O que muda no recurso especial?
quinta-feira, 28 de julho de 2022
Atualizado em 27 de julho de 2022 18:00
1. Introdução
No dia 15/7/22, foi publicada a EC 125/22, fruto da aprovação da proposta de EC 39/21, pela Câmara Federal, após prévia aprovação no Senado. Tal emenda modificou o art. 105, da CF/88, acrescentando novas regras ao juízo de admissibilidade do recurso especial.
Trata-se de medida que contou com forte apelo de membros do Poder Judiciário, especialmente do próprio STJ, pois confiam que as novas regras auxiliarão a Colenda Corte a gerir melhor o problema relacionado ao grande volume de recursos que todo ano ascende ao Tribunal Superior.
O objetivo do presente artigo é analisar, em termos gerais, as motivações que levaram a promulgação da EC 125/22, as novidades efetivamente implementadas ao juízo de admissibilidade do recurso especial e, a partir disso, refletir sobre os possíveis impactos que as novas regras trarão na condução dos processos judiciais doravante.
2. A motivação da proposta de EC 39/21, que originou a EC 125/22
A proposta de EC 39/21 teve como objetivo primordial reduzir o número de recursos especiais que chegam ao STJ e contou com amplo apoio dos ministros integrantes da Corte.
O ministro Humberto Martins, atual presidente do STJ, em entrevista recente, assentou que "a aprovação da PEC contribui para a missão do tribunal e para o melhor funcionamento de todo o sistema de Justiça, pois possibilita ao STJ exercer de forma mais efetiva o seu verdadeiro papel de firmar teses jurídicas para pacificar o entendimento quanto às leis federais".1
Vale registrar que, dada a função constitucional do STJ - de processar e julgar em última instância os recursos especiais2 voltados contra acórdãos dos Tribunais de Justiça, proferidos em violação a expressa disposição de lei Federal, ou que conduzam a interpretação da lei de modo diverso da conferida por outro tribunal -3, a implementação de um requisito de admissibilidade mais rigoroso ao recurso especial, que, na prática, restringe (talvez até drasticamente) esse exercício constitucional da Corte Superior, somente poderia ser implementada mediante proposta de EC. Lição, aliás, que o legislador trabalhista, ao introduzir o inconstitucional art. 896-A, §1º na CLT, não se atentou4.
A proposta de EC 39/21 foi aprovada pelos deputados federais no último dia 13/7, e, no último dia 15/7, foi publicada a EC 125/22, da qual se originou, tornando vigente as adequações que vamos abordar no presente artigo.
3. Da série de medidas anteriores que também visaram combater a 'crise' dos recursos nos Tribunais Superiores
Não é a primeira vez que o legislador constituinte estabeleceu regras com vistas a reduzir o trabalho dos Tribunais Superiores. Aliás, podemos com tranquilidade dizer que a própria criação do STJ, por força da CF/88, a rigor, foi uma medida com esse viés, uma vez que pensada para reduzir o volume de recursos que à época tramitavam exclusivamente perante o STF, o qual, desde a reforma constitucional de 1926, reunia a competência para processar e julgar recursos interpostos, tanto contra acórdãos que perpetrassem violações a norma constitucional quanto infraconstitucional5.
Até poderíamos retroceder mais e registrar que, na famigerada Carta Constitucional Militar de 1969, por meio da EC 7/77, já existia o requisito da "arguição de relevância"6, também filtro de admissibilidade subjetivo para o então recurso extraordinário e que, ironicamente, por não ter sido considerado compatível com os ideais democráticos da CF/88, acabou sendo revogado na ocasião de sua promulgação, como bem ressalta Bruno Dantas:
"A arguição de relevância veio a ser totalmente eliminada do sistema com a promulgação da Constituição de 1988. Diante da pecha de antidemocrático, o instituto sucumbiu à sede de mudança que guiava o constituinte de 1988. A ideia de que o produto dos vinte e um anos de ditadura militar deveria ser, tanto quanto possível, banido do cenário nacional foi determinante para o ocaso da arguição de relevância"7
Mas, olhando novamente para o cenário normativo pós CF/88, não há como deixar de citar a grande inspiração da EC em estudo, o requisito da "repercussão geral" aos recursos extraordinários, introduzido no ordenamento jurídico por meio da EC 45/04.
A partir de sua vigência, os recursos extraordinários, para serem admitidos perante o STF, passaram a ter de demonstrar em seu bojo que conduziam à apreciação da Corte Suprema temas com "repercussão geral"8, compreendidos como aqueles que demandassem interesses além das partes litigantes, com ampla repercussão social, jurídica, política ou econômica.
O legislador infraconstitucional, ao longo das últimas décadas, também municiou o Poder Judiciário com instrumentos processuais que objetivassem reduzir o volume de recursos distribuídos nos Tribunais Superiores. Nesse contexto, merece destaque a lei 11.418/06, responsável por introduzir os artigos 543-A, B e C, ao CPC/73, os quais, por sua vez conferiram maiores contornos ao requisito de admissibilidade da "repercussão geral" e ainda introduziram no ordenamento jurídico, perante o STJ, a figura dos julgamentos de recursos especiais repetitivos.
Por meio dessa sistemática de julgamento, o STJ passou a poder selecionar recursos que veiculassem temas bastante debatidos no judiciário e com pretérita construção jurisprudencial da Corte (daí o termo 'repetitivos', e não 'ineditivos', como em obra específica já tivemos a oportunidade de ressaltar9) e, por meio de um único julgamento de mérito, firmar orientação jurisdicional que deveria doravante ser seguida pelos magistrados de todo o país ao julgarem processos semelhantes.
Ainda dentro do contexto normativo infraconstitucional, muito importante citar também o CPC de 2015 (lei 13105/15), que, em uma benfazeja evolução do sistema processual anterior, refinou o modelo de julgamentos repetitivos, estabelecendo efeito vinculante para suas decisões10 e até mesmo implementou um verdadeiro 'sistema de precedentes', na medida em que introduziu no ordenamento jurídico as figuras do incidente de assunção de competência11 e, no âmbito regional, do incidente de resolução de demandas repetitivas12.
Há quem entenda - este autor inclusive - que, a rigor, a demanda por melhor controle do fluxo de recursos direcionados ao STJ, a qual motivou a edição da EC ora em estudo, já estaria bem equacionada com essas reformas introduzidas pelo CPC de 2015. Sem contar as mais recentes medidas regimentais adotadas pela Corte Superior, tais como a análise mais criteriosa dos requisitos 'clássicos' de admissibilidade13, pelo órgão veiculado a presidência, no momento de autuação do recurso especial, ou mesmo a implementação do "plenário virtual"14 órgão por meio do qual, desde 201615, a Corte Superior passou a concentrar o julgamento de agravos internos e embargos de declaração.
A aparente equalização da crise dos recursos especiais pôde ser constatada inclusive pelos dados mais recentes do próprio STJ, divulgados no último 01 de julho16, ocasião na qual noticiava-se que a Corte conseguira, no primeiro semestre de 2022, julgar uma quantidade maior de recursos do que o número de novas distribuições. Segundo a matéria, teriam sido registrados 296.224 processos julgados, contra 208.118, de processos distribuídos. Uma taxa de 142% de cumprimento da meta do CNJ! Um feito e tanto, e que, a rigor, parecia transmitir a ideia de que, enfim, o problema estaria solucionado ou ao menos bem encaminhado.
Ainda assim, entretanto, prosseguiu-se a tramitação da proposta de EC 39/21, culminando com sua aprovação e publicação da consequente EC 125/22.
De modo que, concordemos ou não, é fato que agora as novas regras de admissibilidade para o recurso especial "estão entre nós" e todos os operadores do Direito, em especial os que militam perante o STJ, terão de se adaptar ao novo paradigma.
- Confira a íntegra do artigo.
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1 _________, Notícias STJ - "Câmara dos Deputados aprova texto definitivo da PEC da Relevância", publicado em 14/7/22, link: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/14072022-Camara-dos-Deputados-aprova-texto-definitivo-da-PEC-da-Relevancia.aspx - acesso realizado em 16/07/22.
2 Art. 105, III, da CF.
3 E, claro, ainda que em menor frequência, contra acórdãos que julgar válido ato de governo local contestado em face de lei federal, nos termos do art. 105, III, "b", da CF/88.
4 Trata-se de dispositivo cujo caput foi inserido na Consolidação das Leis do Trabalho em 2001, por meio da Medida Provisória 2.226/01 e que depois ganhou maiores contornos em 2017, por meio da edição da lei 13.467/17. Referidas normas estabeleciam, sem amparo na Constituição Federal, que o Tribunal Superior do Trabalho somente poderia conhecer e julgar 'Recursos de Revista' que discutissem teses que oferecessem 'transcendência', sendo tal conceito compreendido pela própria lei como aquele que gerasse reflexos gerais de natureza econômica, política, social ou jurídica. Para maiores detalhes sobre esse polêmico requisito de admissibilidade dos 'Recursos de Revista', recomendamos a leitura do artigo jurídico de Ricardo Calcini e Murilo Soares, junto ao repositório Consultor Jurídico.
5 José Afonso da Silva sustentava que a chave para a crise do recurso extraordinário passava "por uma reforma constitucional, no capítulo do Poder Judiciário Federal, com o fim de redistribuir competências e atribuições dos órgãos judiciários da União" SILVA, José Afonso da. Do recurso extraordinário no direito processual brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1963, p. 454.
6 art. 119, §1º, da CF/69 dispunha: "§ 1º As causas a que se fere o item III, alíneas a e d, deste artigo, serão indicadas pelo Supremo Tribunal Federal no regimento interno, que atenderá à sua natureza, espécie, valor pecuniário e relevância da questão federal".
7 DANTAS, Bruno. Repercussão geral: perspectivas histórica, dogmática e de direito comparado: questões processuais. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
8 Art. 102, §3º, da CF.
9 GONZALEZ, Anselmo Moreira, "Repetitivos ou 'Ineditivos'? Sistematização dos Recursos Especiais Repetitivos", Ed. JusPodivm - 2020 - São Paulo.
10 Art. 927 e incisos, do CPC/15.
11 Art. 947, do CPC/15.
12 Artigo 976, do CPC/15.
13 Ex: tempestividade, poderes de representação, preparo, prequestionamento, óbices a súmula 7 e 83, STJ.
14 vide. art. 184-A, do RISTJ.
15 Data na qual entrou em vigor a Emenda Regimental nº 27/16, que introduziu o art. 184-A, parágrafo único e incisos, ao RISTJ. Para mais detalhes, recomenda-se a leitura do artigo jurídico disponibilizado no repositório jurídico Migalhas, acessível aqui.
16 Cide Notícia STJ - "STJ Encerra primeiro semestre de 2022 julgando quase 90 mil processos a mais do que os distribuídos" - acessível aqui, matéria do próprio STJ de 2022.