Existe um código de trânsito para o mar?
quinta-feira, 22 de julho de 2021
Atualizado às 08:21
Quem observa a entrada da Baía de Guanabara num sábado de sol, certamente, percebe uma profusão de embarcações: grandes navios de carga e de passageiros entrando ou saindo dos portos do Rio de Janeiro e de Niterói, embarcações de apoio offshore, traineiras de pescadores profissionais e escunas levando turistas. Além desses trabalhadores do mar, dividem as mesmas águas lanchas de lazer, veleiros de todos os tamanhos (inclusive crianças em treinamento com seus optimist), canoas polinésias com seus grupos de remadores, caiaques, pescadores de fim de semana em traineiras alugadas, e motos aquáticas (jet ski). Como se fosse pouco, ainda há linhas regulares de barcas na Baía e, eventualmente, navios de guerra da Marinha do Brasil, que tem aqui a sede da sua Esquadra. Entre todas estas embarcações, ainda podemos encontrar esquiadores aquáticos, surfistas (sim, na Baía de Guanabara, em eventuais ressacas), nadadores em treinamento ou simplesmente banhistas, que seriam os "pedestres do mar".
É uma imagem que afasta, num simples olhar, a ideia de que no mar não haveria risco de colisões (chamadas no Direito Marítimo de "abalroação") ou mesmo atropelamentos, pela crença - equivocada - de que se pode navegar em qualquer direção, nos amplos espaços marítimos, com pouco ou nenhum risco de cruzar o caminho de outra embarcação, o que daria uma suposta "liberdade" ao navegante. Nem mesmo em alto-mar isso seria totalmente verdade, e definitivamente não é no espaço de águas interiores ou costeiras.
Como o objetivo desta coluna é aproximar o Direito Marítimo do público geral, peço licença para trazer alguns conceitos que parecerão óbvios para quem atua nessa área.
Voltando ao nosso sábado de sol na Baía de Guanabara, é importante recordar, ainda, que embarcações não têm freio. Sim, é preciso lembrar isso. Após um recente acidente entre duas lanchas em Angra dos Reis, um jornalista perguntou a um oficial de Marinha, "porque os barcos não tinham freado"... Conduzir uma embarcação é, essencialmente, planejar de modo contínuo, antever a manobra na mente do navegador, para ser executada num momento posterior.
Assim, é certo que o mar precisa de um "código de trânsito". E seria pouco útil um código que tivesse aplicação num único país, dada a grande extensão das águas internacionais e o fato de que o comércio internacional se dá, em grande medida (mais de 90%) pela via marítima, com navios passando em águas de diferentes países.
Por isso, foi editado o Regulamento Internacional para Evitar Abalroamentos no Mar, o RIPEAM-72, assim batizado pelo ano em que foi aprovado, 1972, sendo submetido a algumas revisões posteriores.
O RIPEAM estabelece regras detalhadas sobre quase todos os aspectos relevantes no tráfego aquaviário: regras de preferência entre embarcações, ultrapassagem, sinalização náutica, tráfego em rios, baías e canais naturais ou artificiais. Qualquer navegador reconhecerá, em qualquer lugar do mundo, os mesmos símbolos nas demarcações de direções, perigos e canais; usará os mesmos sinais de comunicação (por luzes, apitos ou bandeiras) e os mesmos códigos na radiocomunicação.
A importância destes sinais e do seu conhecimento é tamanha que as normas regulamentares brasileiras obrigam as embarcações amadoras a terem quadros-resumo das principais regras e sinais do RIPEAM1, para consulta rápida.
Dois pontos merecem destaque, por demonstrarem as peculiaridades do Direito Marítimo, no sentido de que a maior prioridade é a segurança de todos, para evitar a perda de vidas ou bens, e não a mera atribuição de responsabilidades por eventuais acidentes.
O primeiro ponto é a regra conhecida como last clear chance. A situação de rumos cruzados entre duas embarcações é aquela em que se pode antever uma abalroação se nenhuma delas manobrar para mudar seu curso (lembre-se, embarcações não têm freio...). Nesta situação, a embarcação que não tem preferência, obviamente, está obrigada a manobrar para evitar a abalroação, mudando sua velocidade ou direção. Porém, segundo a regra da last clear chance, a embarcação que têm preferência também deverá manobrar, se perceber que a outra não o fará, até a "última chance", ou seja, até o último momento em que sua própria manobra ainda poderá evitar a o acidente2.
É por isso que se diz que, numa abalroação, raramente a culpa será apenas do condutor de uma das embarcações envolvidas. Colocando em termos muito simples, numa palavra: não basta "estar certo", é preciso evitar o acidente, mesmo que se tenha razão. Por isso, não é incomum que, numa distribuição de culpas num acidente, a embarcação com preferência tenha que arcar com uma parte menor dos prejuízos, exatamente por não ter evitado sua ocorrência, mesmo "estando certa".
Isto seria inimaginável num acidente entre dois automóveis, em que um deles tenha avançado um sinal. Jamais um juiz atribuiria alguma culpa ao motorista que passou pelo sinal verde, pelo fato de não ter antevisto o erro alheio e tentado, se tivesse essa chance, evitar o acidente ou minimizar suas consequências.
O outro ponto peculiar que se quer destacar é quanto à obrigação de socorro mútuo entre os navegantes. Todo aquele que navega tem a obrigação de oferecer ajuda a quem esteja em perigo, mesmo que isso implique atraso ou mudança na sua rota3. Não importa se você está naquele passeio de aniversário ou churrasco a bordo, numa pescaria com amigos, ou levando uma mercadoria com prazo: tudo deve esperar enquanto se socorre outro navegante em apuros.
Estes dois pequenos exemplos, entre tantos outros que poderiam ser trazidos, mostram um ponto comum nas regras sobre o tráfego marítimo: a solidariedade, tanto no sentido jurídico, quanto no sentido comum. Todos aqueles listados nos primeiros parágrafos deste texto têm a obrigação de colaborar para a segurança da navegação, evitando ou minimizando acidentes e prestando socorro, quando necessário.
Antes que o leitor reclame que este artigo não tem nada de jurídico, vale lembrar: todo acidente e fato da navegação deve ser julgado pelo Tribunal Marítimo, segundo o processo definido na lei 2.180/54 e no seu Regimento Processual. A discussão entre as partes (acusação e defesa) se dará em torno da aplicação das normas de segurança da navegação, que começam justamente no RIPEAM, passam pela Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário (LESTA, Lei Federal 9.537/97) e chegam às Normas da Autoridade Marítima (NORMAM's)4. Não é de se espantar que um advogado, na tribuna da Corte Marítima, use a linguagem própria dos marinheiros, falando em boreste (e não "lado direito" da embarcação) e em cabos (jamais em "cordas"), pois são precisamente as palavras usadas por todas estas normas, que constituem, efetivamente, normas jurídicas, e não apenas técnicas.
Ademais, não é apenas no universo do Tribunal Marítimo, ou dos processos administrativos baseados na LESTA, que estas normas jurídicas poderão ter aplicação.
O RIPEAM foi internalizado no Direito Brasileiro pelo decreto legislativo 77, de 1974. Desde então, vigora como lei interna no Brasil, com status de lei ordinária Federal.
Assim, inequivocamente, o RIPEAM atende ao conceito de "lei Federal", para fins de interposição do recurso especial, pelas alíneas "a", "b" ou "c" do dispositivo constitucional5. Logo, o Superior Tribunal de Justiça poderá conhecer e julgar recurso especial baseado na violação, ou interpretação divergente entre Tribunais federais ou estaduais, de dispositivos do Regulamento. Também na tribuna do STJ, portanto, se poderá ouvir boreste, barlavento, cabo, etc.
Esta circunstância, raramente percebida pela doutrina brasileira, ajuda a demonstrar outra premissa que tenho defendido, aqui nesta coluna e em outros espaços: a importância do art. 18 da lei 2.180/546, e a necessidade de que o Poder Judiciário veja o Tribunal Marítimo como um aliado na distribuição da justiça, e não como um "concorrente". A "matéria técnica" a que se refere o dispositivo legal também envolve a aplicação do RIPEAM, de modo que não escapará do conceito de lei Federal. Melhor, então, que o Judiciário leve em conta, na medida em que a lei assim o determina, o juízo feito pelo Tribunal Marítimo na interpretação do Regulamento - e ainda que seja formalmente lei Federal - em cada caso concreto.
Assim, prezado leitor, em sua próxima travessia da Baía de Guanabara, seja na barca Rio x Niteroi, seja num passeio com amigos em embarcação de lazer, não se iluda com a aparente desordem no movimento das embarcações. No mar, há mais do que um código de trânsito. Há regras, e não são poucas: o RIPEAM - norma internacional incorporada, como lei Federal, ao ordenamento jurídico interno - a LESTA e as NORMAM's. São todas normas técnicas, mas também jurídicas, e por isso devem ser do conhecimento do advogado e de todos aqueles que pretendem entender o Direito Marítimo.
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1 NORMAM 03: 0421 - QUADROS
As embarcações deverão dotar quadros em local de fácil visualização, e as que não dispuserem de espaço Usico suficiente poderão mantê-los arquivados ou guardados em local de fácil acesso ou reproduzi-los em tamanho reduzido, que permita a rápida consulta:
a) Embarcações de Grande Porte, ou Iates, deverão dotar em local de fácil visualização, os quadros abaixo:
1) Regras de Governo e Navegação;
2) Tabela de Sinais de Salvamento;
3) Balizamento;
4) Sinais Sonoros e Luminosos; e
5) Luzes e Marcas;
b) Embarcações de Médio Porte - estão dispensadas de manter a bordo os quadros dos itens 4) e 5);
2 RIPEAM, Regra 17: (b) Quando, por qualquer motivo, a embarcação que deve manter seu rumo e sua velocidade se encontrar tão próximo que um abalroamento não possa ser evitado, unicamente pela manobra da embarcação obrigada a manobrar, ela deverá manobrar da melhor maneira para auxiliar a evitar o abalroamento.
3 Lei 7.273/84:
Art. 5º - Todo Comandante é obrigado, desde que o possa fazer sem perigo sério para sua embarcação, tripulação, passageiro ou para outra pessoa, a utilizar sua embarcação e meios sob sua responsabilidade para prestar auxílio a quem estiver em perigo de vida no mar, nos portos ou nas vias navegáveis interiores.
4 O art. 4º, I da LESTA prevê, entre as atribuições da Autoridade Marítima, a edição de normas complementares às suas disposições. Essas normas ficaram conhecidas como "NORMAN" (Norma da Autoridade Marítima), numeradas sequencialmente e divulgadas pela Diretoria de Portos e Costas da Marinha (DPC).
5 Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:
III - julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida:
a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência;
b) julgar válido ato de governo local contestado em face de lei federal;
c) der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal.
6 Art. 18. As decisões do Tribunal Marítimo quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas, sendo porém suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário.