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Criogenia e tutela post mortem da autodeterminação corporal

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Atualizado às 10:52

Texto de autoria de Livia Teixeira Leal

Em março de 2019, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça - STJ analisou curioso caso a respeito da possibilidade de destinação do corpo humano morto para congelamento e eventual ressuscitação no futuro, por meio de criogenia ou criopreservação. Na situação concreta examinada pela Corte, as filhas do falecido divergiam a respeito da destinação do corpo do pai. Enquanto a filha que havia convivido com o genitor por mais de trinta anos buscava mantê-lo submetido ao procedimento de criogenia nos Estados Unidos, sustentando ser esse o desejo manifestado em vida pelo pai, as irmãs pretendiam promover o sepultamento na forma tradicional no Brasil.

O Colegiado, na inexistência de previsão legal a respeito da criogenia em seres humanos, recorreu à analogia, nos termos do art. 4º da LINDB, considerando que o ordenamento jurídico brasileiro, além de proteger as disposições de última vontade do indivíduo, prevê formas distintas de destinação do corpo humano após a morte, além do sepultamento, como a cremação (art. 77, § 2º, da lei 6.015/73), a doação de órgãos (lei 9.434/1997) e o direcionamento do corpo para fins científicos ou altruísticos (art. 14 do Código Civil). Pontuou, ainda, que não há formalidade específica para a manifestação de última vontade do indivíduo, revelando-se possível aferir essa vontade por outros meios de prova legalmente admitidos, e que, na falta de manifestação expressa do sujeito em vida, presume-se que sua vontade seja aquela manifestada por seus familiares mais próximos.

O STJ considerou, por fim, que, pela longa convivência com o pai, a irmã que pretendia a manutenção do procedimento de criogenia era a que melhor poderia traduzir a vontade do genitor em relação a seus restos mortais e que, diante do transcurso de sete anos do falecimento do pai e do fato de o corpo já se encontrar submetido à técnica por período considerável, a situação jurídica já teria se consolidado no tempo1.

O caso ressalta a relevância do desenvolvimento de instrumentos de tutela da autodeterminação corporal após a morte do sujeito, considerando as múltiplas projeções do corpo decorrentes do desenvolvimento tecnológico e a necessidade de proteção jurídica post mortem do corpo, que se reflete sob o aspecto temporal.

Para além da investigação a respeito das possibilidades e limites para a disposição do próprio corpo humano, cabe perquirir a relação entre o corpo morto e a sua vinculação à pessoa falecida por meio da tutela post mortem de direitos da personalidade.

A temática possui significativo relevo diante da importância do corpo como relevante aspecto da identidade pessoal da pessoa humana2 e da dificuldade de se estabelecer uma base teórica sólida a respeito dos fundamentos da tutela post mortem de direitos da personalidade3, que acaba por acarretar, em alguns casos, certa fragilização da proteção da vontade manifestada pelo indivíduo em vida em tais casos.

Com efeito, se, para o direito brasileiro, há inegável correlação entre o fim da personalidade civil e a morte física ao estabelecer o art. 6º do Código Civil de 2002 que "[a] existência da pessoa natural termina com a morte", o término da personalidade não significa a cessação absoluta da tutela jurídica direcionada à proteção dos direitos dela decorrentes.

Nesse sentido, o ordenamento jurídico pátrio conta com os parágrafos únicos dos arts. 12 e 20 do Código Civil de 2002, que preveem os legitimados para pleitear a proteção post mortem dos direitos da personalidade do de cujus, e com as normas de proteção do cadáver, constantes nos arts. 211 e 212 do Código Penal, além daquelas direcionadas à regulação do transplante de órgãos, a exemplo do art. 4º da Lei nº 9.434/97, que dispõe sobre a retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoas falecidas para transplantes ou outra finalidade terapêutica, e ao registro público de óbitos, nos termos dos arts. 77 a 88 da lei 6.015/73.

De outro lado, apesar de o art. 14 do Código Civil reconhecer como válida a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte, o art. 4º da Lei nº 9.434/97 exige, para o transplante de órgãos de pessoa falecida, a autorização do cônjuge ou parente, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o 2º grau inclusive, o que pode acarretar possíveis divergências entre a vontade do doador e a de seus familiares, hipótese que evidencia a dificuldade prática de se preservar o desejo manifestado pelo sujeito em vida em alguns casos.

Impõe-se, nesse cenário, como observa Gustavo Tepedino, a superação da análise puramente estrutural e setorial da personalidade, pela qual se busca a sua proteção em termos apenas negativos, no sentido de repelir eventuais violações - técnica esta derivada do direito de propriedade4, - para que se considere tanto seu viés subjetivo, que se traduz na capacidade para ser sujeito de direitos, como seu viés objetivo, enquanto bem juridicamente relevante, merecedor de tutela jurídica5.

Nesse cenário, deve ser resguardada, sempre que possível, a vontade do titular a respeito do destino do seu corpo após a morte, como reflexo da sua autodeterminação corporal, consideradas as restrições legais, notadamente aquelas previstas pelo art. 13 do Código Civil, no que couber6. A respeito da questão, destaca-se o entendimento de Thamis Dalsenter, que observa que, "como qualquer outro ato de liberdade, a autonomia existencial pode sofrer limitações, no entanto elas só devem incidir excepcionalmente e apenas quando presentes requisitos que comprovem concretamente a necessidade de tal restrição. Por tal razão, a autonomia existencial só admite limites externos e não se volta à realização de interesses alheios aos do seu titular"7.

Também importa salientar que o poder-dever de tutela de situações jurídicas extrapatrimoniais conferido aos familiares da pessoa não deve excluir a possibilidade de que terceiros busquem tal proteção8. Nota-se que o próprio rol de legitimados para a tutela de direitos da personalidade não passou incólume a críticas por parte da doutrina, na medida em que o legislador nomeia justamente os herdeiros para a defesa da personalidade da pessoa morta. Neste sentido, observa Anderson Schreiber que o Código deveria ter evitado tal associação indevida, na medida em que tais direitos não seriam "coisas" transmissíveis por herança, de modo que a iniciativa deveria ter sido reconhecida a "qualquer pessoa que tivesse 'interesse legítimo' em ver protegida, nas circunstâncias concretas, a personalidade do morto"9.

Sob esse aspecto, impõe-se a preservação da vontade manifestada pela pessoa em vida quanto à destinação de seu corpo após a sua morte, ainda que, em algumas situações, essa vontade seja confrontada com o desejo dos familiares. No caso analisado pelo STJ, embora as irmãs pretendessem sepultar o corpo do falecido pai, prevaleceu o que a outra filha, que convivia de maneira mais próxima com o genitor, havia indicado como o desejo deste. Contudo, ainda que não fosse pleiteado por uma das filhas, tal direito deveria ser preservado como um interesse juridicamente tutelado, atrelado à autonomia existencial que se consubstancia na autodeterminação corporal, refletida também após a morte do sujeito.

É preciso considerar, ainda, como ressaltado pelo STJ, que a manifestação de vontade não se restringe às formas testamentárias tradicionais, ou mesmo o codicilo, podendo ser também veiculada por outros meios idôneos, sobretudo ao se considerar o desenvolvimento tecnológico e a recorrente prática de diversos atos por meios eletrônicos.

Em casos como o citado, o direito com frequência estará a um passo atrás, exigindo-se do intérprete um verdadeiro esforço interpretativo para reverter o descompasso entre a previsão legal e as demandas decorrentes de novas realidades, sobretudo quando os instrumentos já previstos pelo ordenamento jurídico forem insuficientes ou precisarem passar por um processo de releitura. Cabe, assim, considerando-se a promoção da pessoa humana como eixo norteador, resguardar a autodeterminação corporal do sujeito também sob um aspecto temporal, que se prolonga mesmo após a sua morte.

Livia Teixeira Leal é doutoranda e mestre em Direito Civil pela UERJ. Pós-graduada pela EMERJ. Professora da PUC-Rio, da EMERJ e da ESAP. Assessora no TJ/RJ.

__________

1 STJ, 3ª Turma, REsp 1.693.718/RJ, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julg. 26.03.2019, DJe 04.04.2019.

2 "A concepção da identidade como um processo complexo e dinâmico, na forma acima, evidencia a sua realização no corpo, que pode ser entendido como expressão material da identidade de cada indivíduo, fiel tradutor de sua biografia". BARBOZA, Heloisa Helena. Disposição do próprio corpo em face da bioética: o caso dos transexuais. In: Débora Gozzo; Wilson Ricardo Ligiera. (Org.). Bioética e Direitos Fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 133.

3 A doutrina apresenta fundamentos variados para a tutela post mortem de direitos da personalidade. Alguns autores defendem uma espécie de extensão desses direitos após a morte. Na visão de Diogo Leite de Campos, os herdeiros não defenderiam um interesse próprio, mas sim um interesse do falecido, de modo que a personalidade jurídica se prolongaria para depois da morte (CAMPOS, Diogo Leite de. Lições de direitos da personalidade. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Coimbra, n. 67, 1991). Pela teoria clássica, contudo, que possui como parâmetro a relação jurídica intersubjetiva, ou seja, o vínculo entre dois ou mais sujeitos, os direitos da personalidade não seriam transmissíveis, extinguindo-se com a morte do titular. A tutela jurídica desses direitos após a morte do titular poderia, então, ser considerada a partir de óticas diversas, seja como um direito da família atingida pela violação aos direitos do parente morto, como um reflexo post mortem dos direitos da personalidade, como uma espécie de legitimação processual conferida aos familiares ou até mesmo sob uma concepção baseada no interesse público em impedir a violação de tais valores (A respeito do tema, ver: SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Honra e imagem do morto? Revista de Informação Legislativa, Brasília a. 44, n. 175 jul./set. 2007). Pietro Perlingieri, reconhecendo que além da relação jurídica há situações anômalas que dispensam a intersubjetividade, nas quais o sujeito consistiria em elemento acidental, entende que haveria, no caso dos direitos da personalidade, um centro de interesses a ser tutelado mesmo após a morte do sujeito, enquanto tais interesses fossem relevantes socialmente (PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao Direito Civil Constitucional. 3. ed. Tradução de Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 115). Para Maria de Fátima Freire Sá e Bruno Torquato, a tutela post mortem dos direitos da personalidade estaria pautada na esfera de não-liberdade infringida por alguém, ou seja, ter-se-ia nesses casos o deferimento de uma legitimidade processual para a defesa de uma situação jurídica de dever, na qual se insere o morto, em razão do juízo de reprovabilidade objetivada normativamente (SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Honra e imagem do morto? Revista de Informação Legislativa, Brasília a. 44, n. 175 jul./set. 2007, p. 122).

4 TEPEDINO, Gustavo. Crise de fontes normativas e técnica legislativa na parte geral do Código Civil de 2002. In: TEPEDINO, Gustavo (coord.). A parte geral do novo Código Civil. Estudos na perspectiva civil-constitucional. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. XXIII.

5 TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 27.

6 Art. 13, CC/02. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.

Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial.

7 CASTRO, Thamis Dalsenter Viveiros de. A função da cláusula de bons costumes no Direito Civil e a teoria tríplice da autonomia privada existencial. Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil, Belo Horizonte, v. 14, p. 99-125, out./dez. 2017, p. 102.

8 Destaca Ana Luiza Nevares: "poder-se-ia imaginar casos excepcionais nos quais seria admitida a tutela da personalidade post mortem do falecido por pessoa diversa de seus parentes enumerados nos dispositivos já citados, quando restasse cabalmente configurado o seu interesse de agir diante do caso concreto, tudo em prol da ampla proteção da memória de uma pessoa, sendo tais hipóteses pertinentes principalmente quando o falecido não deixou sucessores, ou quando aqueles deixados já faleceram ou se encontram incapazes. Apesar de não existir propriamente uma obrigatoriedade de ação, há, por outro lado, um poder de controle quanto à tutela da personalidade da pessoa falecida, que poderá ser exercido pelos próprios titulares do poder-dever em relação à ação de seus pares". NEVARES, Ana Luiza Maia. A função promocional do testamento: tendências do Direito Sucessório. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 132.

9 SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 156.