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Processo de suspensão preventiva de advogado - Parte 2

quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Atualizado às 10:04

Conforme já exposto na primeira parte desse artigo (clique aqui para ler) o procedimento previsto no artigo 70, §3º da Lei Federal 8.906/94 é cautelar e não se confunde com o processo administrativo disciplinar. Eventual suspensão não tem natureza jurídica de sanção disciplinar, todavia, autoriza a realização da detração caso o advogado seja suspenso preventivamente e à frente sofra também a condenação à suspensão.

A imposição da suspensão preventiva exige não só o cumprimento dos requisitos objetivos lançados no texto da norma (clique aqui), mas também subjetivos.

São requisitos subjetivos exigidos para a cautelar: a tipicidade administrativa, a lesividade, a publicidade negativa livre e a contemporaneidade.

Tipicidade administrativa: A norma do artigo 70, §3º do EAOAB possui natureza híbrida, pois embora tenha em sua maioria carga adjetiva processual, também é norma material, pois exige para a aplicação da suspensão preventiva que: (i) o fato se amolde à hipótese do tipo administrativo, ou seja, que esteja presente a tipicidade; e que (ii) a conduta obrigatoriamente seja causadora de "repercussão prejudicial à dignidade da advocacia".

Entende-se por tipicidade administrativa que o evento ocorrido no mundo dos fatos encontre perfeito encaixe à norma administrativa repressiva, nesse caso as hipóteses legais arroladas pelo sistema OAB para as infrações ético-disciplinares.

O conceito de tipicidade é originário do direito penal, derivado do princípio da legalidade. Nelson Hungria explica: "O fato elementar do crime deve corresponder fielmente à descrição contida no preceito legal incriminador (considerado em si mesmo ou em conexão com a regra geral sobre a tentativa). A esse caráter do fato chama-se tipicidade"1.

Isso posto, sempre que se estiver diante de algum evento onde potencialmente seria aplicável a suspensão preventiva, deve o Tribunal de Ética inicialmente analisar se o fato encontra previsão legal nas normas repressivas do sistema OAB. Somente após essa checagem, deve-se passar à exegese do segundo critério, melhor visto à frente, que é a repercussão negativa da conduta.

Ainda sobre a tipicidade administrativa, o ato não precisa necessariamente estar vinculado à atividade da profissão. Na verdade, embora seja essa a hipótese legal mais comum como ocorreu no exemplo onde o advogado, no exercício de sua função, foi preso em flagrante delito repassando drogas a seu cliente no interior do presídio, não é sempre que ocorrerá.

Imagine-se assim que advogado seja preso em flagrante praticando o estupro de uma criança com 12 anos de idade. Indubitavelmente estava ali muito afastado do exercício da profissão, todavia, inequivocamente, praticou o crime infamante tratado no artigo 34, inciso XXVIII do EAOAB, tornando perfeita, possível e absolutamente recomendável a suspensão preventiva do profissional.

A assertiva é ratificada pela exegese dos incisos do artigo 34 em comento, haja vista que as condutas mais graves lá previstas não estão relacionadas ao exercício da profissão, conforme os incisos XXV (conduta incompatível com a advocacia); XXVII (torna-se inidôneo) e XXVII (praticar crime infamante).

Lesividade: decorre da necessidade do fato ocorrido no mundo dos fatos, além de encontrar a necessária tipicidade administrativa, também ser suficientemente grave para reverberar socialmente com força tal que cause "repercussão prejudicial à dignidade da advocacia", o que importa reconhecer que não será qualquer fato administrativamente típico e reprovável apto à suspensão cautelar. É dizer que ainda que haja o enquadramento do fato à conduta; que ela seja prejudicial à dignidade da advocacia e se torne pública, deverá a OAB avaliar se possui lesividade suficiente para que o advogado seja submetido a tão extrema medida como a suspensão preventiva.

Essa análise, por óbvio, é altamente subjetiva e caberá ao Tribunal de Ética e Disciplina avaliar com absoluta responsabilidade e isenção se o fato foi suficientemente lesivo para atacar os bens jurídicos que a norma tenta resguardar, ou seja, a grandeza, a integridade, a respeitabilidade e a credibilidade da advocacia.

Em regra, as normas repressivas exigem para sua aplicação a lesividade: "A tipicidade penal exige uma ofensa de alguma gravidade aos bens jurídicos protegidos, pois nem sempre qualquer ofensa a esses bens ou interesses é suficiente para configurar o injusto típico. Segundo esse princípio, que Klaus Tiedemann chamou de princípio de bagatela, é imperativa uma efetiva proporcionalidade entre a gravidade da conduta que se pretende punir e a drasticidade da intervenção estatal. Amiúde, condutas que se amoldam a determinado tipo penal, sob o ponto de vista formal, não apresentam nenhuma relevância material. Nessas circunstâncias, pode-se afastar liminarmente a tipicidade penal porque em verdade o bem jurídico não chegou a ser lesado".2

Na suspensão preventiva não é diferente e o pensamento do nobre doutrinador se encaixa perfeitamente ao procedimento ora em estudo, ou seja, deve o Tribunal de Ética e Disciplina perquirir a lesividade do fato em relação aos bens jurídicos protegidos pela norma.

Nesse sentido, a título de exemplo, após o advento do provimento 205/2021 do Conselho Federal da OAB são comuns vídeos vexatórios realizados por advogados nas mais diversas redes sociais, como Instagram e TikTok, que embora sejam públicos e revelem conteúdo absolutamente inapropriado à conduta que se espera da nobreza da profissão, não têm o suficiente potencial lesivo à advocacia como um todo, limitando-se a exposição negativa à esfera pessoal do próprio autor do vídeo.

Nesse sentido, já decidiu o TED OAB/GO: "(...) 2. A suspensão preventiva é fato excepcional, extraordinário, e não deve ser banalizada, deve ser aplicada para condutas cuja magnitude possa prejudicar a dignidade da advocacia, que possa envolver imediatas repercussões no exercício profissional do representado, cujas repercussões ultrapassam as pessoas envolvidas e causem dano à dignidade coletiva da advocacia. 3. É notório que qualquer fato que envolva advogado pode alcançar proporções midiáticas, muitos meios de comunicação fazem questão de dar ênfase ao termo "ADVOGADO", no entanto, temos que tomar cuidado para não abrir precedentes para que qualquer notícia de cunho inconveniente que envolva advogado seja passível de suspensão preventiva" (Processo nº 202209943, com Relatoria de Gesner Souto de Souza, TED/OAB/GO, julgado em 14/10/2022). 

Por outro lado, já se decidiu cabível a suspensão preventiva em caso de advogado acusado de tentativa de homicídio por haver atropelado servidora pública após briga de trânsito; advogado que realizou o exame de Ordem para bacharel, declarando-se como o candidato; que utilizou-se de carro de som para angariar clientela em determinado bairro; que arregimentou vendedores para, munidos de procurações e contratos, visitar moradores de empreendimento narrando falsos e fazendo promessas de resultados para angariar clientela3, de advogado que realizou audiência de instrução no TED, fazendo se passar pelo próprio pai, também advogado e representado4, de advogado que apropriou-se de verbas alimentares de cliente, praticando locupletamento5, tentativa de entrega de drogas em presídio a cliente presoe diversos outros.

Publicidade negativa livre: Não basta o fato ser grave, deve ser público e extravasar a pessoa do advogado e daqueles diretamente envolvidos. O evento tem obrigatoriamente que se tornar conhecido por um número indeterminado de pessoas, sendo indiferente que sejam da comunidade jurídica do local onde ocorreu ou da população.

Ensina a doutrina que "não basta qualquer ofensa ou infração, por mais grave que seja, ou a autoridade do ofendido. A suspensão preventiva, por envolver imediatas repercussões no exercício profissional, apenas é admissível em situações notórias e públicas, cujas repercussões ultrapassem as pessoas envolvidas e causem dano à dignidade coletiva da advocacia".7

Cumpre também afirmar que é absolutamente prescindível que o fato seja veiculado por veículos de mídia conhecidos, como os jornais, canais de televisão, o rádio ou portais de notícia na internet, pois a norma é aberta, exigindo somente a ampla divulgação da matéria.

Nessa esteira, basta imaginar que em uma cidade de população média existam 10.000 advogados com cerca de 500 diferentes grupos no aplicativo "whatsapp": "Advocacia de família"; "Amigos Advogados"; "Penalistas" etc. Em determinado dia da semana, passam a circular em todos esses grupos vídeos que revelam um conhecido advogado da cidade, na saída do Fórum, espancando uma colega advogada adversa em um processo, após a realização de uma audiência de acordo onde acabaram discutindo perante o Juiz.   

Ora, é patente que o fato se tornará conhecido não só por toda a advocacia da cidade, mas também será divulgado em milhares de outros grupos nacionalmente. Uma vez tendo o evento se tornado fato notório, é dever do Tribunal de Ética agir rapidamente, até porque, como se verá à frente, exige-se a contemporaneidade para a suspensão preventiva.

Ainda sobre as mídias tradicionais e para reafirmar sua prescindibilidade para a suspensão preventiva, hoje é muito comum que referidos veículos de comunicação venham a obter suas matérias via das redes sociais, especialmente o whatsapp, cuja velocidade de divulgação de uma notícia é a uma das mais rápidas hoje conhecidas, ao menos no Brasil que tem predileção pelo aplicativo de mensagens. Assim, no exemplo, provavelmente haveria notícias posteriormente na mídia, todavia, não seriam exigíveis para a instauração do procedimento de suspensão preventiva.

A publicidade não pode ser provocada pela vítima ou terceiros com o objetivo de prejudicar o advogado, salvo se após a veiculação provocada a notícia passar a circular de forma livre. No exemplo fornecido, se a filmagem fosse realizada por uma colega vítima e divulgada em todos os seus grupos de "whatsapp", mas não fosse reverberada, repassada e não houvesse comentários e discussões sobre o fato, não estariam presentes os elementos aptos à suspensão preventiva. Em regra, todavia, todas as vezes em que o fato for suficientemente grave, a notícia irá inevitavelmente se espalhar de forma natural.

Contemporaneidade: também é elemento inarredável da suspensão preventiva a velocidade entre a ocorrência do fato e a ação do Tribunal de Ética e Disciplina, inclusive para a realização da Sessão Especial prevista no artigo 70, §3º, ou seja, não basta que o Tribunal instaure o procedimento, é necessário que consiga notificar o autor da ação e realize a Sessão em interregno temporal razoável em relação ao fato ou será injustificada a suspensão.

Exatamente por essa razão somos críticos à atual posição do CFOAB sobre a competência para a suspensão preventiva ser exclusivamente da Seccional que mantém a inscrição originária do advogado e não daquela onde o fato ocorreu, haja vista se tratar de competência concorrente, conforme já explicamos anteriormente (clique aqui para ler) sendo perfeitamente possível e até recomendável que a OAB detentora da originária inscrição só venha a agir em caso de omissão daquela onde o fato ocorreu.

Nesse sentido, será muito difícil que a OAB da inscrição mantenha a contemporaneidade se o fato ocorreu em outra Seccional e o advogado objeto da suspensão preventiva estiver preso ou mesmo arrolar testemunhas que presenciaram o evento, que, portanto, estarão no local onde ocorreu a infração e não onde reside a Seccional originária. É praticamente certo que, uma vez tendo pertinência a prova testemunhal e, portanto, não podendo ser indeferida, o requisito da contemporaneidade será perdido, em face da dificuldade da OAB intimar o advogado e/ou ouvir as testemunhas.

É claro que a Seccional poderia contar com a ajuda daquela onde o fato ocorreu, todavia, deve-se lembrar que não há no sistema OAB regulamentação efetiva sobre colaboração entre Seccionais, carta precatória administrativa ou atos análogos que viessem a suprir tal carência, além do que deve ser considerado o custo para tais ações.

Em conclusão, para a ocorrência da suspensão preventiva, devem estar presentes ao caso concreto os requisitos objetivos da competência, da correta intimação, do contraditório, a ampla defesa e o prazo legal; também os requisitos subjetivos da tipicidade administrativa, da lesividade, a publicidade negativa livre e a contemporaneidade.

*Fale com o advogado e envie suas dúvidas e temas que gostaria de ver por aqui. (Clique aqui)

__________

1 HUNGRIA, Nelson, 1891-1969. Comentários ao Código Penal, Volume I, Tomo II: Arts. 11 ao 27. Por Nelson Hungria e Heleno Fragoso. 5ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 1978, p. 20;

2 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, Volume 1. 26ª ed. rev e at. São Paulo: Saraiva, 2020, p. 140;

3 Decisões do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB, Seccional do Distrito Federal;

4 Processo 202208090, julgado em 25/08/2022, TED OAB/DF;

5 Processo 202000059, julgado em 09/03/2020, TED OAB/DF;

6 Processo 2022.004221-5, julgado em 20/09/2022, TED OAB/RO;

7 PAULO, Lôbo. Comentários ao Estatuto da Advocacia e da OAB. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 290;