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Cessão de espelho d'água e seus impactos no Direito Imobiliário

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Atualizado às 10:01

A regulação das águas públicas (mar, rios e lagos) enfrenta dificuldades conceituais e está imbricada com o polêmico tema dos terrenos de marinha e terrenos marginais, incertezas de limites entre o direito público e o privado e, ainda, conflitos de normas sobre a matéria.

O uso do chamado espelho d'água é inerente a uma gama de atividades, exercidas notadamente nos portos, estaleiros, terminais pesqueiros, plataformas, marinas e clubes náuticos dotados de decks, atracadouros, píeres, fingers, dolphins, além de pontes e outras estruturas.

O mar, lagos e rios são bens de uso comum do povo, conforme art. 99, I do CC e não dominicais (art. 99, III, do CC). O mar é de titularidade da União, assim como os rios e lagos federais, conforme artigo 20, incisos III e VI da CF/88.1

Pelo uso privativo dos espaços sobre águas públicas (ou apenas espelho d'água), a União cobra uma contraprestação dos particulares, além de multas para as obras e atividades consideradas irregulares, sem prejuízo das exigências para autorização dessas estruturas sobre as águas.

A Instrução Normativa 87/20/SPU traz a regulamentação para as estruturas náuticas, enquanto a portaria 7.145/18/SPU regula os procedimentos específicos de intervenção sobre águas nos portos e suas instalações.

Contudo, há falhas conceituais na regulamentação da União no que concerne aos critérios de cobranças, multas e exigências, bem como em relação aos atos normativos adotados, pois não é tema a ser tratado por simples instruções normativas e portarias.

Sem embargo, no nosso entender há incompetência da SPU para regulação da matéria, por haver normas especiais que regem o tema, além da natureza jurídica do mar não condizer com as exigências impostas pela administração.

De início, a União demonstra que não calibrou corretamente a regulamentação, pois as mesmas exigências para um empreendimento de grande porte são direcionadas a pescadores, marinas particulares e estruturas náuticas de menor vulto.

Ademais, há graves impropriedades nas normativas editadas pela União, cuja análise aprofundada não é nossa pretensão nestas breves linhas. 

Leis especiais e competência

Especificamente na atividade portuária exercida nos portos organizados, a autoridade portuária é quem reserva, destina ou declara a disponibilidade do espelho d'água, conforme art. 7° da portaria SPU 7.145/2018. Nos chamados terminais de uso privativo, que são aqueles localizados fora da poligonal do porto organizado, a cessão é efetuada de forma individualizada.

No que tange ao uso das áreas públicas e privadas ou alodiais, a competência para as aprovações e licenças no setor portuário é da Secretaria Nacional de Portos e Transportes Aquaviários e Agência Nacional de Transportes Aquaviários, conforme leis 11.518/07 e 12.815/13. Em relação às áreas em terra, é a SPU que possui competência em se tratando de terrenos de marinha e seus acrescidos, além dos terrenos marginais e outros imóveis de domínio da União, nos termos do decreto-lei 9.760/46.

Antes mesmo da celebração do respectivo contrato com o poder concedente, a ANTAQ exige certidão de disponibilidade do espelho d'água, mediante apresentação de plantas e memoriais das poligonais, identificação das áreas secas e demais requisitos da portaria, a fim de mitigar discussões com titulares de áreas lindeiras e disputas pelo uso das áreas molhadas.

Por seu turno, a instrução normativa SPU 87/20 (mais genérica que a portaria 7.145/18) não esclarece o que seriam estruturas náuticas propriamente ditas e o que seriam estruturas de apoio à navegação. Também não se sabe ao certo se o uso de águas públicas integraria ou não as áreas de fundeio, muitas vezes utilizadas para uma única operação pontual.

Enquanto não há regulação clara, empreendedores não sabem sequer quais operações ou empreendimentos estão sujeitos à análise da SPU, o que gera o risco de multas, embargos e cobranças a título de contraprestação pelo uso de espaço sobre as águas através de procedimentos administrativos, inscrição em dívida ativa e contratos de cessão - na maioria das vezes onerosa - para as estruturas que a União entende regulares.

Outra impropriedade reside no fato de haver lei Federal específica e ampla regulamentação das estruturas náuticas, como marinas, clubes, condomínios e hotéis, e que estão reguladas imprópria e genericamente pela IN referida.

Assim, em se tratando de estruturas sobre as águas alheias à atividade portuária, a lei 9.537/97 é a norma de regência, com atribuições e competência da Marinha do Brasil fixadas em seu art. 4°2, além de meticulosa regulamentação pela NORMAM 03-DPC, dentre outras normas regulamentadoras.

Nesse contexto, o art. 2°, §20 da lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro determina que, a lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior, e na hipótese analisada não há sequer lei, mas simples portaria e instrução normativa.

E o inciso X do art. 22 da CF/88 reza que compete privativamente à União legislar sobre regime dos portos, navegação lacustre, fluvial, marítima, aérea e aeroespacial; e em decorrência dessa competência legislativa privativa é que foi editada a lei 9.537/97, atribuindo à Marinha do Brasil, e não à SPU a elaboração de normas sobre navegação, atracação e fundeio3, ex vi do seu art. 4°, inciso I e criteriosa regulamentação pelas NORMAM's, que incluem as estruturas construídas sobre o espelho d'água.

Da natureza jurídica dos mares, rios e lagos

A conduta da União fere a própria natureza jurídica das águas federais, pois trata tais bens como se dominicais fossem. O art. 2° do Código de Águas define o mar territorial como bem de uso comum do povo, assim como o art. 99, I do CC e artigo 20, incisos III e VI da CF/88. Já o art. 40 do Código de Águas reza que em lei ou leis especiais (e não em meras portarias e instruções normativas), serão reguladas a navegação ou flutuação dos mares territoriais das correntes, canais e lagos do domínio da União. E o acesso às águas, que pressupõe as rampas, atracadouros e demais estruturas é bem defendido por Afranio de Carvalho:

"As águas públicas são de uso comum, pelo que seu acesso é livre a todos, desde que não alterem a sua quantidade e sua qualidade. A navegação, principal uso das águas, não altera nem uma nem outra."4

Não se discute a propriedade das águas públicas, cuja afetação ao domínio público independe de um ato da administração, bastando a verificação de sua natureza. Nesta quadra o entendimento de Garrido Falla:

"No obstante, há de tenerse em cuenta que, em relación com los bienes de la primera de las citadas categorías (los destinados al uso público), puede hablarse en ciertos casos de uma afectacíon por razón de la naturaleza del bien. En estos casos basta con que la Ley declare el carácter de bienes de dominio público de los de una naturaleza determinada (zona marítimo-terrestre, ríos, minas...) para que todos los que participan de ella vengan a integrarse em el dominio. Para saber se uma corriente de agua es de dominio público nos es necesario indagar la existencia de un acto administrativo de afectación formal al uso público, sino que basta con que natulamente sea um río."5

Nessa esteira, conclui-se que a União somente possui o domínio político sobre os mares, rios e lagos. Não possui domínio patrimonial propriamente dito, pois o mar não é bem dominical, passível de cobranças como foros e taxas de ocupação. Aliás, não há correspondência da lei 9.636/98 com as águas públicas e seu domínio.

Tudo isso é importante para entendermos que a retribuição pretendida pela União somente seria devida para atender despesas de conservação do bem, como no caso de uso de bens de uso comum do povo, como museus e parques, mas cujos valores podem ser destinados apenas à sua conservação, conforme art. 103 do CC.

Quanto às águas públicas, será necessária uma construção firme da União para evitar mais insegurança jurídica, não sendo factível, tanto sob o ponto de vista jurídico, quanto pelo ponto de vista ético, tratar o bem de uso comum do povo como se um bem dominical fosse. Maria Sylvia Zanella Di Pietro, bem define os bens dominicais, que são aqueles que possuem função financeira:

"1 - comportam uma função patrimonial ou financeira, porque se destinam a assegurar rendas ao Estado, em oposição aos demais bens públicos, que são afetados a uma destinação de interesse geral; 2 - submetem-se a regime jurídico de direito privado, pois a Administração Pública age, em relação a eles, como um proprietário privado."6

Acresce que tanto o STJ quanto os TRFs consideram válidas as cobranças de taxas patrimoniais (foro, taxa de ocupação e laudêmio) pelo fato de haver retribuição pelo uso do bem público dominical, nunca sobre bem de uso comum do povo.

E para apurar o valor da retribuição pelo uso do espelho d'água, a SPU utiliza como critério a avaliação da área em terra do ocupante ou foreiro. Esse dito preço público - expressão contida nos próprios contratos de cessão - seria obrigatório aos olhos da União, vulnerando a jurisprudência do STF, firme quanto ao fato da cobrança ser facultativa nesses casos.7

Limites normativos de portarias e instruções normativas

A cobrança criada por atos infralegais não pode recair sobre qualquer empreendimento, ainda mais sobre aqueles cujas atividades são inerentes ao uso dos espaços físicos em águas contíguas às áreas secas de titularidade de particulares, ainda que a título precário, ante os princípios da segurança jurídica e da intangibilidade do ato jurídico perfeito.

Simples portarias e instruções não podem sobrepor-se a leis Federais, por serem normas internas e que não devem atingir particulares. Portaria não pode criar novos direitos ou obrigações não estabelecidos no texto legal. Sobre as portarias, Hely Lopes asseverou:

"As portarias, como os demais atos administrativos internos, não atingem nem obrigam aos particulares, pela manifesta razão de que os cidadãos não estão sujeitos ao poder hierárquico da Administração pública".8

Assim, devem ser levados em conta os estritos limites das normas infralegais e o estrago regulatório que a União criou com a edição desses simples atos administrativos, que criaram exação e maior insegurança jurídica a importantes setores de desenvolvimento.

Conclusão

A matéria é vasta e nosso objetivo não é esgotar o tema nestas breves linhas. Tanto os novos projetos quanto empreendimentos consolidados são alvo de ingerências da Secretaria do Patrimônio da União, que atrasa o desenvolvimento imobiliário e aumenta o risco e custo Brasil para setores estratégicos da economia, enquanto não editadas normas claras sobre o uso dos espaços em águas públicas, em consonância com a natureza jurídica do mar, rios e lagos federais, e respeito ao indissociável uso desses espaços em relação às respectivas áreas em terra.

______

1 "Artigo 20: São Bens da União: III - os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos do seu domínio, ou que banhem mais de um estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais. VI - o mar territorial;"

"Art. 4° São atribuições da autoridade marítima: I - elaborar normas para: b) tráfego e permanência das embarcações nas águas sob jurisdição nacional, bem como sua entrada e saída de portos, atracadouros, fundeadouros e marinas; (...) i) cadastramento e funcionamento das marinas, clubes e entidades desportivas náuticas, no que diz respeito à salvaguarda da vida humana e à segurança da navegação no mar aberto e em hidrovias interiores; VII - estabelecer os requisitos referentes às condições de segurança e habitabilidade e para a prevenção da poluição por parte de embarcações, plataformas ou suas instalações de apoio;"

3 'Área de fundeio, também conhecida como atracadouro ou fundeadouro, pode ser definida como local pré-estabelecido e regulamentado pela autoridade marítima onde uma embarcação pode lançar âncoras.' - Fonte: disponível aqui

4 Águas Interiores, suas margens, ilhas e servidões - São Paulo: Saraiva, 1986 - pág. 8

5Tratado de derecho administrativo. 11ª ed. Madrid: Tecnos, 2002 - p. 470

6 Direito administrativo brasileiro - 18ª, São Paulo: Atlas, 2005 - p. 492

7 RE 916809 AgR, Relator: EDSON FACHIN, Primeira Turma, julgado em 15/12/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-029  DIVULG 16-02-2016  PUBLIC 17-02-2016

8 Direito administrativo brasileiro. 2. ed. 1966, p. 192

9 Portaria 7.145 de 13 de julho de 2018. Disponível aqui

10 Portaria 87 de 1 de setembro de 2020. Disponível aqui

11 Portaria 404 de 28 de dezembro de 2012. Disponível aqui

12 Lei 9.636 de 15 de maio de 1998. Disponível em aqui.

13 Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível aqui

14 Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível aqui

15 Lei 11.518 de 05 de setembro de 2007. Disponível aqui

16 Decreto-Lei 2.398/87. Disponível aqui.

17 Disponível aqui.

18 Lei 12.815 de 05 de junho de 2013. Disponível aqui

19 STF - Pleno, RE 556.854, Min. Cármen Lúcia, DJ. 11.10.11 Disponível aqui.

20 RE 916809 AgR, Relator(a): EDSON FACHIN, Primeira Turma, julgado em 15/12/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-029  DIVULG 16-02-2016  PUBLIC 17-02-2016. Disponível aqui

21 CARVALHO, Afranio de - Águas Interiores, suas margens, ilhas e servidões - São Paulo: Saraiva, 1986 - pág. 8.

22 DI PIETRO, Maria Sylvia Zenalla - Direito administrativo brasileiro - 18ª, São Paulo: Atlas, 2005 - p. 492.

23 FALLA, Fernando Garrido - Tratado de derecho administrativo. 11ª ed. Madrid: Tecnos, 2002 - p. 470.

24 MEIRELLES, Hely Lopes - Direito administrativo brasileiro. 2. ed. 1966, p. 192.