31 anos do ECA e a falta de políticas públicas de acolhimento familiar: Análise dos números do Estado de SP e o potencial do Poder Judiciário na transformação que se pretende
quarta-feira, 4 de agosto de 2021
Atualizado às 09:50
A nossa última coluna foi publicada no exato dia em que o ECA completava 31 anos. Com maestria, o Hugo Gomes Zaher trouxe a experiência exitosa das audiências concentradas no cotidiano das Varas a Infância e Juventude e faz uma alusão metafórica a um relógio que deve ser disparado quando uma ordem de acolhimento é exarada pelo Poder Judiciário. Infelizmente este relógio está quebrado para parte considerável das crianças e adolescentes acolhidas no Brasil, principalmente quando olhamos para o Estado de São Paulo e para as modalidades de acolhimento utilizadas.
Do universo de 30 mil crianças e adolescentes acolhidos no Brasil, como apontou Hugo, somente o Estado de São Paulo reúne em torno de 9.000, o que representa aproximadamente 27% do total, destacando-se frente aos demais Estados. Desse novo recorte territorial feito, utilizando-se como base os números apresentados pelo próprio CNJ, seguramente 3.000 estão acolhidas por prazo acima do quanto estabelecido no Artigo 19, § 2º, ECA, que estabelece tempo máximo de acolhimento por até 18 meses, "salvo comprovada necessidade que atenda ao seu superior interesse, devidamente fundamentada pela autoridade judiciária".
E não há como se afirmar com exatidão tal número, pois os critérios de indexação do CNJ não são adequados à literalidade do ECA no tocante ao tempo de duração do processo, o que dificulta sobremaneira o dimensionamento do montante de crianças e adolescentes nesta condição e, certamente, o desenvolvimento de políticas públicas adequadas para proteção de seus direitos.
Onde estaria o relógio para estas 3.000 crianças e adolescentes?
Infelizmente atuações exemplares como a de Hugo Gomes Zaher, Magistrado no Estado da Paraíba, não é a constante das Varas Especializadas pelo Brasil e seu olhar atento à intrínseca vulnerabilidade de crianças e adolescentes também não é refletido nas decisões dos Poderes Judiciário, Legislativo e Executivo, pois não só perante a atuação do Sistema de Justiça que falhamos na aplicação do ECA. O problema vem das escolhas e tomadas de decisão anteriores!
As políticas públicas, que deveriam ser fortalecidas em uma atuação articulada entre os Entes Federativos na constante prevenção de ameaças e violações a direitos infanto-juvenis (ECA, Art. 70-A), andam em descompasso com a proteção integral e absoluta definida na nossa Constituição Federal. Vejamos a questão do acolhimento de crianças e adolescentes.
O Art. 34, § 1º, do ECA estabelece que "a inclusão da criança ou adolescente em programas de acolhimento familiar terá preferência a seu acolhimento institucional, observado, em qualquer caso, o caráter temporário e excepcional da medida, nos termos desta Lei" (grifou-se). Voltando-se aos números de São Paulo, apesar da preferência expressa quanto à modalidade de acolhimento - a qual não deixa dúvidas pela leitura literal do comando legal -, o CNJ aponta que este Estado possui registro de apenas 83 serviços de acolhimento familiar, enquanto há 776 serviços de acolhimento institucional. Mais de 90% das crianças estão em abrigos, em que pese o ECA determine exatamente o contrário desde 2009, quando elevada à preferencial a política pública de acolhimento familiar!
A Cidade de São Paulo, por sua vez, segundo dados do ano de 2019 fornecidos pela Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS), reúne 127 serviços de acolhimento institucional, o que leva à estimativa de que sejam mais de 2.540 crianças acolhidas, representando quase 30% do total. Mostra-se, portanto, que o Estado de São Paulo e sua Capital possuem um alto índice de institucionalização de crianças e adolescentes retirados do seio de sua família natural em decorrência de situação de risco vivenciada.
Os efeitos negativos da institucionalização de crianças e adolescentes ao desenvolvimento neurológico destes, principalmente nos abrigamentos de longos períodos, é altamente estudado e apresenta "risco de distúrbios psicológicos, redução da capacidade linguística, dificuldade de criação de vínculos afetivos, crescimento físico atrofiado, entre inúmeros outros sérios problemas, alguns deles irreversíveis", como nos lembra o caso dos órfãos da Romênia. Conforme explicado por Jéssica Almeida Marques Ferreira, em pesquisa do Instituto de Psicologia da USP, a multiplicidade de fatores e eventos estressantes na vida de uma criança institucionalizada tem reflexo em suas dificuldades acadêmicas, assim como a história pregressa, marcada por violências e condições socioeconômicas adversas, apontam para a prejudicialidade de seu nível intelectual.
Onde estão as políticas públicas para garantia de um acolhimento excepcional e, quando necessário, familiar?
Voltamos então à atuação do Poder Judiciário e o potencial de mudança neste cenário a partir da judicialização da política, ressalvadas aqui as discussões existentes nos ensinamentos de Neil Komesar sobre as escolhas imperfeitas das Instituições, bem explicada por Arthur Badin em sua pesquisa.
Ao tratar sobre a efetividade das decisões judiciais, Carlos Alberto de Salles, Professor da Faculdade de Direito da USP, aponta que esta deverá ser avaliada através de argumentos de qualidade para saber se determinada tutela jurisdicional atingiu efetivamente sua finalidade, com a "recomposição das relações sociais envolvidas e à promoção de valores ou objetivos específicos", os quais podem ser novos desenhos de políticas públicas existentes, considerando as repercussões finais da decisão na própria sociedade (SALLES, Carlos Alberto de. Execução judicial em matéria ambiental. São Paulo: RT, 1998. p. 40).
Ainda que se admita que os direitos sociais não possam ser gozados por todos os membros da sociedade de forma plena em razão da inviabilidade econômico e financeira e sobrecarga do Estado - famoso "cobertor curto" -, os direitos sociais de crianças e adolescentes devem ser rigorosamente garantidos pelo Poder Público em sua integralidade, notadamente pelo caráter prioritário conferido a estes como grupo vulnerável (CF, Art. 227).
Assim, a partir do momento em que refletimos, enquanto sociedade e atores do Sistema de Justiça, sobre o exato comando do ECA quanto à excepcionalidade do acolhimento e, quando necessário para a proteção eficaz dos direitos infanto-juvenis, pela preferência do acolhimento familiar, as ordens de acolhimento, a garantia da convivência familiar e a importância das audiências concentradas, destacadas por Hugo Zaher no texto referenciado, passam a ocupar importante papel na proteção absoluta dos direitos de crianças e adolescentes presentes na CF e no ECA e de verdadeira transformação em prol do desenvolvimento de políticas públicas neste cenário.
Há 12 anos aguardamos políticas públicas preferenciais para o acolhimento familiar e não institucional: o que mais é necessário para que crianças e adolescentes acolhidos passem a ter seus direitos respeitados?