Distratos imobiliários: A lei, a jurisprudência atual e os reais impactos do desfazimento contratual
quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023
Atualizado às 10:11
A aquisição de imóvel em construção é, ou deveria ser, uma das decisões mais importantes dos consumidores, por envolver, para a grande maioria deles, recursos financeiros muito elevados em relação à sua renda. Poucos são aqueles que podem adquirir um imóvel à vista, sendo quase sempre necessário um longo parcelamento, que constitui compromisso assumido por anos ou mesmo décadas, seja com a incorporadora, seja com um banco financiador. Por outro lado, para a empresa produtora, planejar, adquirir o terreno, aprovar e construir o empreendimento é atividade das mais complexas e difíceis, diante da responsabilidade de entregar em prazo determinado uma edificação de alto valor.
A aquisição se dá usualmente por meio de um contrato de promessa de venda e compra entre a incorporadora (fornecedor) e o adquirente (consumidor), regrado pelo Código Civil, pela Lei 4.591/64 e também tutelado pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC), a lei 8.078/90. Nessa relação contratual, a rescisão do contrato pelo adquirente, mediante desistência do negócio, justificada ou imotivada, com o recebimento em devolução de parte dos valores pagos, tem sido chamada de forma pouco técnica simplesmente por "distrato". Trata-se de uma das questões mais complexas e importantes das relações contratuais consumeristas e de direito imobiliário.
A promessa de venda e compra de bem imóvel é, em regra, irretratável, conforme art. 22 do decreto-lei 58/1969, arts. 1.417 e 1.418 do Código Civil e, especificamente no âmbito da incorporação imobiliária, pelo parágrafo 2º do art. 32 da lei 4.591/64. Embora o texto original da Medida Provisória 1095/2022 revogasse esta última disposição, a irretratabilidade foi mantida com a conversão da MP na Lei 14.382/2022. A manutenção de tal atributo ao contrato é de grande importância, pois sua supressão poderia dar margem a duas interpretações indesejadas e contrárias ao consumidor: a que qualquer das partes poderia pleitear o desfazimento do negócio ou que seu registro não conferiria direito real oponível a terceiro (pelo art. 1.417 do Código Civil a irretratabilidade é condição do direito real).
Entretanto, há tempos a jurisprudência é pacífica no sentido de que o comprador de unidade autônoma, adimplente ou não, pode pleitear o desfazimento do negócio, recebendo em devolução parte dos valores pagos. A matéria foi, inclusive, objeto da Súmula 1 do Tribunal de Justiça de São Paulo1. E a chamada "Lei dos Distratos" (lei 13.786/2018) veio positivar essa possibilidade, com a inclusão do art. 67-A na Lei de Incorporações. Assim, a rescisão do contrato, por iniciativa do adquirente ou por seu inadimplemento, é admissível, mediante a penalidade estabelecida contratualmente, com base na lei.
O ponto de maior divergência sempre residiu justamente em qual o percentual dos valores pagos poderá ser retido pela incorporadora. As decisões judiciais anteriores à lei variavam em uma retenção entre 10% e 25%, sendo que no período mais imediato antes da nova norma, prevalecida no Superior Tribunal de Justiça (STJ) o percentual em torno de 25%. E, por meio da Súmula 543, o STJ determinou a devolução dos valores à vista2.
A possibilidade do comprador, no caso de pretender o desfazimento contratual, receber de volta a quase totalidade dos valores por ele pagos, corrigidos monetariamente e em de um única vez, se constituiu em verdadeiro incentivo ao litígio. Ao menor desconforto financeiro, ou ficando em dúvida quanto a ter ou não realizado bom negócio, os adquirentes partiram para o chamado "distrato", gerando severo impacto para as empresas do setor. A promessa de venda e compra irrevogável foi convertida em uma verdadeira "opção", em que o adquirente ao longo do tempo e, conforme sua conveniência, decidia se mantinha ou não o negócio, praticamente sem penalidade. Poderia até mesmo fazer uma aposta: se o imóvel valorizar, a compra é mantida; se não valorizar, exige-se a devolução de quase todos os valores pagos, corrigidos monetariamente.
Essa situação, é claro, distorceu totalmente a atividade econômica, que necessita de um mínimo de segurança e previsibilidade. Embora o fenômeno dos distratos seja jurídico, está relacionado diretamente com o momento econômico, pois as "desistências" aumentam exponencialmente em situações de crise, como nos anos de 2015 e 2016, em que o índice de distratos sobre vendas superou 40%3, levando inúmeras empresas à recuperação judicial ou mesmo quebra, paralisação de centenas de obras, com os consequentes efeitos negativos, não apenas para as incorporadoras, mas para os compradores adimplentes, para os empregados e para o mercado em geral.
Muitas dessas decisões não consideravam aspectos importantes da incorporação imobiliária, especialmente o conceito do patrimônio de afetação, criado pela lei 10.931/2004, justamente para dar maior proteção ao grupo de condôminos e evitar atrasos e paralisação nas obras. Ao ser adotado o patrimônio afetado, os recursos obtidos em um empreendimento têm necessariamente que ser destinados para o término das obras e quitação do financiamento e não para outras finalidades, havendo inclusive vedações para retirada de valores pela empresa, antes de garantidas receitas para término da construção. Esse patrimônio especial tem o objetivo de blindar as contas do empreendimento, em benefício da comunidade de consumidores.
É de grande importância que, em um empreendimento de altíssimo custo e longo prazo de produção, haja controle e previsibilidade dos recursos com que se pode contar e com as despesas que se incorrerá. Nesse sentido, a quantidade de apartamentos vendidos e recebimento das parcelas do preço tornam-se uma questão fundamental sobre a segurança em se desenvolver o projeto. Tanto é assim que o art. 34 da lei 4.591/1964 permite à incorporadora estabelecer previamente ao lançamento, como condição de prosseguir com a edificação, ter vendido um número mínimo de unidades. Trata-se de norma para proteger a todos os envolvidos, pois há risco considerável, também para os compradores, o prosseguimento de uma obra sem uma quantidade de vendas mínimas para manter seu equilíbrio financeiro.
Ora, se o próprio ordenamento jurídico compreende essa situação, não poderia ele ser condescendente com o esvaziamento dos compradores em uma obra em desenvolvimento. A facilidade conferida ao adquirente de se desobrigar do compromisso assumido, drenando recursos do patrimônio afetado, tornou-se sério risco para a continuidade das obras e entrega do empreendimento e, assim, acabou se configurando também uma ameaça aos consumidores que permaneciam adimplentes.
Os efeitos e impactos do distrato devem ser analisados dentro do contexto da incorporação e do patrimônio afetado, que congrega a produtora do bem e o conjunto de adquirentes. Por se tratar de atividade que demanda capital elevado para a construção, desde 1964 há no Brasil um sistema para viabilizar e incentivar a produção de moradias, o Sistema Financeiro da Habitação (SFH), posteriormente complementado também pelo Sistema Financeiro Imobiliário (SFI). O SFH permite que a incorporadora tenha acesso a financiamento bancário para realização das obras e que os adquirentes possam financiar sua aquisição por longo prazo, com juros menores.
O financiamento para a incorporadora é muitas vezes um requisito necessário para a realização do empreendimento e somente é acessado após atingido determinado número de vendas, por exigência do agente financeiro. Por sua vez, a quitação do financiamento se dá logo que concluídas as obras, normalmente quando os adquirentes quitam os apartamentos, com recursos próprios ou contraindo financiamento bancário de longo prazo.
Nesse contexto, a elevação do número de distratos tem gravíssimos efeitos sobre o empreendimento. Com um contrato rescindido, deixa de ingressar no patrimônio de afetação o valor das parcelas contratadas por aquele adquirente e, pior, é necessário retirar valores que seriam carreados para a obra, para entregar ao desistente. Com menos recursos ingressando na obra, aumenta-se o risco de atrasos, o que gera obrigação de pagamento de multa pela incorporadora.
Um número elevado de distratos na fase inicial pode fazer com que a incorporadora não atinja o numero mínimo de vendas para liberação do financiamento, comprometendo a saúde financeira do projeto. E ainda, com muitos distratos ao longo da fase de obra, a incorporadora tem menos recursos para quitar o agente financeiro, tendo que repactuar prorrogações a juros maiores ou mesmo sofrendo execução bancária. Também por tais razões, os impactos dos distratos podem ser muito severos para as empresas e até para os consumidores adimplentes. Há outro elemento não percebido de imediato: com o aumento do risco proporcionado pelos distratos, as condições de obtenção de financiamento e taxas de juros tornaram-se maiores, elevando o preço final da habitação.
A chamada Lei dos Distratos veio com o objetivo de ajustar essa perigosa distorção. Foi estabelecida uma diferença entre as obras não submetidas ao patrimônio de afetação e aquelas que adotam tal regime. Nas primeiras, a incorporadora está autorizada a prever no contrato a retenção de 25% dos valores pagos no caso de desfazimento do negócio, enquanto que nos empreendimentos submetidos ao regime de afetação, a multa contratual pode ser de 50%. Também no caso do patrimônio de afetação e justamente para proteger o interesse dos adquirentes, a devolução se dá trinta dias após o certificado de conclusão das obras, norma de grande importância para o equilíbrio do empreendimento e que derroga parte da citada Súmula 543 do STJ, que determinava devolução imediata.
Embora tenha considerado os impactos acima referidos, a norma que prevê a penalidade de 50% das importâncias pagas não foi bem recebida por parte da jurisprudência, por entender se tratar de percentual elevado. Tais decisões têm afastado a cláusula que prevê tal percentual, ou por considerá-la "abusiva", ou valendo-se do art. 413 do Código Civil, segundo o qual "a penalidade deve ser reduzida eqüitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio".
A divergência já se encontra no STJ, com decisões favoráveis e contrárias à cláusula que segue o parâmetro legal. No primeiro caso, é exemplo o Agravo em Recurso Especial 2062928-SP, relator min. Luis Felipe Salomão, de 24/03/2022. Já no segundo, citamos Recurso Especial 1979096-SP, relator Min. Moura Ribeiro, de 01/02/2022.
Com todo o respeito às decisões contrárias, não se pode considerar uma prática abusiva a aplicação de penalidade em absoluta consonância com lei expressa e especial. Além disso, no que se refere ao art. 413, sua aplicação ocorre quando a multa é estabelecida livremente pelas partes, sem seguir parâmetros legais, mas não quando segue preceito normativo a respeito, como no caso concreto. Se a penalidade foi estabelecida na própria legislação, a cláusula contratual não pode ser "manifestamente excessiva."
Entretanto, o cerne principal da questão é que as decisões judiciais que afastam a penalidade permitida pela lei não levam em conta - até porque muitas vezes não são devidamente informados - os graves impactos e riscos que os distratos trazem para a incorporadora, para o patrimônio de afetação e para os demais consumidores. A nova lei, em atenção à própria análise econômica do direito, veio com o objetivo de harmonizar a relação contratual, desincentivando a desistência abusiva que tantos riscos trazia para essa atividade essencial. A lei traz a correta finalidade de proteger o empreendimento e os consumidores que nele permanecem, esforçando-se para pagar as parcelas do preço com a justa expectativa de receber sua casa própria.
Pode-se dizer, assim, que para efetivo enquadramento da questão, é necessário vê-la além do plano da relação individual de certo comprador com determinada incorporadora. Há uma segunda dimensão, que congrega a saúde financeira do patrimônio de afetação e a necessidade de proteger os demais adquirentes para que o empreendimento chegue a bom termo, dentro do prazo.
E, em uma dimensão mais ampla, a banalização do compromisso contratual e incentivo aos distratos podem ameaçar não apenas o empreendimento em si, mas também a própria atividade econômica e social de produção de moradias a preços acessíveis, aumentado custos e risco para as empresas, dificultando financiamento e elevando juros bancários. Como resultado, tem-se a indesejada elevação de preços dos imóveis, retratação na oferta de habitação e na geração de empregos. Como se vê, a questão é de suma importância e transcende a relação entre as partes contratantes.
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1 Súmula 1: O compromissário comprador de imóvel, mesmo inadimplente, pode pedir a rescisão do contrato e reaver as quantias pagas, admitida a compensação com gastos próprios de administração e propaganda feitos pelo compromissário vendedor, assim como o valor que se arbitrar pelo tempo de ocupação do bem.
2 Súmula 543: Na hipótese de resolução de contrato de promessa de venda e compra de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador - integralmente, no caso de culpa exclusiva do incorporador/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento.
3 Pesquisa FIPE/Abrainc.