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Breve reflexão sobre a revitimização de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual

terça-feira, 24 de maio de 2022

Atualizado em 25 de maio de 2022 14:50

Em 18 de maio de 1978 a pequena Araceli Crespo foi brutalmente assassinada, após ter sido sequestrada e violentada. Vinte e dois anos depois, a data foi consagrada como o Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, através da lei 9.970/2000, como forma de incentivar a realização de ações que alertem a sociedade sobre o tema. Infelizmente até hoje o tema é de certa maneira invisibilizado.

Dados apresentados pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, referentes aos anos de 2018 e 2019 mostram que o Disque 100 recebeu por volta de 17.000 denúncias de violência sexual praticadas contra crianças e adolescentes. Esse tipo de violência em sua maioria ocorre na casa da vítima ou do suspeito; pais e padrastos representam 40% dos suspeitos informados e 82% das vítimas são do sexo feminino, ou seja, grande parte do abuso sexual contra essa parte da população ocorre dentro de casa e tem como algoz alguém com relação de proximidade com a vítima.

Nos casos de abuso sexual de crianças e adolescentes perpetrado por um dos genitores é comum que o fato seja apurado na seara penal e tenha repercussões no direto de família, na discussão de guarda, além das medidas protetivas urgência no bojo da Lei Maria da Penha que podem ser concedidas para a proteção da criança ou adolescente. Infelizmente essa diversidade de processos expõe a criança ou adolescente a um processo de revitimização.

A doutrina diferencia a vitimização em três níveis:  (i) vitimização primária, no qual a vítima é o sujeito diretamente afetado pela prática do ato delituoso; (ii) vitimização secundária, quando essa vítima primária sofre as consequências de sua relação com o Estado em razão do delito, como por exemplo a burocracia do sistema, que expõe às vítimas à várias oitivas (revitimização) e (iii) vitimização terciária, no qual o sujeito envolvido no ato delituoso é exposto a sofrimento excessivo, além daquele determinado pela lei1.

No que tange a proteção de crianças e adolescentes em relação aos processos de vitimização, a lei 13.431/2017 estabelece um sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, tendo em vista o reconhecimento da condição peculiar de crianças e adolescentes como pessoas em desenvolvimento, a proteção integral a eles destinada e a absoluta prioridade, conforme art. 227 da Constituição Federal.

A referida lei reconhece a violência institucional e a possibilidade de vitimização secundária (4º, IV) como forma de violência na qual crianças e adolescentes estão expostos e ressalta, ao tratar da escuta e do depoimento especial, a não admissão de tomada de novo depoimento, salvo quando demonstrada sua imprescindibilidade e houver a concordância da vítima, da testemunha ou de seu representante legal (art. 11, §2º), a fim de evitar a revitimização.

Apesar das considerações acima expostas, observa-se que a proteção de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual intrafamiliar ainda tem falhas, seja na demora na oitiva das vítimas, bem como na determinação de repetição de oitivas em contextos diferentes como em perícia, estudo psicológico e na coleta de depoimento especial.

Uma das ferramentas processuais a ser utilizadas nesses casos é a prova emprestada, prevista no art. 372 do Código de Processo Civil. Em que pese a regra geral, na qual as provas devem ser produzidas no próprio processo, a admissão de uma prova emprestada nos casos aqui discutidos pode ser justificada pela necessidade de se evitar a revitimização de crianças e adolescentes, além dos benefícios de otimização, racionalidade e eficiência, atendendo a garantia constitucional da duração razoável do processo.

Além da prova emprestada, outra medida importante se evitar a revitimização é priorizar a oitiva especial da criança ou adolescente. Nos casos concretos, observa-se uma demora na requisição dessa oitiva no âmbito penal, que só ocorre meses após os fatos. Se há ainda demanda cível no caso de guarda e visitas, não raro ter a determinação de estudo psicossocial com a criança e família.

A título exemplificativo, em um caso concreto de possível abuso de uma criança perpetrado por seu genitor, ocorrido em 2019, a oitiva em estudo psicossocial se realizou antes da oitiva especial de âmbito penal, isso apenas no ano de 2021. Nesse meio tempo a criança foi exposta a visitas do genitor que, ainda que de forma monitorada, lhe causaram diversos traumas. Felizmente, na Ação Cautelar que buscava a produção de prova antecipada por meio de depoimento especial, a Juíza responsável avaliou que o estudo psicológico realizado na ação de guarda trazia a narração dos fatos ocorridos com precisão de detalhes e que foi constatado intensos e variados sentimentos, sendo que uma nova oitiva poderia agravar a situação emocional da vítima. Assim, a magistrada oficiante no caso considerou que nova oitiva causaria a revitimização ou vitimização secundária, concretizada na prática com a ação dos responsáveis pelo processo de resolução de conflito sem a devida consideração e proteção em relação às expectativas e ao sofrimento da criança.

Interessante que a criança, durante o estudo psicológico da ação de guarda, expressou não querer mais falar dos fatos pois já falou sobre o assunto "um milhão de vezes". Essa criança foi exposta à revitimização e sua fala expressa de forma inequívoca o seu sofrimento. Os processos que deveriam protegê-la acabam por machucá-la.

São casos como este que ocorrem na prática forense e que lutamos para evitar, pois constata-se que apesar da iniciativa da lei 13.431/2017, não há efetividade na proteção de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual se não houver maior agilidade em suas oitivas no âmbito penal, que deverão ser aproveitadas em outros âmbitos como no direito de família, por meio de prova emprestada (art. 372 do CPC). Também é salutar que psicólogos e médicos envolvidos nos processos estejam alertas à questão, para que se lance mão de ferramentas para evitar mais sofrimento a essas vítimas.

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1 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 6ª Edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, pp. 54-55.