Causalidade nas ações de distrato de unidade imobiliária sob a ótica da lei 13.786/18
quinta-feira, 19 de novembro de 2020
Atualizado às 10:09
A nova Lei de Distratos, dentre as suas principais inovações, estabeleceu a limitação do percentual de retenção do incorporador em 25% do valor pago pelo adquirente na hipótese de desfazimento do contrato por iniciativa do comprador, percentual este que pode chegar a 50%, se o empreendimento estiver sujeito ao Patrimônio de Afetação.
Compreendemos que os referidos percentuais possuem natureza de cláusula penal compensatória, definindo a quantia que será devida ao incorporador diante da inadimplência absoluta do adquirente.
Uma particularidade, que talvez passe despercebida ao intérprete menos atento, é a utilização da expressão "até" no dispositivo legal (artigo 67-A da lei). Ou seja, em tese, o percentual de retenção poderia variar do 0,01% até o 50%, considerando a presença da afetação.
Talvez se pense que o incorporador sempre se valerá dos limites legais em seus contratos, aplicando 25% ou 50%, ou até outro percentual que entenda ser relevante ou variável conforme a evolução da incorporação, desde que observados os limites legais.
Por outro lado, o adquirente tentará se aproximar ao máximo do menor percentual possível.
Considerando que o legislador deu atenção exclusiva à definição de um percentual máximo, sem se preocupar com algumas nuances, tais como o momento do distrato face a evolução do empreendimento, ao valor que já foi pago pelo adquirente, o prejuízo ao incorporador com despesas administrativas, dentre outros fatores, certo é que o Judiciário ainda será convocado a se manifestar sobre a dicotomia existente entre o melhor interesse das pretensões do incorporador e do adquirente (ou ex-adquirente), a despeito de entendermos que a real intenção do artigo 67-A teria sido a de limitar a "tarifação" da indenização.
Sobre a limitação da autonomia privada na fixação do montante da clausula, sugerimos artigo da colega Aline de Miranda Valverde Terra, publicado recentemente nesta coluna1, no qual a autora compreende:
"(...) que a cláusula contratual relativa à retenção dispensa o promitente vendedor de ir a juízo liquidar suas perdas e danos; tudo se passa extrajudicialmente: a resolução e a produção de seus respectivos efeitos indenizatório (retenção do percentual contratualmente previsto pelo promitente vendedor) e restitutório (restituição do que sobejar ao promitente comprador)."
Muito embora concordemos que a lei veio para possibilitar a resolução do conflito e do contrato extrajudicialmente, desde que claras as previsões contratuais, inexiste impeditivo legal para o pleito de revisão dos percentuais pelo Judiciário.
Vejamos um exemplo hipotético em que o adquirente de uma unidade na planta, já tendo quitado R$ 50.000,00 do preço do imóvel, procura o incorporador para realizar o distrato, sob o argumento de incapacidade financeira.
O incorporador, precavido, aplica a retenção de 50% de prevista em contrato e oferece R$ 25.0000,00 de devolução.
O adquirente se nega a aceitar o valor sugerido por acreditar ser uma retenção abusiva, sustendo que o empreendimento ainda está na fase de lançamento e o que valor pago representa, no nosso exemplo, apenas 10% do preço.
Diante da falta de consenso, a saída será uma demanda judicial.
Reparem que, nesta demanda, muito embora o adquirente pleiteie a declaração da extinção da relação contratual, interessa-lhe, sobretudo, a definição de um percentual de devolução pelo Poder Judiciário mais justo aos seus olhos àquilo que fora contratado.
O incorporador não se negou a realizar distrato, apenas se negou a restituir percentual distinto ao que fora pactuado em razão da inadimplência do adquirente.
Partindo da premissa de que não houve pretensão resistida pelo incorporador quanto à extinção da relação contratual, e isso é fácil se demonstrar quando, na própria contestação, faz-se prova das tratativas com o adquirente sobre o distrato, assim como, in incontinenti, pode-se depositar o valor incontroverso nos autos (aquilo que está previsto em contrato), entendemos que sequer haveria interesse de agir quanto ao pedido declaratório, estando a unidade inclusive disponível para ser comercializada com terceiro independentemente de pronunciamento judicial.
Retomando o nosso exemplo, vamos considerar que o juiz de primeira instância, avaliando as particularidades do caso concreto, contraria os percentuais legais e contratuais2 e fixa a retenção em 10%, ou seja, defere 90% de devolução ao adquirente, além de fixar honorários advocatícios em 10% sobre o valor total a ser restituído.
Estamos diante do ponto central que queremos tratar aqui: caberiam honorários sobre o valor total a ser restituído, a despeito de a questão discutida nos autos ter se limitado à diferença entre o valor pleiteado pelo adquirente e aquilo que prevê o contrato? A sucumbência deveria se limitar somente sobre a diferença entre o deferido na decisão e aquilo que estava estabelecido em contrato?
Ainda no nosso exemplo, suponhamos que o incorporador, depois de se ver obrigado a restituir valor maior ao que está previsto no contrato, decide, por sua vez, apresentar recurso, conseguindo a majoração do percentual de retenção em segunda instância. Haveria sucumbência do incorporador?
E mais, há a possibilidade de majoração da verba honorária recursal, regra do § 11º do artigo 85 do CPC quando o Tribunal reajusta a sucumbência ao definir novos valores de retenção e devolução?
Sob o enfoque destes questionamentos, destacamos alguns pontos que merecem atenção aos players deste cenário: adquirente, incorporador, advogados e magistrados.
Para uma melhor análise da matéria, é importante que tenhamos em mente o conteúdo do artigo 86 do CPC: "Se cada litigante for, em parte, vencedor e vencido, serão proporcionalmente distribuídas entre elas as despesas."
No nosso exemplo, parece-nos evidente que o adquirente somente ajuizou a ação por discordar das cláusulas contratuais que versam sobre o distrato, buscando, portanto, receber percentual superior ao pactuado em contrato (e superior ao que estabelece a Lei).
Vejam que, se pensarmos bem, o princípio da causalidade, nesses casos, não pode onerar a uma das Partes, pois a ação somente é ajuizada pelo fato de o adquirente não concordar com as retenções previstas.
O distrato não fora negado pelo incorporador em momento pré-processsual. A insurgência do incorporador dizia respeito apenas aos percentuais de devolução, que, na sua compreensão, devem respeitar a Lei e a livre autonomia das partes cristalizada em contrato.
O ponto que se quer chamar a atenção consiste na incongruência gerada quando o Judiciário fixa um percentual de restituição aos adquirentes, e sobre este percentual fixa honorários sucumbenciais, utilizando como base de cálculo todo o valor a ser devolvido, ignorando que existe quantia incontroversa.
Ora, se não há pretensão resistida quanto ao distrato, entendemos que o correto seria que a sucumbência em favor dos patronos do Autor fosse fixada em percentual sobre a diferença entre os termos do contrato e a retenção fixada em juízo.
E, em algumas hipóteses, deveria ser fixada verba honorários aos patronos da requerida/incorporadora. Se a parte requer 90% de devolução e o magistrado entende que deve ser restituído 80%, por exemplo, estaríamos diante de uma sucumbência ao mínimo parcial.
Mais, uma vez que a incorporadora faça prevalecer em seu recurso o percentual fixado em seu contrato, no nosso sentir, sequer seriam devidos honorários ao advogado do adquirente, até porque nunca houve pretensão resistida quanto ao distrato.
Este último exemplo nos apresenta um outro cenário: por qual razão o incorporador não poderia dar início à ação para ver confirmado o percentual fixado em contrato, deixando disponível nos autos, em princípio, pelo uso da ação de consignação com a comprovação da notificação de resolução, aquilo que entende devido, nas hipóteses em que adquirente se recusou a celebrar o distrato nos percentuais fixados no contrato?
Feitas estas breves ponderações, considerando como premissa que, do lado do incorporador, em regra, não há pretensão resistida ao distrato, ficam aqui as reflexões sobre:
i) Se de fato há real sucumbência nas ações de distrato quando a discussão se limita ao percentual de retenção - em especial quando o incorporador, não se opondo ao distrato, realiza de imediato o depósito do valor incontroverso e pautado nos percentuais estabelecidos na Lei.
ii) Se há a sucumbência, não deveria ela ser fixada somente sobre a diferença daquilo que fora pleiteado na ação em paralelo à clausula contratual?
iii) Se há a possibilidade de o próprio incorporador antecipar os movimentos e iniciar a ação, para que libere tão cedo a unidade, possibilitando a sua renegociação a fim de recompor o fluxo da incorporação, por óbvio, deixando à disposição as parcelas incontroversas - hipótese em que se esquivaria da sucumbência por completo, ressalvado o direito na verdade a receber sucumbência, salvo em caso de minoração da parcela de retenção pelo Judiciário (cabendo retornar à reflexão do item ii deste parágrafo).
Quanto à possibilidade de aplicação da regra prevista no § 11º, do artigo 85 do CPC, nessas situações, compreendemos ser oportuno observar casuisticamente os desdobramentos dos percentuais de retenção em fase recursal.
Certo é que quando o Tribunal reajusta os percentuais, inegavelmente, também há o reajuste da sucumbência.
O Superior Tribunal de Justiça3, no que diz respeito aos honorários recursais, tem se direcionado na linha de que:
"A majoração da verba honorária sucumbencial recursal, prevista no art. 85, § 11, do CPC/15, pressupõe a existência cumulativa dos seguintes requisitos: a) decisão recorrida publicada a partir de 18.03.2016, data de entrada em vigor do novo Código de Processo Civil; b) recurso não conhecido integralmente ou não provido, monocraticamente ou pelo órgão colegiado competente; e c) condenação em honorários advocatícios desde a origem no feito em que interposto o recurso."
Diante da interpretação dada pelo STJ: primeiro, não há que se falar em majoração da verba honorária recursal diante de provimento parcial de recurso, embora ainda se encontre decisões nesse sentido (ou seja: o recurso é provido ou parcialmente provido e os honorários da parte contrária aumentam); segundo, há a necessidade de fixação na origem de honorários na primeira instância, circunstância esta, a nosso ver, de aplicação cogente se considerada a regra de causalidade prevista no artigo 86 do CPC.
Logo, somente caberia a aplicação da verba honorária recursal na hipótese em que os percentuais de retenção e devolução fossem mantidos pelo Tribunal, devendo pesar a moeda tanto para o lado do incorporador (quando ver mantido o percentual diferente do contrato), quanto para o lado do adquirente que, eventualmente, ver confirmada a decisão que determina a aplicação das regras contratuais.
Concluímos para dizer que a importância de se dar mais atenção às regras de causalidade nas ações de distrato, pois, muitas vezes, acabamos por nos fixar nos pontos centrais do processo e não na sucumbência que, ao fim e ao cabo, pode não somente remunerar adequadamente o trabalho do advogado como, também, reduzir de maneira significativas os custos em ações dessa natureza.
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2 Cabe aqui uma nota de esclarecimento que não é objeto deste artigo a discussão sobre a legalidade da intervenção do Poder Judiciário para revisar contratos assinados na vigência da Lei 13.786/18, mas tão somente traçar possibilidades casuísticas considerando demandas judiciais que atualmente vem sendo ajuizadas nesse sentido.
3 Acórdãos: AgInt no AREsp 1349182/RJ, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, julgado em 10/06/2019, DJe 12/06/2019
AgInt no AREsp 1328067/ES, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 09/05/2019, DJe 06/06/2019
AgInt no AREsp 1310670/RJ, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 30/05/2019, DJe 03/06/2019
REsp 1804904/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 16/05/2019, DJe 30/05/2019
EDcl no AgInt no AREsp 1342474/MS, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 11/04/2019, DJe 08/05/2019
AgInt nos EDcl no REsp 1745960/MS, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 02/04/2019, DJe 08/04/2019