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O crédito imobiliário, o CNJ e a escritura pública

quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

Atualizado em 4 de dezembro de 2024 13:32

(I) O crédito imobiliário: surgimento, reestruturação, AF e patrimônio de afetação

1.1. Contexto fático

O mercado imobiliário é dependente do crédito para sustentar a capacidade de compra de imóveis. Assim, a falta ou incapacidade dos instrumentos de financiamento compromete a sua sustentabilidade.

O setor da construção civil tem papel fundamental no cenário nacional. Ele representa aproximadamente 7% do PIB brasileiro e continua exercendo uma grande influência na capacidade de geração de emprego, na indústria e, essencialmente, no acesso à moradia.

A capacidade de compra do cliente ou afordability é conhecida de todos os agentes do mercado. Sob outra roupagem, ela é conhecida também do seu destinatário final: o cliente. É que para o cliente a sua capacidade de compra é medida pela parcela do financiamento de seu imóvel.

O cliente para poder comprar o imóvel necessita compor sua capacidade financeira e para isso se vale do financiamento bancário ou do financiamento direto com as incorporadoras e loteadoras. Mas, no final do dia, o importante é que a parcela do pagamento tem que caber no seu bolso.

Ocorre que o CNJ editou o provimento 172 que restringe o alcance da lei de alienação fiduciária, principal instrumento utilizado pelas incorporadoras e loteadoras para conceder crédito. De acordo com o provimento, o uso do contrato particular está restrito ao SFI e SFH. Assim, toda a contratação fora destes ambientes deve observar a forma pública. A decisão impacta diretamente o crédito imobiliário e a segurança jurídica, impondo um olhar cuidadoso para o assunto.

1.2. O mercado imobiliário a partir da década de 90, os instrumentos de financiamento e o acesso à moradia

O crédito imobiliário tem histórico interessante no Brasil. Se olharmos para década de 60, tivemos a criação de dois instrumentos de financiamento habitacional fundamentais ao desenvolvimento da moradia social: o BNH e o FGTS.

Esses dois instrumentos compunham o SFH e permitiram, por meio da participação do Estado, impulsionar o desenvolvimento de programas habitacionais de interesse social, assegurando a capacidade de compra dos adquirentes.

Assim, foi criado o SFH pela lei 4.380/64, com o objetivo de implantar uma política habitacional com prioridade para o interesse social1. Esses instrumentos eram utilizados para financiamento da indústria da construção civil e para assegurar o acesso à moradia.

O crédito tinha (e sempre teve) papel essencial na compra do imóvel pelo cliente. Porém, a partir dos anos 70, o cenário macroeconômico passou por mudanças significativas. A dívida interna, o ciclo inflacionário e a macroeconomia fizeram com que nos idos de 1980 o crédito se tornasse escasso inclusive por meio destas duas fontes.

Foi então que no final da década de 90 surge o SFI, que teve como objetivo implementar novas ferramentas de fomento ao crédito imobiliário, mediante o acesso ao mercado de capitais e, assim, alavancar as operações imobiliárias por meio do mercado secundário. O SFI foi concebido para desregulamentação da economia e modernização dos instrumentos e mecanismos de financiamento à atividade produtiva2.

Basicamente, o SFI renovou as energias do SFH, dada a exaustão da captação dos recursos que estão concentrados nos depósitos na caderneta de poupança. O SFI criou fontes novas de recursos para o financiamento imobiliário.

Por meio do SFI, permitiu-se a colocação de títulos em créditos constituídos originalmente pelos próprios incorporadores, construtores e loteadores. Nesse sentido, criou-se uma fonte de recursos para o mercado imobiliário consubstanciada no CRI3_4, cenário em que foram também estabelecidas novas garantias reais imobiliárias.

É que havia risco pela demanda do crédito e preocupação com a falência do incorporador. E do lado da oferta de crédito, a preocupação com a retomada dos imóveis deixava o apetite para sua concessão baixo. Afinal, o processo de recomposição às situações de mora dos adquirentes era lento, caro e burocrático.

Aqui entra em cena a alienação fiduciária, que está no epicentro das discussões recentes de crédito imobiliário no contexto do CNJ.

Essa garantia real deu a musculatura necessária para energizar o SFI e garantir a sustentação do mercado, uma vez que oferece vantagens consideráveis quando comparada à situação do credor hipotecário, anticrético e pignoratício5.

Do lado dos credores, a alienação fiduciária; do lado do consumidor, o patrimônio de afetação que afastava o risco de insucesso do incorporador. Os riscos mais latentes estavam, desse modo, mitigados.

O principal instrumento direcionado à garantia e à recomposição do crédito imobiliário foi, de fato, a alienação fiduciária de bens imóveis.

A alienação fiduciária é uma garantia contratada pela instituição financeira ou pelo particular que torna possível a execução do contrato em caso mora de maneira mais rápida e sem a necessidade de demanda judicial, uma vez que o procedimento é feito extrajudicialmente no cartório de registro de imóveis.

Por meio da alienação fiduciária, então, a capacidade de financiamento dos clientes melhorou e o crédito ficou mais barato. É que a alienação fiduciária se mostra mais eficiente e ágil na execução do contrato, o que permitiu que os credores imobiliários (instituições financeiras, incorporadores, loteadores, pessoas jurídicas no geral, fundos de investimento etc.) a adotassem em praticamente todas as suas operações. Inclusive, por ser menos burocrática e mais célere, bem como tornar possível a securitização e distribuição no mercado de capitais.

No entanto, essa medida não foi única na busca pelo fomento ao crédito imobiliário. No ano de 2004 foi editada a lei 10.931/04 que estabeleceu o patrimônio de afetação para as incorporações imobiliárias6.

O patrimônio de afetação tem como objeto a segregação dos ativos do empreendimento dos demais bens do incorporador, de modo a evitar que em caso de falência do incorporador aquele patrimônio seja arrastado à recuperação judicial.

Portanto, vê-se que o mercado de crédito imobiliário a partir da década de 90 passou a contar com ferramentas adicionais para impulsionar o setor da construção civil e de acesso ao imóvel pela facilitação do crédito e reforço das garantias aos adquirentes.

I.3. Novas regras de Financiamento da Caixa Econômica Federal

A partir de 1 de novembro de 2024, a Caixa ajustou as regras de financiamento dada a crescente demanda por imóveis e o volume de saques líquidos da poupança, que é a origem dos recursos utilizados pelo banco para os empréstimos via o SBPE. O mês de setembro foi recorde com um volume de saques líquidos na ordem de R$ 7,1 bilhões. Três mudanças essenciais foram adotadas pela Caixa, que concentra quase 70% do mercado: (a) limitou-se o valor do imóvel para fins de financiamento ao valor de R$ 1,5 milhão; (b) nos sistemas SAC e PRICE, as cotas de financiamento foram reduzidas, bem como (c) não é mais possível ter mais de um financiamento ativo com a instituição.

Tratando das cotas de financiamento, no modelo SAC no qual as parcelas vão diminuindo ao longo do tempo e a amortização dos juros se dá ao mesmo tempo do pagamento da parcela principal. Nessa modalidade, houve a redução do valor de financiamento de 80% para 70%. Já no modelo Price, em que as parcelas são constantes, mas primeiro são amortizados os juros e posteriormente o principal, o financiamento de 70% foi reduzido para 50%.

Essas mudanças feitas pela Caixa revelam que a parcela de entrada devida pelo consumidor para compra do imóvel ficou mais alta. O objetivo, logicamente, não é dificultar o financiamento habitacional, mas, sim, assegurar a sustentação da poupança e a perenidade dos recursos para cobertura de um contingente maior de famílias. As regras não atingirão os financiamentos em curso e não há prazo de validade para estas mudanças.

É fato, no entanto, que crédito está mais restrito. Porque há uma quantidade limitada de recursos disponíveis. Esse cenário revela a importância de fontes alternativas ao mercado, tal como a alienação fiduciária.

Porém, as primeiras decisões do CNJ tendem a dificultar o uso desse fundamental instrumento de crédito imobiliário que é a alienação fiduciária para os agentes não integrantes do SFI e SFH. Vamos à problemática.

(II) O mercado geral do crédito e escritura pública nos contratos de alienação fiduciária

O crédito imobiliário passou por processos de transformações nos últimos 30 anos e se mostrou resiliente, criando alternativas ao financiamento habitacional.

No entanto, o CNJ editou o provimento 1727, que restringiu a formalização de contratos garantidos por alienação fiduciária por instrumento particular pelas incorporadoras e loteadoras, exigindo-se a formalização por escritura pública. Ele foi complementado pelo provimento 1758, que incluiu as companhias securitizadoras, os agentes fiduciários e outros entes sujeitos à regulamentação da CVM ou do BCB, relativamente a atos de transmissão dos recebíveis imobiliários lastreados em operações de crédito no âmbito do SFI. O provimento vai na contramão de todo o esforço feito na desburocratização do crédito imobiliário e na otimização das garantias imobiliárias.

A restrição imposta pelo CNJ permite, de modo geral, que apenas as entidades integrantes do SFI e do SFH continuem a celebrar por instrumento particular, a retirada das incorporadoras e loteadoras traz consigo um risco fundamental ao fomento do crédito imobiliário, bem como representa um retrocesso ao movimento de desburocratização que se construiu ao longo dos anos. O resultado deste movimento do CNJ é o encarecimento do crédito imobiliário.

Além dos custos financeiros diretos com a escritura pública do tabelião de notas, que são extremamente relevantes para o negócio, a elaboração desse ato notarial acrescenta mais uma etapa procedimental para chegar no registro da propriedade no CRI. Inevitavelmente, eleva-se o custo de transação na economia e reduz-se e a velocidade do processo de formalização da venda.

Estima-se que o custo de transação após a edição do provimento 172 do CNJ representará mais de 5% do valor do negócio. Se analisado o impacto direto da escritura, há o incremento de mais de 50% dos custos de cartório que não são financiáveis pelo cliente e que, geralmente, são pagos no ato de aquisição ou nos primeiros 20 dias da compra.

Essa exigência encarece a transação sem oferecer nenhum benefício, pois a escritura pública terá que passar pelo juízo de qualificação do registrador do mesmo jeito que o instrumento particular. Esse custo adicionado é suportado pelo comprador que não obtém vantagem com essa nova etapa adicionada pelo CNJ. É relevante anotar que o provimento 172 surgiu de um pedido de providências 0008242-69.2023.2.00.0000, que não trouxe consigo nenhum dado acerca da segurança jurídica das operações celebradas por instrumento particular.

Aliás, o contrato particular de alienação fiduciária tem sido posto à prova em vários momentos no Poder Judiciário. Todavia, em nenhuma dessas discussões, tratou-se do suporte - se por escritura pública ou contrato particular. Normalmente as discussões que cercam o assunto envolvem o registro do contrato, a oponibilidade nas relações de consumo, a responsabilidade do credor fiduciário pelo pagamento de IPTU, cotas condominiais etc. Mas isso é tema para outra hora.

Portanto, a conclusão é de que a forma - pública ou particular - nunca foi uma questão capaz de inspirar cuidado do legislador ou mesmo do Poder Judiciário, mesmo porque o contrato passa pelo crivo do Oficial de Registro de Imóveis quando do registro da garantia. E é por isso que o movimento do CNJ na edição do provimento 172 levanta preocupação, seja pelo seu papel institucional, seja pelos impactos diretos e indiretos que essa medida traz para o setor imobiliário.

II.1. O aumento no custo de transação e suas consequências

A restrição imposta pelo CNJ em junho de 2024 impacta novas contratações e mesmo o próprio funding. É que o encarecimento do custo direto para celebrar o contrato aliado à burocracia documental são fatores de desestímulo à adoção da garantia. Por conseguinte, o setor imobiliário pode sofrer com o arrefecimento do mercado.

Haverá desdobramentos inclusive no volume de unidades ofertadas pelas incorporadoras e loteadoras. Afinal, se o instrumento de financiamento direto está mais caro e burocrático, as decisões estratégicas de lançamento e análise de capacidade de pagamento do consumidor mudam. O mercado ficará receoso quanto aos riscos de financiabilidade de seus clientes, especialmente para os desenvolvedores imobiliários que estão fora do SFI e do SFH. Essa constatação foi apresentada também pela Nota SEI 7/24/CGRFIN/SRMI/ser-MF do Ministério da Fazenda que estima um potencial de aumento de custo nas operações de crédito com este provimento.

Com a manutenção do provimento do CNJ - caso não seja revisto pelo CNJ ou pelo Poder Judiciário - haverá o desaceleramento do setor imobiliário, uma vez que estará limitado às formas tradicionais e que se mostram estressadas de financiamento. A consequência desta desaceleração é sentida não apenas pelo cliente. Mas, sobretudo para os indicadores de contribuição ao PIB, emprego e demais setores da cadeia produtiva.

Os reflexos sob a ótica urbana não devem ser desconsiderados, já que o processo de urbanização das cidades se dá, em grande medida, pelo parcelamento do solo - loteamento e desmembramento - que tem o intuito de promover o desenvolvimento organizado e planejado das cidades, mas cuja fonte de financiamento prioritária está sendo diretamente afetada. Como resultado, haverá prejuízo no próprio combate ao déficit habitacional.

É que o aumento do custo do crédito imobiliário e da burocracia dificulta o principal meio de financiamento utilizado pelo setor de loteamento, o que é crítico, pois compromete o objetivo central da política urbana: garantir o desenvolvimento ordenado das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, o que só se mostra possível mediante o acesso ao crédito.

II.2. Liberdade econômica, custos de transação e perda de eficiência

Na prática, o provimento 172 do CNJ limitou a atuação por instrumento particular pelas incorporadoras e construtoras. A dispensa do instrumento público está concentrada às instituições que operem no SFI.

Porém, não houve nenhum dado concreto utilizado no pedido de providências ou pelo CNJ, na edição do provimento, para justificar a imposição do instrumento público, notadamente porque não ficou demonstrada insegurança jurídica da forma particular, então adotada pelas incorporadoras, loteadoras e particulares, bem como não houve modificação legislativa.

Veja-se que a autorização para contratar a alienação fiduciária por instrumento particular consta da própria lei 9.514/97, em seu art. 38 que expressamente autoriza a utilização do instrumento particular por qualquer pessoa, independentemente da vinculação ao SFI ou SFH.

A conclusão que se chega a partir da leitura do art. 38 da lei 9.514/97 é que o instrumento particular não é aplicável restritivamente apenas às entidades do SFI e SFH. Logo, a edição do provimento pelo CNJ cria uma barreira de acesso à moradia, ao encarecer os custos de formalização da garantia fiduciária, bem como restringe a própria livre iniciativa.

A lei 9.514/97, ao permitir que incorporadoras, loteadoras e outros agentes econômicos pudessem se valer da alienação fiduciária por instrumento particular, teve por objetivo desburocratizar e potencializar o acesso ao crédito imobiliário mediante a redução dos custos de transação, respeito à livre iniciativa, bem como traz como benefício a concorrência, rompendo com a necessidade de intermediação bancária.

A decisão do CNJ de impor a celebração do instrumento público - embora a lei expressamente autorize a formalização por documento particular - viola a ordem econômica e cria uma barreira à participação dos agentes no mercado, na medida em que não integram o SFI e do SFH. Cria-se uma reserva de mercado injustificável e prejudicial aos consumidores e à concorrência, assim como fragiliza o movimento de desintermediação bancária.

Nesse sentido, a lei de liberdade econômica - lei 13.784/19 - dá conta do dever da administração pública evitar o abuso do poder regulatório que indevidamente crie reserva de mercado ou aumente os custos de transação9, exatamente o que se vê no caso concreto.

Com a edição do provimento 172, o CNJ burocratizou o acesso ao crédito e tornou mais onerosa a operação de venda e compra dos imóveis, sem que exista nenhum benefício com a adição desta exigência aos agentes não integrantes do SFI e SFH. A ineficiência gerada ao mercado de crédito, os custos de transação e a própria insegurança jurídica aos agentes econômicos devem ser revistas, porque não há nenhuma vantagem na solução proposta pelo CNJ para instrumentalização da garantia por escritura pública.

A decisão do CNJ não só causa um prejuízo ao crédito imobiliário, mas, igualmente, traduz em vantagem competitiva indevida e prejudicial à livre concorrência, porque a restrição imposta às incorporadoras e loteadoras levará ao aumento dos preços e ao encarecimento dos juros de financiamento.

(III) Panorama atual da discussão

O resultado da restrição à celebração de instrumentos particulares por incorporadoras e loteadoras já tem surtido efeitos práticos. A reação nacional do mercado imobiliário foi imediata. Por sua vez, as Corregedorias de Justiça dos Estados passaram a editar normativos internos regulando a obrigatoriedade do instrumento público após a edição do provimento 172 do CNJ.

Muito embora o CNJ tenha tentado diminuir o impacto da decisão, adotando uma regra de modulação de efeitos da decisão administrativa para os contratos celebrados até 11 de junho de 2024, por meio do provimento 175, observa-se que o ambiente de instabilidade e insegurança jurídica continua a ecoar no mercado imobiliário e jurídico.

Isso se dá essencialmente porque no âmbito do CNJ a discussão ainda segue viva através do recurso administrativo protocolado no pedido de providência com o objetivo de reformar a decisão, alertando, ainda, para os desdobramentos econômicos que a decisão tem para o crédito imobiliário, bem como a invasão de competência do CNJ sobre a esfera do STJ quanto à uniformização da interpretação da lei Federal.

A esse respeito, o próprio CNJ houvera reconhecido em decisão de 2023 que não dispunha de competência funcional para a interpretação de lei Federal, cabendo ao STJ a definição do alcance da norma10. Muito embora tenha se contido no passado, no julgamento do pedido de providências que deu origem ao provimento 172 desconsiderou sua decisão anterior e avançou na competência do STJ para alterar e, assim, restringir o alcance do art. 38 da lei 9.514/97.

Embora o julgamento do recurso administrativo ainda não tenha sido encerrado, foi impetrado no STF um mandado de segurança 39.805/PR, que versa justamente sobre o desvio funcional do CNJ na edição do provimento e a necessidade de que o STF reconheça o ato coator praticado pelo CNJ, de maneira que seja reformada a decisão, respeitando-se, assim, os limites de sua atuação constitucional.

O processo está sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes, já foram prestadas informações pelo então Corregedor Nacional, mi Luis Felipe Salomão, sucedido em setembro de 2024 pelo mi Mauro Campbell Marques. O caso ainda aguarda desfecho no Supremo.

Mais recentemente, e no que importa a estas breves reflexões, a União Federal apresentou pedido de providência registrado sob o 0007122-54.2024.2.00.0000 junto ao CNJ para suspensão liminar dos efeitos do provimento 172 e 175. E, ao final, para que fossem revogados os provimentos, de modo a afastar a restrição de aplicação do art. 38 da lei 9.514/97 apenas as entidades especificadas ao CNJ, permitindo-se a ampla formalização da alienação fiduciária por meio de instrumento particular com efeitos de escritura pública.

A partir do pedido de providência da União Federal, em 28 de novembro de 2024, o atual corregedor nacional de Justiça, ministro Mauro Campbell Marques, concedeu a liminar para suspender os efeitos dos provimentos editados pelo CNJ, restaurando a possibilidade de utilização do instrumento particular.

Em sua fundamentação, o mi Mauro Campbell destaca que a restrição da norma imposta pela edição dos provimentos 172 e 175 pode comprometer a segurança jurídica e os negócios celebrados fora do âmbito do SFI e SFH.

O ministro destacou que a permissão para celebrar contrato de alienação fiduciária por instrumento particular decorre do próprio art. 38 da lei 9.514/97, independentemente da vinculação ao SFH ou SFI.

A decisão liminar deu luz para o fato de que o provimento 172, além de contrariar o texto expresso da lei, aumenta os custos de transação e, conforme destacamos acima, também reduz a competitividade do mercado. De acordo com o corregedor:

(...) a formalização da alienação fiduciária em garantia sobre imóveis e atos conexos, levada a efeito nos termos do provimento 172/24 e modificações posteriores promovidas pelos provimentos 175/24 e 177/24 - ao exigir dos demais agentes não enquadrados no SFI e no SFH que a formalização da avença ocorra exclusivamente por meio de escritura pública - incrementa custos a adquirentes de bens imóveis e a mutuários que utilizam os imóveis como garantia dada em alienação fiduciária, ao mesmo tempo em que, em tese, cria uma possível desvantagem competitiva entre agentes de mercado11.

Segundo a decisão, a manutenção desta exigência impacta diretamente no custo de transação, dificulta o acesso ao crédito, que se torna mais oneroso, além de gerar barreira burocrática, o que tende a inviabilizar as operações de compra e venda de imóveis, afetando os incorporadores, loteadores e consumidores.

A decisão vem em boa hora e revela o cuidado do mi corregedor quanto aos riscos de manutenção dos efeitos do provimento enquanto se analisa a questão no âmbito do colegiado do CNJ. A decisão busca preservar a segurança jurídica, evitando o aumento da burocracia, assim como o sobrecusto nas operações de alienação fiduciária pela instrumentalização via escritura pública, o que onera na visão do ministro, da qual partilhamos, injustificadamente as transações imobiliárias.

A decisão liminar tem efeitos imediatos e deve ser observada em todo território nacional. A decisão suspende os efeitos do provimento 172, o que, na prática, reestabelece a possibilidade de uso do instrumento particular para contratar alienação fiduciária, não ficando restrita às entidades integrantes do SFI e SFH.

A postura do mi corregedor nacional de Justiça no deferimento da liminar não poderia ser mais acertada, porque prestigia o texto expresso da lei Federal, art. 38 da lei 9.514/97, bem como impede que seja elevado o custo do crédito para as famílias e empresas pela celebração do instrumento público.

A decisão será enviada às corregedorias estaduais para que adequem suas normativas em atenção à decisão liminar. A determinação é assertiva, em especial, em caso de dúvida registral, de modo que deve ser observada a liminar exarada pelo corregedor nacional de Justiça.

(IV) Conclusão

O mercado imobiliário depende dos instrumentos de financiamento para manter firme sua atividade produtiva destinada a viabilizar o acesso à moradia. As mudanças que aconteceram ao longo dos anos revelam a resiliência do setor às intempéries econômicas, sociais, políticas e jurídicas.

A construção de um ambiente de previsibilidade e segurança jurídica é fundamental para a sustentar o contínuo movimento de desenvolvimento do mercado sem solavancos. Na contramão desta estrada, surgem os provimentos 172 e 175 que burocratizam o procedimento e aumentam os custos do crédito imobiliário, penalizando os adquirentes pela imposição da formalização da escritura pública para entidades fora do SFI e SFH.

Os provimentos comprometem o importante papel da alienação fiduciária que surgiu como instrumento alternativo para impulsionar o crédito imobiliário, ajudando na desintermediação bancária, na efetividade da garantia real e no acesso ao crédito.

Os agentes econômicos reagiram ao provimento e a própria União Federal entendeu a importância da temática e os danos econômicos, sociais e jurídicos que a medida traz para a sociedade e solicitou atuação do CNJ para endereçar o assunto.

O mi corregedor nacional de Justiça, atento à robusta fundamentação técnica, econômica e consequencialista apresentada pela União, bem respaldada pelos dados do setor imobiliário12 e, fundamentalmente, pelo desacerto jurídico na restrição outrora imposta, concedeu a liminar e determinou a suspensão dos efeitos dos provimentos, reestabelecendo o instrumento particular para todos, e não apenas para agentes integrantes do SFI e SFH. Ainda existe um caminho longo a ser percorrido rumo à definitiva restauração da ampla aplicação do art. 38 da lei 9.514/97. Mas é importante reconhecer o golaço que foi a decisão liminar do CNJ em suspender os efeitos do provimento 172.

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1 Melhim Chalhub traz um recorte histórico e normativo interessante para estes instrumentos de financiamento: "na sua formação original, o SFH era integrado pelo BNH, tendo como seus agentes financeiros órgãos federais, estaduais, inclusive sociedade de economia mista que operassem no financiamento habitacional, sociedade de créditos, associações de poupança e empréstimos, fundações, cooperativas e outras associações organizadas com a finalidade de construção e aquisição de casa própria para seus associados" (CHALHUB, Melhim. Incorporação Imobiliária. 7ª ed. São Paulo: Grupo GEN, 2023. p.315)

2 Esse objetivo fica claro da exposição de motivos interministerial 32/MPO-MF, de 9 de junho de 1997, do Projeto de lei que resultou na edição da lei 9.514/97.

3 Em 2022, foi editada a lei 14.430/22 que estabeleceu novas regras para a emissão de títulos de crédito destinadas à securitização de direitos creditórios. Essa lei foi responsável por instituir um regime jurídico geral, que compreende a emissão de títulos e valores mobiliários lastreados em direitos creditórios de qualquer natureza, oriundos de todos os setores da econômica, envolve créditos financeiros, comerciais, prestação de serviços, precatórios e mesmo de ações judiciais.

4 Os instrumentos de funding tem ganhado relevância ao longo dos anos, em 2024, a participação das incorporadoras na emissão de CRIs foi de 7% para 14%, confira aqui

NORONHA, Fernando. Alienação fiduciária em garantia e o leasing financeiro como supergarantias das obrigações. Revista dos Tribunais | vol. 845/2006 | p. 37 - 49 | Mar / 2006 Doutrinas Essenciais Obrigações e Contratos | vol. 5 | p. 739 - 756 | Jun / 2011 DTR\2006\196. p.8.

6 A partir de 13 de julho de 2023, o regime do patrimônio de afetação passou a ser admitido também nos loteamentos urbanos (art. 18-A da Lei 6.766/79), por força da com a edição da lei 14.620.

7 Art. 440-AO. A permissão de que trata o art. 38 da 9.514/97 para a formalização, por instrumento particular, com efeitos de escritura pública, de alienação fiduciária em garantia sobre imóveis e de atos conexos, é restrita a entidades autorizadas a operar no âmbito do SFI (art. 2º da Lei 9.514/97), incluindo as cooperativas de crédito. Parágrafo único. O disposto neste artigo não exclui outras exceções legais à exigência de escritura pública previstas no art. 108 do CC, como os atos envolvendo:

I - administradoras de consórcio de imóveis (art. 45 da lei 11.795, de 8 de outubro de 2008); II - entidades integrantes do SFH (art. 61, § 5º, da lei 4.380, de 21 de agosto de 1964).

8 provimento 175 (...) "§2º São considerados regulares os instrumentos particulares envolvendo alienação fiduciária em garantia sobre imóveis e os atos conexos celebrados por sujeitos de direito não integrantes do SFI, desde que tenham sido lavrados antes de 11 de junho de 2024 (data da entrada em vigor do provimento CN 172)."

9 Art. 4º  É dever da administração pública e das demais entidades que se vinculam a esta lei, no exercício de regulamentação de norma pública pertencente à legislação sobre a qual esta lei versa, exceto se em estrito cumprimento a previsão explícita em lei, evitar o abuso do poder regulatório de maneira a, indevidamente: I - criar reserva de mercado ao favorecer, na regulação, grupo econômico, ou profissional, em prejuízo dos demais concorrentes; V - aumentar os custos de transação sem demonstração de benefícios;

10 Recurso administrativo no âmbito do CNJ: 0010967-07.2018.2.00.0000, relatora: conselheira Salise Sanchonete. Dje. 15/09/23.

11 Trecho da decisão liminar do e. mi Mauro Campbell Marques, no pedido de providência 0007122-54.2024.2.00.0000, proferida em 28/11/24.

12 Confira-se a nota SEI nº 7/24/CGRFIN/SRMI/SRE-MF do Ministério da Fazenda.