridade Marítima Brasileira possui o direito e o dever de ordenar a abertura de um procedimento investigativo quando o navio tenha provocado danos graves a navios ou a instalações de outro Estado ou ao meio marinho, por força da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, da qual o Brasil é signatário2. Seja num ou noutro caso, a investigação se dará por meio de um Inquérito Administrativo sobre Acidentes e Fatos da Navegação (IAFN).

O procedimento de investigação está regulado em distintas normas nacionais, dentre as quais destacaremos aqui a lei 2.180/54, que dispõe sobre o Tribunal Marítimo Brasileiro e estabelece sua jurisdição concernente aos acidentes e fatos da navegação sobre embarcações mercantes de qualquer nacionalidade, em águas brasileiras, bem como embarcações mercantes brasileiras em alto mar, ou em águas estrangeiras3, corroborando o entendimento da retromencionada Convenção do Direito do Mar. As Normas da Autoridade Marítima, chamadas NORMAMs4, também regulamentam a matéria, de forma bem detalhada.

Por força da lei 9.537/97, que dispõe sobre a "segurança do tráfego aquaviário em águas sob jurisdição nacional", é atribuição da Autoridade Marítima Brasileira (AMB) elaborar normas que regulamentem de forma específica variados assuntos relacionados à salvaguarda da vida humana no mar, prevenção da poluição por embarcações e segurança da navegação5 afetos às convenções internacionais ratificadas pelo Brasil. E dentre tais normas, tem-se a NORMAM-09/DPC, que regulamenta a instauração e instrução do Inquérito (IAFN), suas formalidades e tramitação até a apreciação pelo Tribunal Marítimo.

Pois bem, como já visto acima, todo e qualquer acidente ou fato da navegação ocorrido em águas jurisdicionais brasileiras ou em embarcações brasileiras, ainda que estejam em águas internacionais, devem ser prontamente comunicados à Autoridade Marítima, por meio da Capitania dos Portos (CP) local, agência ou delegacia das capitanias6 - podendo até mesmo ser conduzido junto às embaixadas ou autoridades consulares brasileiras, quando o incidente ocorre no exterior7.

A atuação dos Oficiais investigadores e vistoriadores navais brasileiros (Port State e Control Officers (PSCOs) e Flag State Control Officers (FSCOs) visa garantir o cumprimento das convenções internacionais da Organização Marítima Internacional (IMO), ratificadas pelo Brasil e, não obstante, no implemento e fiscalização do cumprimento de leis e regulamentos, no mar e nas águas interiores, em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo, federal ou estadual, quando se fizer necessária, em razão de competências específicas.8

Precipuamente, as atividades dos PSCOs e dos FSCOs são voltadas para a prevenção de acidentes e fatos da navegação, aplicando os requisitos previstos nas Convenções, Resoluções e Diretrizes da IMO, de modo que navios abaixo do padrão exigido por tais regras internacionais (chamados substandard) sejam impedidos de navegar ou de operar em Águas Jurisdicionais Brasileiras. As supracitadas atividades são tratadas nas NORMAMs 01, 02 e 07/DPC.

Uma vez comunicada de um acidente ou fato da navegação, a Autoridade Marítima local terá o prazo de 5 dias, a contar da ciência da ocorrência do fato, para instaurar o inquérito (IAFN), que irá tramitar sob competência da Capitania ou Delegacia: (i) em cuja jurisdição tiver ocorrido o acidente ou fato da navegação; (ii) do primeiro porto de escala ou de arribada da embarcação no país; (iii) de inscrição da embarcação; ou (iv) que for designada pelo Tribunal Marítimo.

No curso do IAFN, o oficial encarregado por sua condução deverá colher as provas necessárias à apuração das possíveis causas e possíveis responsáveis pelo evento, incluindo a colheita de informações e documentos a bordo, oitiva de testemunhas e depoimentos daqueles que tiveram participação ou conhecimento dos fatos ocorridos, vistorias e inspeções técnicas periciais a serem conduzidas por inspetores ou vistoriadores navais, entre outras.

Dentro de até 90 dias de sua instauração, prazo este que poderá ser prorrogado justificadamente, o inquérito deverá ser concluído por meio da elaboração de um relatório por parte do oficial encarregado, a ser ratificado pelo Capitão dos Portos, consubstanciando todas as informações e provas obtidas e, a partir da análise das mesmas, apontando as possíveis causas e eventuais responsáveis pelo evento.

Caso haja o indiciamento de eventuais responsáveis, estes deverão ser intimados para, querendo, apresentarem uma defesa prévia antes dos autos serem remetidos ao Tribunal Marítimo. Na sequência, após a conclusão do procedimento investigativo, os autos do inquérito serão remetidos ao Tribunal Marítimo.

O Tribunal Marítimo (TM) teve a sua criação após a ocorrência do emblemático incidente envolvendo o navio alemão "Baden" no ano de 1930, alvejado por tiros de canhão proferidos pelo Forte do Vigia Leme (atual Forte Duque de Caxias ou Forte do Leme) no Rio de Janeiro - caso este que merece ser palco de um artigo próprio numa futura edição desta coluna. Desde a sua inauguração, há 87 anos, o TM vem atuando como órgão autônomo, auxiliar do Poder Judiciário e vinculado ao Ministério da Defesa, tendo como atribuições julgar os acidentes e fatos da navegação marítima, fluvial e lacustre e as questões relacionadas com tal atividade.9

Retomando o trâmite processual, após serem recebidos pelo TM, os autos do IAFN serão autuados, ganhando um número de processo junto ao Tribunal, distribuídos à Relatoria de um de seus Juízes e, ato contínuo, remetidos à Procuradoria Especial da Marinha (PEM).

Abra-se um parêntesis para esclarecer que a PEM, nos termos da Lei 7.642/1987, é diretamente subordinada ao Comando da Marinha, e "responsável, perante o Tribunal Marítimo, pela fiel observância da Constituição Federal, das leis e dos atos emanados dos poderes públicos, referentes às atividades marítimas, fluviais e lacustres" (art. 2º). Sua função muito se assemelha a do Ministério Público nos processos penais, na qualidade de guardiã das regras marítimas, atuando não só nos processos originados dos fatos e acidentes da navegação, como também prestando assessoria jurídica nas consultas concernentes ao Direito Marítimo Administrativo e ao Direito Marítimo Internacional.

Pois bem, recebendo os autos, cumprirá à PEM analisar as provas colhidas e conclusões atingidas no inquérito e decidir (i) se deverá ser apresentada uma representação em face de algum dos possíveis responsáveis pelo incidente; (ii) se novas diligências seriam necessárias por parte da Capitania dos Portos local para complementação das investigações; (iii) ou se o caso merece ser arquivado, sem maiores desdobramentos.

Caso a PEM decida representar em face de algum possível responsável, este requerimento de representação será incluído em pauta para que os juízes do TM possam deliberar acerca do recebimento ou não da referida representação feita pela PEM. Recebida a representação, o juiz Relator dará seguimento ao processo, determinando a citação do representado para que apresente sua defesa. Caso não seja recebida a representação, o Tribunal poderá ordenar a emenda da mesma ou o seu arquivamento.

Vale lembrar que o processo junto ao Tribunal Marítimo também poderá ser motivado por iniciativa de alguma parte interessada. Por exemplo, caso a PEM opine pelo arquivamento do caso e uma parte que se sentiu prejudicada com o evento queira tentar submetê-lo à apreciação do TM, esta parte poderá manejar uma representação de parte, no prazo e na forma prevista no artigo 41, II e § 1º da Lei do TM (lei 2.180/54)10. Em outra situação, caso a PEM apresente uma representação e esta venha a ser recebida pelo TM, dando início ao processo em face do representado, uma parte eventualmente interessada na responsabilização do representado poderá pleitear seu ingresso no processo na condição de assistente da PEM, contribuindo com a apresentação de elementos e evidências que possam demonstrar a reprovabilidade da conduta do representado.

A defesa da parte representada deve, necessariamente, ser subscrita por advogado e, caso a mesma permaneça revel, i.e, não apresente defesa no prazo legal, um defensor público será nomeado para exercício da sua defesa no processo junto ao TM.

Enquanto o inquérito (IAFN) consiste numa etapa investigativa, conduzida pela Autoridade Marítima, no curso do processo junto ao TM a parte representada terá pleno direito ao exercício do contraditório e ampla defesa, podendo requerer a produção de provas que subsidiem seus argumentos de defesa. Esclareça-se que o Código de Processo Civil tem aplicação subsidiária à lei 2.180/1954, razão pela qual o processo perante o Tribunal Marítimo terá tramitação um tanto similar à do procedimento civil ordinário.11

Uma vez concluída toda a instrução probatória, após a apresentação da defesa do Representado, réplica pela PEM e colheita das provas requeridas pelas partes, a PEM e o Representado serão intimados, sucessivamente e nesta ordem, para apresentarem suas razões finais, antes dos autos serem remetidos ao Juiz-Relator para elaboração do relatório e inclusão em pauta de julgamento.

Quando designado o julgamento, será facultado às partes a apresentação de sustentação oral, atualmente sendo possível o acompanhamento e participação das sessões por meio virtual, e, ao final, será proferido voto por parte do Juiz-Relator, seguindo-se com o voto do Juiz Revisor e dos demais Juízes que integram a sessão.

O julgamento pelo TM consiste numa decisão colegiada, por maioria de votos dentre 6 juízes votantes e, em caso de empate, o voto decisivo caberá ao juiz presidente.

Em caso de procedência da representação, as penalidades aplicáveis pelo TM seguirão o rol do art. 121 da Lei 2.180/1954, atribuindo-se à pessoa física ou jurídica responsável pelo acidente ou fato da navegação as seguintes sanções: 

i. Repreensão, medida educativa concernente à segurança da navegação ou ambas;

ii. Suspensão do pessoal marítimo;

iii. Interdição para o exercício de determinada função;

iv. Cancelamento da matrícula profissional e da carteira de amador;

v. Proibição ou suspensão do tráfego da embarcação;

vi. Cancelamento do registro de armador; e

vii. Multa, cumulativa ou não, com qualquer das penas anteriores. 

Mediante a publicação do acórdão, podem as partes opor recurso de Embargos de Declaração, no prazo de 48 horas, caso haja contradição, ambiguidade, obscuridade ou omissão no julgado. Também cabe recurso de Embargos Infringentes no caso de decisão não unânime ou caso haja matérias ou provas novas a serem apreciadas, surgidas após o encerramento da instrução probatória.

Uma vez transitada em julgado a decisão, se for o caso, prosseguirá o processo para execução e, após, os autos serão arquivados definitivamente, encerrando assim o procedimento de investigação dos acidentes da navegação.

Apesar de as decisões do Tribunal Marítimo não fazerem coisa julgada material, sendo passíveis de revisão pelos órgãos judiciais12 - aos quais caberá, eventualmente, o conhecimento e julgamento da responsabilidade civil ou penal decorrente do acidente ou fato da navegação - tal fato em nada abala a relevância do julgamento técnico proferido por esta Corte especializada, o qual será dotado de elevado valor probatório e presunção de certeza.

Aliás, a relevância das investigações administrativas dos fatos e acidentes da navegação, as funções do TM e a relevância das suas decisões perante o Poder Judiciário já foram bem tratadas por outros colegas especialistas em artigos anteriores desta coluna, cumprindo aqui a referência aos mesmos13.

O Tribunal Marítimo, portanto, consiste em órgão de extrema importância para o deslinde de causas referentes a acidentes e fatos da navegação e que, mais do que simplesmente punir os responsáveis, tem função pedagógica e corretiva, de ensinar e prevenir novos sinistros marítimos e aprimorar a navegação em nossas águas jurisdicionais e nas embarcações brasileiras, propondo medidas preventivas e de segurança da navegação.

Voltando ao caso do navio Ever Given citado como exemplo, vê-se que as investigações em curso também certamente terão relevantíssimo papel pedagógico, para o aprimoramento das regras e práticas visando maior segurança, como, aliás, ocorre historicamente na indústria da navegação14.

*Lucas Leite Marques é sócio do escritório KINCAID | Mendes Vianna Advogados. 

**Marcelo Engelke Muniz é advogado do escritório KINCAID | Mendes Vianna Advogados.

 

***Wellington Nogueira Camacho é oficial da Marinha do Brasil.

__________

1 Todo navio possui uma bandeira, que indica a nacionalidade do país onde está inscrito e registrado.

2 Artigo 94, parágrafo 7º da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar.

3 Lei 2.180/1954, art. 10, alíneas "a" e "b".

4 Disponível aqui.

5 Lei 9.537/1997, art. 3º.

6 O rol de acidentes e fatos da navegação, previsto tanto nos arts. 14 e 15 da lei 2180/54 e item 0106, "a", 1, da NORMAM-09/DPC, inclui: "naufrágio, encalhe, colisão, abalroação, água aberta, explosão, incêndio, varação, arribada e alijamento"; "avaria ou defeito no navio nas suas instalações, que ponha em risco a embarcação, as vidas e fazendas de bordo"; além de "o mau aparelhamento ou a impropriedade da embarcação para o serviço em que é utilizada, e a deficiência da equipagem", "alteração da rota", "má estimação da carga que sujeite a risco a segurança da expedição", "a recusa injustificada de socorro a embarcação em perigo", "todos os fatos que prejudiquem ou ponham em risco a incolumidade e segurança da embarcação, as vidas e fazendas de bordo" e "o emprego da embarcação, no todo ou em parte, na prática de atos ilícitos, previstos em lei como crime ou contravenção penal, ou lesivos à Fazenda Nacional."

7 Lei 2.180/1954, art. 33.

8 Lei Complementar 97/1999, art. 17, IV.

9 Conforme disciplinado no art. 1º da lei 2.180/54, norma esta que estabelece competir ao Tribunal marítimo não apenas "julgar os acidentes e fatos da navegação", mas também "manter o registro geral".

10 Art. 41 da lei 2.180/54. O processo perante o Tribunal Marítimo se inicia: (...) I - por iniciativa da Procuradoria; II - por iniciativa da parte interessada; III - por decisão do próprio Tribunal. § 1º O caso do número II dar-se-á: a) por meio de representação, devidamente instruída, quando se tratar de acidente ou fato da navegação, no decorrer dos trinta (30) dias subseqüentes ao prazo de cento e oitenta (180) dias da sua ocorrência, se até o final dêste, não houver entrado no Tribunal o inquérito respectivo; b) Por meio de representação, nos autos de inquérito, dentro do prazo de dois (2) meses, contado do dia em que os autos voltarem da Procuradoria, quando a promoção fôr pelo arquivamento, ou ainda no curso do processo dentro do prazo de três (3) meses, contado do dia da abertura da instrução, ou até a data de seu encerramento, se menor fôr a sua duração.

11 Art. 155 da lei 2.180/1954.

12  Nos termos do art. 18, da lei 2.180/1954: "As decisões do Tribunal Marítimo, quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação tem valor probatório e se presumem certas, sendo porém suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário".

13 Disponível aqui e aqui.

14 A esse respeito podemos citar relevantes convenções internacionais que foram impulsionadas por acidentes da navegação, como a promulgação da MARPOL após o acidente com o navio Torrey Canyon, a SOLAS Convention, após o incidente do Titanic, bem como diversas outras medidas legislativas surgidas após incidentes do Exxon Valdez, Prestige, Erika, entre outros.