Processos de alta relevância: Um importante avanço no processo marítimo
quinta-feira, 13 de maio de 2021
Atualizado às 09:04
No dia 6 de abril, o Tribunal Marítimo (TM) editou a resolução 54/2021, que traz várias inovações importantes no âmbito daquela corte administrativa, para julgamento de acidentes e fatos da navegação. Hoje, falaremos da primeira destas inovações, a classificação de processos como de "alta relevância".
A lei 2.180/54 define os acidentes e fatos da navegação - objeto da jurisdição administrativa do TM - de forma bastante ampla1, como, por exemplo "todos os fatos que prejudiquem ou ponham em risco a incolumidade e segurança da embarcação, as vidas e fazendas de bordo". Mesmo a clássica lista dos acidentes da navegação, positivada no art. 14 da lei (naufrágio, encalhe, colisão, abalroação, água aberta, explosão, incêndio, varação, arribada e alijamento) cobre uma amplitude muito grande de fatos.
Para que o leitor possa situar este ponto, imagine-se o seguinte exemplo: uma pessoa rema uma canoa, sozinha, num rio ou lago. Outra embarcação maior passa próxima e, com o deslocamento de água resultante ("marola"), a canoa é inundada e vem a afundar. O remador, ileso, nada até a margem. Isto é, tecnicamente, um acidente da navegação (naufrágio), que terá que ser investigado através do IAFN (inquérito de acidentes e fatos da navegação), e gerará um processo no TM, para julgamento colegiado das responsabilidades.
É compreensível, neste contexto, que num país com 9.200 Km de costa, além de 42.000 Km de vias interiores navegáveis (contando-se só as acessíveis a embarcações a partir do médio porte), e incontável número de pequenas embarcações fluviais na região Norte, o número de fatos sujeitos à jurisdição do TM - que é único de jurisdição nacional - seja gigantesco. Consequentemente, o número de processos que afluem àquela Corte também é gigantesco, desafiando constantemente a capacidade de processamento e julgamento da instituição, que conta com apenas sete juízes e realiza todos os seus julgamentos de maneira colegiada.
Nos últimos anos, muitos esforços têm sido feitos pela atual presidência do Tribunal, para modernizar e acelerar o andamento dos processos e melhor atender aos jurisdicionados, sendo o mais importante deles a instituição, em 2020, do processo eletrônico, há muito esperado pelos advogados que militam naquela Corte. Ainda assim, o desafio da grande quantidade de processos continua.
A sociedade, em geral, desconhece esses fatos, e só ouve falar da Corte do Mar - infelizmente - quando ocorrem acidentes de grande repercussão, com muitas vítimas ou consideráveis danos materiais ou ao meio ambiente. Neste momento, se costuma cobrar respostas rápidas dos órgãos de investigação (Capitanias dos Portos) e responsabilização imediata pelo Tribunal Marítimo, como se não houvesse nenhum outro processo em andamento, ou nenhum outro acidente a ser investigado. É compreensível este anseio da sociedade, embora irrealizável na prática.
Por isso, em boa hora a nova resolução criou a classificação de IAFN ou de processo marítimo como de "Alta Relevância para a Segurança da Navegação", que tramitarão com prioridade com relação aos demais. O novo art. 24-B do Regimento Interno Processual do TM dispõe que poderão receber esta classificação os inquéritos ou processos:
I - de grande repercussão na sociedade;
II - com acentuado número de vítimas fatais/feridos;
III -cujos acidentes ou fatos da navegação tenham causado danos ambientais de grande amplitude ou impactem/impeçam o regular fluxo de embarcações;
IV - que envolvam elevada complexidade ou demandem atuação extraordinária de força de trabalho para apuração da (s) causa (s) determinante (s); e
V - outras hipóteses que apresentem características peculiares, devidamente justificadas e reconhecidas pelas autoridades competentes.
As hipóteses dos dois primeiros incisos, bem como a de danos ambientais de grande amplitude, são facilmente compreensíveis, e se inserem no importante esforço de dar uma resposta mais rápida à sociedade, sem descuidar das garantias do devido processo legal.
Quanto ao impedimento ao regular fluxo de embarcações, se sua importância não era especialmente visualizada até recentemente, passou a ser conhecida de todos, com o episódio do navio Ever Given, no Canal de Suez. O acidente (encalhe) não causou vítimas nem danos ambientais, mas foi capaz de propiciar transtornos e prejuízos indiretos em escala mundial e de bilhões de dólares. No Brasil, há precedentes de portos que ficaram bloqueados, por horas ou mesmo dias, em razão do encalhe de navios nos canais de acesso. Do ponto de vista jurídico, à luz do art. 18 da lei 2.180/542, é a decisão do TM que, ao atribuir as responsabilidades, orientará o destino de processos cíveis e criminais, na Justiça Comum, relacionados ao fato3. É de todo recomendável, portanto, que sua tramitação no âmbito do processo marítimo seja a mais célere possível, dado o efeito multiplicador que terá sobre a solução de vários outros litígios.
Além disso, em acidentes de grandes proporções, a rápida colheita de provas é essencial, por pelo menos dois motivos: em primeiro lugar, pela possibilidade de que os movimentos naturais, como um simples movimento da maré ou o deslocamento de uma embarcação, ou casco soçobrado, por força das correntes marítimas, destruam as provas ou dificultem a correta compreensão da dinâmica dos fatos. Em segundo lugar, as consequências operacionais e econômicas de uma única embarcação fora de serviço (ou bloqueando vias navegáveis, como no exemplo acima) podem provocar verdadeiro "efeito cascata" de prejuízos, recomendando também uma rápida apuração, para que possam ser removidos os destroços e liberadas as embarcações ou vias marítimas, restaurando a normalidade do tráfego no local.
A resolução 54 estabelece, ainda, que a competência para atribuir o status de "Alta Relevância" aos inquéritos ou processos será da Autoridade Marítima (Comandante da Marinha) ou seus representantes (Capitães dos Portos) ou ainda do juiz-presidente do Tribunal Marítimo (novo art. 24-A do Regimento Interno Processual). Por fim, as alterações entrarão em vigor 60 dias após a publicação, ou seja, no próximo dia 7 de junho.
Digna de encômios, portanto, mais esta iniciativa de aprimoramento do processo marítimo. Com esta novidade, o Tribunal Marítimo estará ainda mais próximo da sociedade, oferecendo respostas mais rápidas às demandas por sua jurisdição, sem descurar do reconhecidamente elevado nível técnico e suas decisões, nem do devido processo legal.
*Sérgio Ferrari é sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados, doutor em Direito Público pela UERJ e autor de livro e artigos sobre o Tribunal Marítimo.
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1 Art. 14. Consideram-se acidentes da navegação:
a) naufrágio, encalhe, colisão, abalroação, água aberta, explosão, incêndio, varação, arribada e alijamento;
b) avaria ou defeito no navio nas suas instalações, que ponha em risco a embarcação, as vidas e fazendas de bordo.
Art. 15. Consideram-se fatos da navegação:
a) o mau aparelhamento ou a impropriedade da embarcação para o serviço em que é utilizada, e a deficiência da equipagem;
b) a alteração da rota;
c) a má estimação da carga, que sujeite a risco a segurança da expedição;
d) a recusa injustificada de socorro a embarcação em perigo;
e) todos os fatos que prejudiquem ou ponham em risco a incolumidade e segurança da embarcação, as vidas e fazendas de bordo.
f) o emprego da embarcação, no todo ou em parte, na prática de atos ilícitos, previstos em lei como crime ou contravenção penal, ou lesivos à Fazenda Nacional.
2 Art. 18. As decisões do Tribunal Marítimo quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas, sendo porém suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário.
3 Há uma controvérsia de décadas, com várias teorias e correntes doutrinárias, sobre a interpretação do art. 18 da lei 2.180/54 e, portanto, sobre os efeitos da decisão do TM sobre os processos judiciais, cíveis ou criminais, não sendo possível desenvolvê-la neste espaço. A respeito, o leitor poderá encontrar exposição mais detida em: Ferrari, Sérgio. Tribunal Marítimo: natureza e funções. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2017, especialmente às páginas 123-156.