Marco da primeira infância e as múltiplas infâncias do Brasil
terça-feira, 12 de setembro de 2023
Atualizado às 09:58
O mês de agosto, a partir da sanção da lei 14.617/23, passou a ser considerado o Mês da Primeira Infância no país. Esta iniciativa visa, principalmente, promover e dar visibilidade a pauta da primeira infância no Brasil, discutindo a importância a qual deve ser dada aos cuidados na fase que vai desde a gestação até os primeiros seis anos de vida da criança.
A referida Lei Federal prevê ações integradas de conscientização sobre o tema e fomenta o atendimento multiprofissional a crianças de 0 a seis anos, conforme descritas no Marco da Primeira Infância1, lei 13.257, de 08 de marco de 2016, que completou 7 anos de sua existência.
A primeira Infância é importante porque, como aponta Gaby Fujimoto2, nela se estruturam as bases fundamentais do desenvolvimento humano, tanto físicas como psicológicas, sociais e emocionais, as quais vão se consolidando e se aperfeiçoando nas etapas seguintes do desenvolvimento3.
Estudos científicos comprovam que, do nascimento aos primeiros seis anos de vida, uma criança é capaz de desenvolver-se das mais diversas formas e, a partir das experiências vivenciadas neste período, pode ser impactada positiva ou negativamente ao longo de sua vida.
Estes estudos, iniciados há décadas, vem acumulando inúmeras evidências da importância dos primeiros seis anos de vida no desenvolvimento do ser humano e, se por um lado este período pode ser considerado como aquele de maiores oportunidades para a plenitude da vida, ele também é aquele de muitas vulnerabilidades e de extrema suscetibilidade às influências e ações externas, como a violência e a pobreza.
Deste modo, se a criança nasce e cresce em um ambiente cercado de afeto, respeito, estímulos positivos ao seu desenvolvimento, muito provavelmente terá um desenvolvimento sadio. Contudo, se ela nasce e cresce num ambiente hostil, permeado das mais diversas formas de violações a seus direitos e garantias, é provável que terá impactos negativos em sua saúde, educação, relacionamentos sociais etc.
Entretanto, cabe aqui uma breve reflexão: a qual infância estas legislações se destinam afinal? Pois, é sabido que o Brasil é multicultural e possui não só uma infância, mas várias infâncias, cada qual com suas particularidades. Será que, de fato, todas as infâncias são objetos deste cuidado?
Segundo dados prévios da coleta do Censo Demográfico de 2022, feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), estima-se que há no país cerca de 68,6 milhões de crianças e adolescentes entre 0 e 19 anos.
Segundo pesquisa recente do UNICEF, deste total, cerca de 32 milhões de crianças e adolescentes vivem na pobreza (aqui abarcando a pobreza em suas dimensões: renda, alimentação, educação, trabalho infantil, moradia, água, saneamento e moradia) E, numa situação ainda pior, 10,6 milhões de crianças e adolescentes4 (de 0 a 14 anos) vivem em condições de extrema pobreza.
Ou seja, parte de toda uma população submetida às mais diversas violências, em que as politicas públicas elencadas como prioritárias no Marco da Primeira Infância, não são contempladas em sua integralidade, pelo contrário, é escassa, quando não, ausente.
Não obstante retratar em números a questão socioeconômica na qual grande parcela da população infantojuvenil se encontra, faz-se importante retratar outras violências às quais as crianças são cotidianamente submetidas. E, num recorte por faixa etária e cor, as crianças negras são as maiores vítimas.
Dados do Anuário Brasileiro de Segurança apontam que 67,1% de crianças vítimas de mortes violentas intencionais eram negras, numa faixa etária de 0 a 11 anos; sendo que 55,8% foram mortas por arma de fogo.
Ainda neste sentido, dados do "Panorama da violência letal e sexual contra crianças e adolescentes no Brasil", que é fruto de uma parceria entre a UNICEF e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, apontam que de 2016 (ano de sanção do Marco da Primeira Infância) e 2020, foram 35 mil crianças e adolescentes mortos de forma violenta no Brasil. Este mesmo levantamento reforça os dados citados do Anuário Brasileiro, ou seja, a maioria das vítimas eram meninos negros, cerca de 1.070, entre 0 e 9 anos.
Cabe aqui ressaltar que, só no primeiro semestre de 20235, houve um aumento de 24% de denúncias e 53% de violações contra crianças e adolescentes no país.
Diante destes dados, reforço o questionamento deste texto, "A quais infâncias as referidas legislações se destinam?", considerando que no Brasil a primeira infância carece de uma atenção mais focada, sensível às particularidades da idade e, infelizmente, nem todas as crianças nesta faixa etária terá efetivo o acesso às políticas públicas e/ou cuidados essenciais ao seu desenvolvimento.
Historicamente, a infância no Brasil foi e tem sido marcada por diversas formas de privações e violações, de maus tratos, a abusos sexuais, mas repensar este marco temporal que fixa a prioridade de políticas estatais para esse público, pode minimizar tais situações a fim de assegurar acesso e proteção aos mais diversos direitos fundamentais.
Não podemos resumir a defesa da infância à leis ou datas comemorativas, mas sim, tratá-la como uma missão cotidiana, capaz de produzir frutos que nos levem de fato a ações propositivas, mas que venham a ser efetivadas. E mais, ter como premissa que estas leis atenderão desinteressadamente crianças reais, distintas da criança universal, abstrata e conceitual, a cuja qual tudo é possível - apenas no papel.
Deverão atender, sem quaisquer distinções, todas as crianças que tem rosto e nome, que em sua maioria moram nas regiões periféricas de nossas cidades, que necessitam de creche ou pré-escola de qualidade, que buscam atendimento nos postos de saúde, querem atenção e espaços adequados para exercer o seu direito de brincar e, acima de tudo, desejam ter o pleno desenvolvimento do artigo 227 da Constituição Federal, bem como os princípios do Estatuto da Criança e do Adolescente, reforçados pelo Marco Legal da Primeira Infância.
Trata-se de um grande desafio olhar as infâncias a partir das distintas realidades em que crianças de 0 a 6 anos encontram-se inseridas, em especial sob o argumento das diferenças econômicas, sociais e culturais às quais são submetidas. Mas, ainda assim, requer-se das políticas estatais, com máxima urgência, a devida proteção e cuidados no desenvolvimento integral da criança nesta fase de sua vida.
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1 Nota: No Brasil, considera-se primeira Infância o período até os seis anos de idade (72 meses de vida).
2 Doutora em Educação, Especialista em Primeira Infância.
3 CRC/C/GC/7/ Rev.1, OBSERVAÇÃO GERAL nº 7 (2005). "Definição da primeira Infância (.) varia nos diferentes países e regiões, segundo suas tradições locais e a forma em que estão organizados os sistemas educacionais. Em alguns países, a transição da etapa pré-escolar à escolar ocorre pouco depois dos 4 anos de idade. Em outros países, esta transição ocorre por volta dos 7 anos".
4 Relatório Fundação Abrinq "Cenário da Infância e da Adolescência no Brasil 2023"
5 Fonte: Disque 100/MDHC.