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Violando direitos de adolescentes que fazem uso de drogas em nome do (não) cuidado: A nova resolução Conad 03/20

terça-feira, 31 de agosto de 2021

Atualizado às 08:36

A proteção integral à criança e ao adolescente encontra guarida no artigo 227 da Constituição Federal desde 1988. Trata-se de paradigma que considera a criança e o adolescente pessoa em condição especial de desenvolvimento e titular de direitos.

No mesmo período constituinte, a saúde foi elevada a direito social, dever do Estado e direito de todos os brasileiros e brasileiras. No campo da saúde mental, lutava-se pela implementação de um novo modelo de cuidado, centrado no usuário, elevando à condição de cidadania todas aquelas pessoas com transtorno mental.

No entanto, esses movimentos não se cruzaram até os anos 2000. A saúde mental de crianças e adolescentes não foram pauta daqueles que escreveram o Estatuto da Criança e do Adolescente e dos que brigaram pela implantação do Sistema Único de Saúde. O uso de álcool e outras drogas ainda não era um tema de preocupação midiática e as políticas de assistência social ainda se consolidavam como um novo marco de direitos de solidariedade.

Porém, se o Estado não se ocupou, um grande campo se abriu para a iniciativa privada. Pouco a pouco, instituições religiosas e psiquiátricas passaram a se dedicar ao atendimento em saúde mental para pessoas usuárias de álcool e outras drogas. A visibilidade nos meios de comunicação das vulnerabilidades de crianças e adolescentes alavancaram uma forma de atendimento que não considerava os avanços civilizatórios ocorridos nas políticas públicas psicossociais e infantojuvenis - nem se garantia o cuidado em liberdade e tampouco se respeitava a condição de sujeitos de direitos.

Nesse contexto, proliferaram comunidades terapêuticas confessionais em todo o Brasil, criadas sem qualquer regulamentação estatal ou fundamentos científicos. O cuidado por pares passou a significar que pessoas que passavam por tratamento nesses espaços, após determinado período, começassem a se responsabilizar por outras pessoas. O trabalho obrigatório e a religiosidade forçada são as características que identificam esse tipo de atendimento e que são ofertados cotidianamente a famílias, com características mais simples ou com instalações de aparência mais luxuosa. Além do financiamento público, muitas vezes por mais de um ente federado, as internações são custeadas pelas famílias, em alguns casos com contratos que preveem multas em caso de interrupção do tratamento.

Falta de critérios clínicos, uso de medicação como forma de controle dos corpos, uso de trancas, ausência de profissionais habilitados, castigos físicos, trabalhos forçados e participação em cultos religiosos, são apontamentos feitos na Inspeção Nacional de Comunidades Terapêuticas. Rotinas em comunidades terapêuticas em todo o Brasil que, apesar de toda a contradição com os princípios e direitos dos usuários insculpidos na Lei nº 10.216, passam a fazer parte da Rede de Atenção Psicossocial desde 2011, focada na atenção residencial a adultos.

Em 2016, o Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas regulamenta essa forma de atendimento, diferenciando-a de internações psiquiátricas e direcionando-se, mais uma vez, ao público maior de 18 anos. Há, porém, uma indicação de que é possível a regulamentação das comunidades terapêuticas para adolescentes, a partir de diálogos com o Conselho Nacional de Direitos das Crianças e do Adolescente (CONANDA). Embora já contando com financiamento federal crescente até 2016, as comunidades terapêuticas vão ganhando força e espaço no cenário político instalado a partir de então, ainda que drenando recursos do SUS e desfinanciando a Rede de Atenção Psicossocial. Insta observar que a implantação da RAPS representa, de fato, a possibilidade de atendimento, de maneira organizada e sustentada, a pessoas em situação de abuso de álcool e outras drogas, inclusive crianças e adolescentes.

E chegamos em 2020, quando, sem nenhum diálogo, o Governo Federal edita uma nova resolução com a previsão de acolhimento de adolescentes em comunidades terapêuticas, a partir de julho de 2021. A resolução repete, em linhas gerais, as previsões feitas para acolhimento de adultos, sem qualquer referência às exigências do Estatuto da Criança e do Adolescente e ao Sistema de Garantia de Direitos.

Nenhuma tentativa de diálogo é frutífera nos meses seguinte, apesar de diversas tentativas pelo CONANDA, pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e pelo Conselho Nacional de Saúde, assim como pelos Conselho Federal de Psicologia e Conselho Federal de Serviço Social. Ao lado dessas tentativas, as Defensorias Públicas da União e de diversos Estados e a Procuradoria Federal de Direitos do Cidadão da Procuradoria Geral da República também se manifestam contrariamente à resolução, pelo desrespeito às diversas normas de proteção de direitos de crianças e dos adolescentes.

A desconsideração dos marcos reguladores de direitos humanos significa também a desconsideração dos serviços já existentes para atendimento a crianças e adolescentes. Toda uma regulamentação de acolhimentos de crianças e adolescentes e de fiscalização de entidades de atendimento é completamente ignorada pela Resolução 03/2020 do CONAD, retirando o papel dos juízes da infância e da juventude, dos Conselhos Tutelares e dos Conselhos de Direitos das Crianças e do Adolescente. A política para a infância e juventude goza de estatuto legal e conta com mecanismos de controle e de participação sociais já consolidados e que não podem ser afastados por uma simples resolução, por mais bem intencionada que seja.

O convívio familiar e comunitário e a educação são dois direitos das crianças e dos adolescentes que são ignorados pela resolução, por considerar a frequência nas escolas um fator de risco. No entanto, ignora-se, ao mesmo tempo, os impactos no desenvolvimento psicossocial e humano de crianças e adolescentes que sejam afastados de suas famílias, do convívio em comunidade e da instrução e educação, sendo a escola um dos principais espaços de socialização no mundo contemporâneo.

Por fim, a voluntariedade para o acolhimento em comunidades terapêuticas, que é um dos princípios que orienta esse modelo na sua incorporação à Rede de Atenção Psicossocial, não foi coadunada com os direitos das crianças e dos adolescentes. Aproxima-se, aqui, a uma forma de acolhimento involuntário por determinação de familiares, sem o devido controle do Ministério Público e da Defensoria Pública previsto na lei 10.216 e na Lei de Drogas, desrespeitando-se tanto as determinações legais como o paradigma da proteção integral, insculpido na Constituição Federal de 1988 e na Convenção de Direitos das Crianças da Organização das Nações Unidas.

Esse cenário ensejou a Defensoria Pública da União, em conjunto com diversas Defensorias Públicas estaduais, a ajuizar ação civil pública, na Justiça Federal de Pernambuco contra a Resolução CONAD 03/2020, pela ausência de competência regulamentar do CONAD e pela violação ao Estatuto da Criança e do Adolescente, à Lei de Drogas e à lei 10.216/2001. Em decisão professoral, a magistrada concedeu a medida liminar para suspender os efeitos da Resolução até o julgamento do mérito da ação, assim como determinar o desacolhimento de 500 adolescentes que estavam internados em comunidades terapêuticas com financiamento federal antes mesmo da vigência da resolução.

Em conjunto com o Ministério Público Federal e Ministérios Públicos Estaduais, as Defensorias apresentaram um plano articulado de acompanhamento e desinstitucionalização desses adolescentes, de modo a garantir seu cuidado em saúde em local adequado e a sua imediata reintegração familiar, em consonância com a legislação em vigor. No entanto, mediante intensa pressão do Governo Federal e de comunidades terapêuticas, a medida liminar foi suspensa pelo Tribunal Regional Federal, com base no antigo argumento de não intervenção do Poder Judiciário em políticas públicas.

Em seguida, o Secretário Nacional responsável pelos financiamentos, após essa decisão, anunciou publicamente que já existem mais de 4 mil adolescentes internados em comunidades terapêuticas em todo o Brasil - com seus direitos violados e suas dignidades ameaçadas. Entretanto, cuidar de crianças e adolescentes não pode perpassar organizações e entidades que tenham a restrição de liberdade como seu mote, afastando-os de suas famílias, das escolas e das comunidades. Cuidado e proteção integral se articulam em redes de assistência que dialogam, que respeitam direitos e que possibilitam o cuidado em liberdade, no SUS e na sociedade.

*Marcelo Dayrell Vivas é defensor público do Estado em SP e mestre em Direitos Humanos pela USP.