O procedimento extrajudicial de usucapião e o direito fundamental à propriedade imobiliária
quinta-feira, 6 de março de 2025
Atualizado em 5 de março de 2025 08:26
A dignidade do ser humano passa pelo reconhecimento da propriedade imobiliária. Ter um patrimônio para ser chamado de seu significa conquista a partir dos próprios esforços, assim como moradia para si mesmo ou para a família, além da possibilidade de realizar negócios e auferir renda. O mesmo imóvel poderá, ainda, servir como herança. Assim, é inegável a importância da propriedade imobiliária, e consequentemente, dos instrumentos à disposição para se obter o título de proprietário de determinado bem imóvel.
Nesse contexto, destaca-se aqui como objeto de estudo o procedimento extrajudicial de usucapião inaugurado no nosso sistema jurídico através da lei 13.105/15 - Código de Processo Civil, que completando agora 10 anos de vigência vem se mostrando como excelente ferramenta, produzindo reflexos positivos a toda a sociedade. Assim, apesar de já internalizado no ordenamento jurídico, pretende-se contribuir para dar ainda mais luz a esse instrumento jurídico.
Do texto constitucional já podemos extrair a importância da propriedade, pois no Título II - Dos Direitos e Garantias Fundamentais, Capítulo I - Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, e precisamente no art. 5º, caput, (BRASIL, 1988) temos que:
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]
Ou seja, a propriedade é garantia fundamental, consequentemente, tem-se a importância dos instrumentos jurídicos à disposição para obtenção e proteção da propriedade.
Neste trabalho, a proposta é o destaque ao procedimento extrajudicial de usucapião, haja vista sua praticidade e celeridade em contraposição ao processo judicial, sendo um procedimento extremamente vantajoso por vários aspectos, desde o acesso ao tabelião para troca de informações e sugestões, até a concretização do procedimento.
Certamente foi um ganho enorme para a sociedade ter a abertura dessa porta de acesso para o reconhecimento da propriedade, seja rural ou urbana.
Sobrecarregado com o volume de processos das mais variadas espécies, o Poder Judiciário não detém condições de entregar resposta rápida à pretensão, sendo que a cada exigência de documento e peticionamento o processo retorna à fila de conclusão, que não é pequena, levando assim, anos para a efetiva tutela jurisdicional.
Ao contrário, perante o tabelião de notas, e numa segunda fase junto ao Oficial de Registro de Imóveis, é muito mais fácil e prático o acesso, apesar das exigências documentais e procedimentais a serem respeitadas que, é claro, igualmente demandam tempo, mas, é um tempo muito menor se comparado ao processo judicial, apesar dos esforços dos integrantes do Poder Judiciário.
Claro que não há perfeição, podendo existir algum ponto ou outro que necessite de ajuste, como por exemplo, maior transparência no trâmite do procedimento extrajudicial, ou seja, informações sobre o seu andamento e posição na lista de trabalhos do respectivo cartório. Algumas diligências simples como essas poderiam garantir que cada procedimento observasse a ordem de protocolos, que não fosse dada preferência àqueles mais fáceis de resolver em detrimento dos casos mais complexos.
Importante ainda, em razão da precariedade das aquisições e transferências imobiliárias, o procedimento extrajudicial de usucapião ganha relevo como instrumento de concretização da dignidade da pessoa humana sob o viés da propriedade.
Direito fundamental à propriedade
Historicamente o direito à propriedade acompanha a evolução da humanidade, passando de caráter absoluto e intocável para atualmente revestir-se de função social, conforme estabelecido no art. 5º, inciso XXIII e art. 170, inciso III, da CF/88.
Afirmam Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino (PAULO; ALEXANDRINO, 2017, p. 146):
A propriedade privada era considerada um dos mais importantes direitos fundamentais na época do Liberalismo Clássico. Era o direito de propriedade, então, visto como um direito absoluto - consubstanciado nos poderes de usar, fruir, dispor da coisa (jus utendi, jus fruendi e jus abutendi), bem como reivindicá-la de quem indevidamente a possuísse - e oponível a todas as demais pessoas que de alguma forma não respeitassem o domínio do proprietário.
No âmbito do nosso Direito Constitucional positivo, não mais é cabível essa concepção da propriedade como um direito absoluto. Deveras, nossa Constituição consagra o Brasil como um Estado Democrático Social de Direito, o que implica afirmar que também a propriedade deve atender a uma função social. Essa exigência está explicitada logo no inciso XXIII do art. 5º, e reiterada no inciso III do art. 170 (que estabelece os princípios fundamentais de nossa ordem econômica).
Percebemos assim, uma evolução de concepção da função e da importância da propriedade, deixando de ser algo destinado somente ao atendimento do interesse individual para se tornar parte da colaboração para o bem-estar da sociedade como um todo, principalmente no que se relaciona com o direito à moradia.
Ora, para haver moradia, presume-se a edificação sobre um terreno que deve pertencer a alguém, estando, assim, moradia e propriedade imobiliária umbilicalmente ligadas. Oportunizar a concretização do direito à moradia sem igualmente assegurar o direito à propriedade seria conceder apenas metade do direito. Além da edificação que servirá de lar para a pessoa ou família, a segurança, tranquilidade e bem-estar do ser humano passa por ter em mãos a propriedade do imóvel, garantia de que aquele bem não lhe será retirado, ou no mínimo, de que terá os meios para defesa do que é seu.
Segundo Sílvio de Salvo Venosa (VENOSA, 2011, p. 167):
Sem dúvida, embora a propriedade móvel continue a ter sua relevância, a questão da propriedade imóvel, a moradia e o uso adequado da terra passam a ser a grande, senão a maior questão do século XX, agravada nesse início de século XXI pelo crescimento populacional e empobrecimento geral das nações. Este novo século terá sem dúvida, como desafio, situar devidamente a utilização social da propriedade.
A concepção de propriedade continua a ser elemento essencial para determinar a estrutura econômica e social dos Estados.
A previsão do jurista se confirma na medida em que o direito fundamental à propriedade continua sendo essencial, com ainda mais relevo no momento atual de mudanças climáticas, haja vista eventos da natureza que atingem por primeiro e mais gravemente aqueles que residem em locais de risco, justamente por não possuírem uma propriedade em lugar seguro e adequado para fixar moradia, muito menos é claro, a regularidade documental do imóvel.
Conforme matéria divulgada pela ANOREG/BR - Associação dos Notários e Registradores do Brasil - (CUNHA, 2019):
30 milhões dos imóveis no Brasil, não possuem escritura ou documento elaborado em cartório que comprove a titularidade do imóvel, segundo informações do Ministério de Desenvolvimento Regional. [...]
E complementando, a ANOREG/SP - Associação dos Notários e Registradores do Estado de São Paulo (2023), igualmente tratando sobre o assunto, publicou o seguinte texto de referência:
Mas o que leva a esse alto número de imóveis irregulares no Brasil? Bem, as razões são diversas e até mesmo históricas. A ausência de políticas públicas ao longo dos anos, a desinformação por parte da população e ilegalidades na comercialização são alguns dos catalizadores desse problema.
A falta de regularização dos imóveis traz inúmeras consequências, principalmente econômicas, aos municípios e até mesmo à União, que deixam de arrecadar impostos como: IPTU - Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbano, ITBI - Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis e IR - Imposto de Renda. Em relação às empresas e pessoas físicas, esse problema afeta na transmissão da propriedade, impedindo ou dificultando os atos de compra e venda, doação ou até mesmo impossibilitando oferecer o imóvel em garantia para um empréstimo ou financiamento.
Em São Paulo, principal metrópole da América do Sul, o cenário se repete. Segundo dados da Secretaria Municipal de Habitação, há cerca de 750 mil imóveis em situação irregular na cidade.
É exatamente esse o cenário atual, o direito fundamental à propriedade, apesar de firmemente previsto na Constituição Federal, é ainda pouco usufruído pela população que convive com a irregularidade nas ocupações de terrenos, formando um círculo vicioso de prejuízos.
Em ADIn 5.783, de relatoria da ministra Rosa Weber, o STF detidamente abordou esse direito fundamental, trazendo aspectos culturais e coletivos ao julgar a inconstitucionalidade de dispositivo de lei do Estado da Bahia. O julgado, em resumo, é assim ementado:
Impugnado o art. 3º, § 2º, da lei 12.910/13 do Estado da Bahia, que impõe prazo à regularização fundiária das terras tradicionalmente ocupadas pelas comunidades de fundo e fecho de pasto mediante a concessão de uso [...] Violação dos arts. 1º, III, 5º, XXII, 215, § 1º, 216, I e § 1º, da Constituição. O direito fundamental à propriedade (art. 5º, XXII), compreendido à luz do direito fundamental à cultura e do direito humano à propriedade e à posse coletivas, traduz moldura normativa que abriga a proteção das formas tradicionais de pertencimento.
(ADIn 5.783, STF, rel. min. Rosa Weber, j. 6/9/23, P, DJE de 14/11/23).
O que podemos concluir é que o direito fundamental à propriedade é consagrado na Lei Suprema do ordenamento jurídico que é a Constituição Federal, reafirmado pelo Poder Judiciário e normas infraconstitucionais.
Contudo, para o efetivo acesso a ele, temos alguns entraves, dentre os quais a morosidade e os custos parecem ser os maiores obstáculos, pois é caro e demorado realizar o procedimento - que envolve inclusive a coleta de documentos - para se ter o registro nos termos do art. 1.245 do Código Civil, lei 10.406/02 (BRASIL, 2002).
Deveria o Estado (lato sensu) buscar fomentar a regularidade imobiliária, buscando associar moradia e propriedade, objetivando a dignidade da pessoa humana regada pela segurança jurídica.
Talvez o lançamento de programas sociais em períodos específicos do ano para fomentar que as pessoas busquem o registro imobiliário com algum desconto no pagamento de valores seria uma forma válida. Um programa em tais moldes exigiria a união de esforços entre Oficiais de Registro de Imóveis, tabelionatos de notas e prefeituras municipais, e precisaria contar também, com a participação dos Estados e da União.
Os reflexos positivos compensam o trabalho, pois concretizado o direito fundamental à propriedade, aqui imobiliária, a pessoa terá mais segurança, poderá obter um financiamento para edificar, realizar um novo negócio com o imóvel, transferir com maior valor, doar, transmitir aos herdeiros etc., além do que, os cofres públicos irão receber os tributos incidentes sobre o imóvel, como o tributo municipal IPTU.
Do direito fundamental positivado à realidade do cidadão brasileiro há claramente uma distância que precisa ser encurtada, razão da importância do instrumento que possibilita a aquisição e regularidade da propriedade imobiliária de forma extrajudicial.
Confira a íntegra da coluna.