Precisamos de mais leis sobre responsabilidade civil? Uma reflexão entre a inconstitucionalidade e desnecessidade
terça-feira, 18 de março de 2025
Atualizado às 07:52
Recentemente dois projetos de lei chamaram a atenção dos estudiosos de Responsabilidade Civil Médica. O 1º PL de deputado estadual capixaba Coronel Weliton trata da Responsabilidade Civil Médica e tem como foco duas frentes: serviços médicos públicos e serviços médicos privados. Já o outro PL de autoria do deputado Aguinaldo Ribeiro, trata da responsabilidade que motoristas envolvidos em acidente de trânsito que estiverem sob efeito de álcool ou outra droga paguem integralmente os danos causados à vítima, compreendendo eventual indenização relativo aos "danos materiais e morais" e possível pensão vitalícia.
O PL 670/24 capixaba
O PL do deputado estadual Coronel Welinton "visa proteger tanto os pacientes quanto os profissionais de saúde ao lidar com casos de supostas falhas médicas. Ao estabelecer a responsabilidade inicial das instituições de saúde, esta Lei promove um ambiente mais justo e seguro para todos, incentivando as organizações a adotarem medidas preventivas, como treinamento contínuo e fornecimento adequado de recursos". Ainda de acordo com o PL, "esta Lei não exime os profissionais de saúde de responsabilidade, mas estabelece a análise inicial das falhas sistêmicas, buscando evitar penalizações injustas ou prematuras aos trabalhadores da saúde".
Em relação ao serviço público, de acordo com o projeto, os médicos do serviço público de saúde não poderão ser inicialmente responsabilizados, pois há uma suposta prematuridade nas acusações de "erro médico", razão pela qual se mostra justificável que o Estado seja inicialmente demandado. Posteriormente, o profissional seria demandado em caso de condenação do Estado.
O "problema" da referida proposta é que ela esquece da existência do Tema 940 do STF que trata justamente da temática:
Tema 940 - Responsabilidade civil subjetiva do agente público por danos causados a terceiros, no exercício de atividade pública.
A teor do disposto no art. 37, § 6º, da CF/88, a ação por danos causados por agente público deve ser ajuizada contra o Estado ou a pessoa jurídica de Direito Privado prestadora de serviço público, sendo parte ilegítima para a ação o autor do ato, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
Ou seja, conforme entendimento do STF, aplica-se o princípio da dupla garantia, de modo que o servidor público não pode ser diretamente demandado por usuário do serviço de saúde. O usuário deve demandar o Estado ou prestador de serviço público, na medida em que o agente público não atua em nome próprio, mas atua como se Estado fosse, observada a teoria do órgão.
Nesse sentido, o PL em relação aos profissionais de saúde atuantes no serviço público é totalmente desnecessário, pois não há nenhuma inovação no sistema jurídico brasileiro.
Já em relação aos aspectos relativos aos profissionais de saúde atuantes no serviço privado, de fato, há uma excessiva litigância no Brasil em face de médicos, porém, esse argumento, per si, não pode ser utilizado para superar itens de ordem processual.
Genival Veloso destaca que "é preciso desarmar as pessoas de um certo preconceito de que todo resultado atípico e indesejado no exercício da medicina é de responsabilidade do médico"1 e que muitos "erros" tem origem estrutural ou na falta de condições para o trabalho2. Na mesma linha, Vera Lucia Raposo destaca que:
Nem todo efeito adverso suscetível de ocorrer no âmbito de um ato médico traduz uma falta ética. O efeito adverso é um conceito muito lato, que pretende exprimir toda a ocorrência negativa sobrevinda para além da vontade do médico, que surja como consequência do ato médico e não do estado clínico que lhe deu origem, e que acaba por causar algum tipo de dano ao paciente.3
De boa intenção, o inferno está cheio, mas não é possível compactuar com a proposta legislativa de retirar a legitimidade do médico para figurar no polo passivo das demandas médicas. O art. 7º, parágrafo único, e art. 25, § 1° do CDC fixam a responsabilidade solidária dos envolvidos. Desta forma, conforme reconhecido pela legislação, doutrina e jurisprudência, pessoa jurídica e pessoa física, podem responder solidariamente caso o profissional atue como preposto do serviço médico-hospitalar.
Apesar de não se desconhecer o impacto imagético sobre a honra, imagem e bom nome em razão da existência de processos judiciais frívolos, isso não pode ser uma justificativa para obstaculizar o direito de ação do paciente e de restringir contra quem ele deseja litigar.
O fato de termos imputações de ordem estrutural ou violação a obrigações hospitalares aos médicos é uma realidade. É possível que o médico seja processado por uma falha do serviço hospitalar que não tenha contribuído para o resultado adverso? Sim. É provável que a ação em desfavor do médico seja julgada improcedente por falhas estruturais/hospitalares? Sim.
Além do obstáculo ao direito de ação, considerando que o PL é oriundo de uma Assembleia Legislativa estadual, tem-se flagrante inconstitucionalidade. Não pode uma lei estadual buscar alterar texto do CDC ou mesmo de legislar sobre Direito Processual, tema privativo da União, conforme art. 22, I da CF/88.
PL 3.125/21 - PL sobre a responsabilidade nos acidentes de trânsito em razão do uso de álcool ou substância psicoativa
Já o projeto de 3.125/21, aprovado na Câmara em 10/12/24, pretende alterar o CC e Código de Trânsito para inserir os seguintes textos:
CC
Art. 927-A. Aquele que causar acidente de trânsito com dolo ou culpa e que esteja sob a influência de álcool ou qualquer outra substância psicoativa fica obrigado a reparação integral dos danos causados à vítima.
Código de Trânsito Brasileiro
Art. 165..............................................................................
Infração - gravíssima;
Penalidade - multa (dez vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses.
Medida administrativa - recolhimento do documento de habilitação e retenção do veículo, observado o disposto no § 4o do art. 270 da Lei no 9.503, de 23 de setembro de 1997 - do Código de Trânsito Brasileiro.
§ 1º Aplica-se em dobro a multa prevista no caput em caso de reincidência no período de até 12 (doze) meses.
§ 2º Aquele que causar acidente de trânsito com dolo ou culpa e que esteja sob a influência de álcool ou qualquer outra substância psicoativa fica obrigado a reparação integral dos danos causados à vítima.
§ 3º Na fixação da pena, o juiz ao analisar o caso concreto, determinará o valor da indenização para a reparação dos danos materiais e morais causados à vítima.
§ 4º Poderá ser fixada cumulativamente, no entendimento do magistrado, pensão vitalícia no caso de imobilidade permanente da vítima ou à família, na hipótese de a vítima ser provedora do sustento familiar.
Ocorre que, se respeitado o texto já constante no CC, notadamente os arts. 186, 927, 944 e seguintes, torna-se desnecessária a proposta, posto que a atual lei civil já serve como resposta para as demandas postas.
Ou seja, cria-se um dispositivo específico para acidentes de trânsito quando a regra geral trazida pelo CC já responde de forma eficaz ao problema posto. Em verdade, o problema brasileiro não está na construção legal-jurisprudencial-doutrinária do princípio da reparação integral, mas na necessidade de efetivá-lo.
Prever normativamente o que já está previsto significa termos uma lei para cumprir outra lei. Caso o PL vire uma lei, seria necessária mais uma lei para cumpri-la? Teríamos um ciclo sem fim de produção legislativa autorreferente que não contribui efetivamente para realidade social. Uma simples PL para justificar uma produtividade quantitativa sem nenhum retorno qualitativo.
Ao final, o que se observa é que não precisamos de uma produção legislativa quantitativamente melhor, mas de uma produção legislativa qualitativa.
__________
1 FRANÇA, Genival Veloso. Comentários ao Código de Ética Médica. 6 ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2010. p. 58.
2 França, Genival Veloso de. Direito Médico. 15 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 208
3 RAPOSO, Vera Lúcia. Do ato médico ao problema jurídico. Coimbra: Almedina, 2013.p. 14