Impulso à transferência do direito de construir. Novos ajustes à lei de zoneamento de São Paulo
sexta-feira, 17 de janeiro de 2020
Atualizado em 22 de setembro de 2021 13:16
Recentemente a Prefeitura de São Paulo disponibilizou a segunda minuta de Projeto de Lei de ajustes à lei 16.402, de 22 de março de 2016, de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (LPUOS 2016), mais conhecida como Lei de Zoneamento, como passo prévio ao envio ao legislativo.
Depois da consulta pública motivada pela primeira minuta e após o debate público e contribuições da sociedade civil foi publicada uma segunda proposta aperfeiçoada.1
Em primeiro lugar, a Prefeitura através de justificativa emitida pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano (SMDU) esclarece que não se trata de uma revisão da lei e que as mudanças apresentadas se mantêm fiéis aos princípios e diretrizes do Plano Diretor Estratégico. Desse modo, foram excluídas propostas de redução do valor da outorga onerosa e da ampliação da cota parte máxima de terreno por unidade residencial, por entender que contrariavam as disposições do Plano Diretor.
O presente artigo pretende tratar dos ajustes na transferência do direito de construir (TDC)2, já que a minuta agora apresentada traz substanciais mudanças, alterando os fatores de incentivo, aumentado o limite global em relação ao arrecadado com a outorga onerosa, assim como esclarece os casos de reforma com aumento da área construída.3
Feito esse importante registro, prosseguimos:
1.- Dos fatores de incentivo (Fi)
A lei 16.050 de 31 de julho de 2014 (PDE 2014) estabeleceu para o cálculo do potencial passível de transferência nos casos que não existe doação de área, uma fórmula simples, podendo ceder o potencial construtivo básico que será calculado pela área do terreno do imóvel.4
Ademais, inseriu um fator de incentivo que igualou incialmente a 1 para todos os imóveis e determinou que mediante lei específica poder-se-á redefinir.5
Assim, dois anos depois a LPUOS 2016 reviu esse fator conforme a área de lote, concentrando o incentivo nos imóveis de até 500 m² e desincentivando os lotes de área superior a 2.000 m².6
Para entender aquele dispositivo da LPUOS 2016, remetemo-nos às atas das reuniões do CONPRESP7, onde a preocupação eram as grandes operações de transferência de imóveis com muita área que se vinham produzindo desde a entrada em vigor do PDE com a aparição de empresas especializadas que passaram a explorar o instituto como nova modalidade de negócios. Concluem, portanto, em dirigir os benefícios em imóveis pequenos, lembrando que a maioria dos imóveis tombados é de pequeno e médio porte e defendem a modulação para equacionar as distorções produzidas pela fórmula do Plano Diretor.
Desse modo, o legislador municipal na LPUOS 2016 dirigiu inicialmente o instrumento aos pequenos imóveis em clara desvantagem aos proprietários dos imóveis maiores, cujo potencial construtivo transferível seria drasticamente reduzido. Ignorando o legislador que, quanto maior o bem tombado, mais elevado o custo de sua manutenção e conservação.8
Com muito acerto a minuta de ajustes agora apresentada pretende alterar os fatores de incentivo que haviam causado ampla controvérsia no passado, e que servem para calcular a área passível de transferência.
Fatores de incentivo
Área do lote |
LPUOS 2016 |
até 500m² |
1,2 |
+ 500m² até 2.000m² |
1,0 |
+ 2.000m² até 5.000m² |
0,9 |
+ 5.000m² até 10.000m² |
0,7 |
+ 10.000m² até 20.000m² |
0,5 |
+ 20.000m² até 50.000m² |
0,2 |
+ 50.000m² |
0,1 |
Área do lote |
Ajustes propostos |
até 1000m² |
2,0 |
+ 1000m² até 5.000m² |
1,5 |
+ 5.000m² até 10.000m² |
1,2 |
+ 10.000m² até 20.000m² |
0,8 |
+ 20.000m² até 50.000m² |
0,6 |
+ 50.000m² |
0,2 |
Se atualmente os imóveis com área de lote de até 500 m² são beneficiados com fator de incentivo de 1,2 a minuta pretende abranger agora também os lotes de área de até 10.000 m² nesse mesmo patamar.
Ademais os lotes de área de até 1.000 m², e aqueles entre 1.000 m² e 5.000 m² são incentivados com coeficientes de 2,0 e 1,5 respetivamente.
Contudo, continuam existindo imóveis tombados desincentivados, aqueles com área do lote superior a 10.000 m² com diminuições entre 20% e 80% que também precisam de manutenção e conservação e voltam a ser esquecidos nesta alteração.
2.- Do limite conjunto com Outorga Onerosa do Direito de Construir
Outro dos problemas recorrentes é relacionado com a concorrência que um mercado ativo de transferência de direitos de construir pode ocasionar com a arrecadação da outorga onerosa do direito de construir (OODC). Os dois são institutos baseados no conceito do solo criado e da dissociação de dois direitos, por um lado o direito à propriedade e por outro lado o direito de construir.
Porém a OODC é um preço público pago pelo desenvolvedor ou construtor para edificar além do coeficiente básico, enquanto a TDC pode ser adquirida de particulares, a qualquer momento, com preços negociados usualmente com descontos entre 10% e 20% em relação à outorga onerosa, convertendo-se assim mais atrativa para o mercado imobiliário.
Desse modo, e para evitar uma queda expressiva dos valores arrecadados da OODC a LPUOS 2016 estabeleceu um limite global que fixa um teto para que o valor transferido nos últimos 12 meses, nos casos que não há doação de área, não supere 5% do valor arrecadado pelo FUNDURB no mesmo período.9
Lembremos que o Fundo Municipal de Desenvolvimento Urbano (FUNDURB), vinculado à Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano e criado pelo antigo Plano Diretor de 2002, tem como finalidade apoiar ou realizar investimentos em planos, programas urbanísticos ou ambientais decorrentes do Plano Diretor. Os recursos do Fundo provieram de doações orçamentárias, empréstimos, contribuições e arrecadação da outorga onerosa do direito de construir, sendo esse o principal e maior recurso.10
Agora, na minuta de ajustes pleiteia alterar o limite para 10%. Entendemos positiva essa elevação do índice, uma vez que a limitação de recursos pode representar uma ameaça para as políticas de recuperação do patrimônio.
Ao mesmo tempo os valores de arrecadação da OODC sofreram um incremento substancial no último ano por conta da reativação do mercado imobiliário.
- |
OODC Arrecadada |
Limite 5% LPUOS |
Ajustes. Proposta de 10% |
2019(Até 30/10) |
R$616.378.006,79 |
R$30.818.900,34 |
R$61.637.800,68 |
2018 |
R$335.075.268,32 |
R$16.753.763,42 |
R$33.507.526,83 |
2017 |
R$210.187.562,35 |
R$10.509.378,12 |
R$21.018.756,24 |
Fonte: FUNDURB
Nesse ponto, apenas restariam duas questões práticas. Em primeiro lugar, o valor apurado para fazer o cálculo deveria ser o "valor total arrecadado no FUNDURB" nos últimos 12 meses e não somente o valor da outorga onerosa conforme se vem fazendo na prática pela SMDU, o que pode dar lugar a variações de aproximadamente 8%.11
Em segundo lugar, os valores pecuniários referentes às TDCs já emitidas deveriam estar publicadas no website da SMDU para estar cientes do valor atual arrecadado, transferido, assim como das novas certidões de transferências protocoladas garantindo transparência e segurança jurídica aos interessados.
3.-Da reforma com acréscimo de área construída.
A minuta de ajustes pretende esclarecer a problemática das declarações de potencial construtivo de imóveis ZEPEC-BIR12 que tiveram reforma com acréscimo de área construída, que já havia sido tratado pelo decreto 57.536/2016 e decreto 58.176/2018.
Agora, na minuta de ajustes apresentada, estabelece uma diferença caso a declaração de potencial construtivo passível de transferir fosse emitida conforme a anterior legislação ou nos termos do PDE 2014.
No primeiro caso, a área construída acrescida deverá ser descontada do potencial construtivo constante na correspondente declaração de potencial passível de transferir.
No segundo caso, em que a declaração de potencial construtivo passível de transferir tenha sido emitida conforme o PDE 2014, unicamente será descontada aquela área construída acima de coeficiente de aproveitamento básico do lote.
Ademais, o proprietário poderá utilizar esse potencial construtivo passível de transferência no próprio lote e caso precise de mais potencial para atingir o coeficiente máximo, poderá fazê-lo mediante a outorga onerosa do direito construir, permanecendo a reforma sujeita à anuência prévia dos órgãos de preservação competentes.
Conclusões
Podemos afirmar, portanto, que os ajustes apresentados na minuta em relação às TDCs são mais que acertados e oportunos, com a finalidade de aperfeiçoar a sua aplicação, ampliando os incentivos, assim como o limite global em relação à arrecadação com a OODC.
Os ajustes estão em sintonia com a proposta do Plano Diretor (PDE 2014) que entendemos continua intacta e se traduzem em mais recursos para a preservação de bens tombados no município de São Paulo.
Somente nos resta cumprimentar a SMDU pelo procedimento transparente de audiências públicas que está sendo conduzido com a finalidade de dar a conhecer à sociedade as novas mudanças.
Continuaremos atentos às possíveis alterações que se sucedam por ocasião dos debates públicos e posteriormente no envio e na tramitação na Câmara Municipal da minuta agora apresentada.
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2 A transferência é um instrumento de política urbana reconhecido no Estatuto da Cidade que permite em situações específicas autorizadas por Lei que o potencial construtivo básico seja utilizado em outro local.
3 Para uma compressão da TDC em São Paulo, remetemo-nos in totum a BLANCO, Antonio. Transferência do direito de construir: revisitando o instituto a partir do novo plano diretor de São Paulo. BDM - Boletim de Direito Municipal, São Paulo: NDJ, ano 33, n. 5, p. 305-329, maio 2017.
4 SÃO PAULO. (Município). Lei nº 16.050, de 31 de julho de 2014. Artigo 125. "PCpt = Atc x CAbas x Fi, onde PCpt - potencial construtivo passível de transferência; Atc - área do terreno cedente; CAbas - coeficiente de aproveitamento básico do terreno cedente, vigente na data de referência; Fi - Fator de incentivo = 1"
5 SÃO PAULO. (Município). Lei nº 16.050, de 31 de julho de 2014.Artigo 133
6 SÃO PAULO. (Município). Lei nº 16.402, de 22 de março de 2016. Artigo 24
7 Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo. Ata da 619ª reunião ordinária. DOC 11/11/2015- p. 164.
8 TERRA, Marcelo; JAPUR, Natália. A transferência de potencial construtivo e seus desestímulos. Consultor jurídico. Conjur,21 de agosto de 2016
9 SÃO PAULO. (Município). Lei nº 16.402, de 22 de março de 2016. Artigo 24. § 5º "O valor pecuniário correspondente à totalidade do potencial construtivo transferido no período referente aos últimos 12 (doze) meses em relação às transferências do direito de construir sem doação nos termos do art. 124 da Lei nº 16.050, de 31 de julho de 2014 - PDE, não poderá exceder a 5% (cinco por cento) do valor total arrecadado no FUNDURB no mesmo período, considerando a data do pedido da certidão de transferência de potencial construtivo."
10 SÃO PAULO. (Município). Lei nº 16.050, de 31 de julho de 2014.art.337
11 Fundo de Desenvolvimento Urbano - FUNDURB. Demonstrativos contábeis
12 Zonas Especiais de Preservação Cultural, classificam-se em quatro categorias de acordo com as resoluções de tombamento ou instrumentos de proteção: Bens Imóveis Representativos (BIR), Áreas de Urbanização Especial (AUE), Áreas de Proteção Paisagística (APPa) e Áreas de Proteção cultural (APC).
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BACELLAR, Isabela; FURTADO, Fernanda; NEWLANDS, Akhiris. A experiência municipal recente com a Transferência do Direito de Construir no Brasil: imprecisões, lacunas e oportunidades de aperfeiçoamento. Trabalho apresentado no 3º Congresso Ibero-americano de suelo urbano, Curitiba, 23-25 de agosto de 2017.
BLANCO, Antonio. Transferência do direito de construir: revisitando o instituto a partir do novo plano diretor de São Paulo. BDM - Boletim de Direito Municipal, São Paulo: NDJ, ano 33, n. 5, p. 305-329, maio 2017
FERNANDES, PATRICIA. A influência da Transferência do Direito de Construir à luz do PDE de 2014 e da LPUOS de 2016 na avaliação de imóveis representativos no município de São Paulo. Trabalho técnico apresentado no XX Congresso Brasileiro de Engenharia de Avaliações e Perícias, Salvador de Bahia, 21-25 de outubro de 2019.
TERRA, Marcelo; JAPUR, Natália. A transferência de potencial construtivo e seus desestímulos. Consultor jurídico. Conjur,21 de agosto de 2016.