Desconstruindo a narrativa em torno da "Pec das Praias"
quinta-feira, 6 de junho de 2024
Atualizado às 07:35
Diante da atual polêmica envolvendo a tramitação da PEC 3/2022 -equivocadamente chamada de "PEC das Praias -, com inúmeros vídeos circulando nas mídias sociais, abaixo-assinados e até troca de farpas entre famosos sobre o tema, torna-se mais do que necessária uma explicação técnica sobre o objeto do que está sendo proposto e as consequências da sua aprovação no Congresso Nacional.
Apenas para fins de contextualização, toda proposta de emenda à constituição (PEC), como a própria nomenclatura diz, tem por objeto alterar algum dispositivo da nossa Constituição Federal de 1988. Trata-se de um dos processos legislativos mais complexos, com tramitação nas duas casas legislativas com amplos debates, realização de audiências públicas e quórum elevado de aprovação. E não poderia ser diferente, pois a aprovação de uma PEC modifica o texto da carta magna, a nossa lei suprema que rege todo o ordenamento jurídico brasileiro.
Logo, para se emitir qualquer opinião sobre a PEC 3/2022, é imprescindível entender qual é verdadeiramente o seu objeto.
De acordo com o texto disponível no endereço eletrônico do Senado Federal1, a proposta de alteração ao texto constitucional prevê a exclusão de dois dispositivos constitucionais: primeiramente o inciso VII do Artigo 20, bem como o parágrafo terceiro do Artigo 49 das Disposições Constitucionais Transitórias. Ambos os dispositivos tratam, exclusivamente, dos terrenos de marinha.
Terrenos de marinha de forma alguma se confundem com as praias. Também não há qualquer relação com a Marinha do Brasil, instituição das Forças Armadas Brasileira.
As praias, diferentemente dos terrenos de marinha, são classificadas como bens de uso comum, tais como as praças e ruas e se destinam ao uso de todas as pessoas, sem distinção ou exclusividade, pertencentes, portanto, à coletividade, não sendo possível a sua apropriação individual.
Os terrenos de marinha, verdadeiro e único objeto da PEC nº 3/2022, têm sua origem em legislação específica que remonta à década de 40, promulgada, portanto, há quase 80 anos.
Nos termos do Artigo 2º do Decreto-Lei 9.760/46, são considerados terrenos de marinha toda faixa de terra em uma profundidade de 33 metros, medidos horizontalmente para a parte da terra, da posição da linha do preamar-médio de 1831, situados no continente, na costa marítima e nas margens dos rios e lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés ou os que contornam as ilhas situadas em zona onde se faça sentir a influência das marés.
O tema é de difícil compreensão, até mesmo para os funcionários públicos ou operadores de direito que lidam com a matéria. O procedimento de demarcação dessas áreas é supercomplexo, custoso para os cofres públicos, perdura por décadas e, na grande maioria das vezes, antes mesmo de sua conclusão, é contestado ou suspenso judicialmente.
E não poderia ser diferente, afinal de contas, "preamar" é termo derivado do castelhano "pleamar", que significa pleno mar ou maré cheia, ou seja, o auge da maré cheia. Assim, a tal linha que serve de ponto de partida para a demarcação do que é ou não terreno de marinha deve ser (ou deveria ser) traçada a partir da média dos auges das marés cheias do ano de 1831!
É isso mesmo. Os técnicos da Superintendência do Patrimônio da União (SPU) - órgão federal conhecido de muitos brasileiros que residem em cidades litorâneas - precisam realizar inúmeros estudos por meio de cálculos regressivos das tabelas da maré, antigas plantas cartográficas ou cartas náuticas, fotos aéreas, análise vegetativa etc. para se chegar a um ponto de partida de medição.
Logicamente, diante dos inúmeros desafios, grande parte da costa brasileira e quase a totalidade das margens dos rios e lagoas federais ainda não possuem as áreas de terrenos de marinha demarcadas.
Como consequência dessa falta de conclusão do complexo procedimento demarcatório dos terrenos de marinha, qualquer cidadão que porventura esteja ocupando uma área considerada como tal, ainda que a linha não esteja demarcada, pode vir a ser surpreendido com uma notificação da SPU informando que a propriedade daquele terreno é da União, independentemente de possuir título aquisitivo registrado no Cartório de Registro de Imóveis ou mesmo provar estar ocupando aquela área há décadas. Inquestionável insegurança jurídica que muitos brasileiros estão sujeitos atualmente.
Mas não é só. Todos os ocupantes de terrenos de marinha, mesmo tendo quitado integralmente o preço de compra de seu imóvel, devem pagar uma prestação pecuniária anual à União pelo uso do terreno de marinha. Se o regime for de ocupação, essa taxa é de 2% (taxa de ocupação) sobre o valor do domínio pleno do terreno atribuído pela própria União (excluídas as benfeitorias). Se o regime for o de aforamento, essa taxa cai para 0,6% do valor do domínio pleno do terreno (o foro).
Além da taxa de ocupação ou do foro, conforme o regime aplicável, sobre qualquer transação onerosa envolvendo áreas situadas em terreno de marinha, é devida à União a quantia equivalente à 5% do valor de avaliação do bem (o laudêmio).
Outro dado importante é que essas taxas patrimoniais não são classificadas como tributos e, portanto, são pagas aos cofres públicos sem qualquer tipo de contrapartida pelo Estado.
Portanto, os terrenos de marinha causam inúmeros transtornos aos cidadãos brasileiros. O objetivo da PEC nº 3/2022 é justamente acabar com o terreno de marinha e, consequentemente, com o custoso e complexo procedimento demarcatório envolvido, bem como conferir maior segurança jurídica aos proprietários de imóveis situados no litoral.
Diferentemente do que se está sendo propagado, a PEC nº 3/2022 não altera em nada o livre e permanente acesso, fiscalização ou uso das praias por qualquer cidadão, direitos esses que permanecem garantidos pela própria Constituição Federal e, mais precisamente, pela Lei Federal nº 7.661/88, que instituiu o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro.
Portanto, mesmo com a aprovação da PEC nº 3/2022, as praias - tal como os rios, o mar territorial, as ilhas, os recursos naturais, dentre outros - permanecem como bens da União, na forma do Artigo 20 da Constituição Federal, assim como permanecem protegidas pelas legislações específicas as áreas de proteção ambiental ou de segurança nacional.
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1 Disponível aqui.