Abandono afetivo e as causas de pedir nos danos morais
terça-feira, 18 de fevereiro de 2025
Atualizado em 17 de fevereiro de 2025 08:55
1. Introdução
Ao analisarmos os conceitos de afeto e amor, os dicionários indicam que ambos estão relacionados a sentimentos de apreço, vínculo e estima, frequentemente associados às relações familiares e interpessoais. Contudo, no campo jurídico, esses conceitos adquirem contornos específicos, especialmente no debate sobre abandono afetivo. Uma questão essencial emerge desse debate: se a jurisprudência não reconhece a obrigatoriedade de amar - seja no vínculo entre pais e filhos ou no abandono afetivo inverso -, como é possível responsabilizar alguém civilmente por abandono afetivo? Em outras palavras, se o amor não é um dever jurídico, qual seria, então, a causa legítima para a indenização por danos morais?
O STJ tem consolidado o entendimento de que o afeto, em sua dimensão objetiva, constitui um bem jurídico tutelado, especialmente no contexto da filiação socioafetiva. No entanto, ao afastar a imposição de um dever de amar, o Tribunal destaca a centralidade do dever de cuidado. Esse dever, alçado à categoria de obrigação caso descumprido, desassocia o afeto de sua subjetividade intrínseca e desloca o debate para ações concretas e verificáveis, como presença, assistência material e emocional, e tratamento equitativo entre os filhos.
Nestas linhas, exploraremos a distinção entre a não obrigatoriedade do amor e a violação ao dever de cuidado como causas de pedir em ações de abandono afetivo. Argumenta-se que, embora o amor permaneça no campo da subjetividade e do metajurídico, o cuidado emerge como um elemento objetivo e mensurável, cuja inobservância pode gerar dano moral. A partir dessa premissa, analisaremos os fundamentos que sustentam o pedido de indenização por abandono afetivo, evidenciando que a reparação se justifica não pela ausência de amor, mas pela violação de deveres jurídicos claros e concretos.
Causa de pedir
Independentemente do bem da vida que busca o autor através do processo judicial, aquele tem de dizer por quê.1 De sorte que deve o autor da ação apresentar em juízo os motivos que embasam determinada pretensão, deve, portanto, apresentar de forma concreta os fundamentos de fato para que o juiz decida sobre o direito.2
É a previsão trazida pelo Código de Processo Civil.3 De sorte que embora o pedido de seja de danos morais, a causa de pedir deve ser bem avaliada pois, se o fundamento for a falta de amor ou então a falta de um cuidado mínimo, veremos que as consequências jurídicas serão diferentes.
Afeto como bem jurídico
Em sede de paternidade sócio afetiva, o STJ há muito entende que o afeto é um dos pressupostos a configurar a condição de filho.4
Da não obrigatoriedade do amor e as discussões relativas ao abandono afetivo e ao dever de cuidado o STJ nos apresenta a seguinte diferença:
Alçando-se, no entanto, o cuidado à categoria de obrigação legal supera-se o grande empeço sempre declinado quando se discute o abandono afetivo - a impossibilidade de se obrigar a amar. Aqui não se fala ou se discute o amar e, sim, a imposição biológica e legal de cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerarem ou adotarem filhos. O amor diz respeito à motivação, questão que refoge os lindes legais, situando-se, pela sua subjetividade e impossibilidade de precisa materialização, no universo metajurídico da filosofia, da psicologia ou da religião.
O cuidado, distintamente, é tisnado por elementos objetivos, distinguindo-se do amar pela possibilidade de verificação e comprovação de seu cumprimento, que exsurge da avaliação de ações concretas: presença; contatos, mesmo que não presenciais; ações voluntárias em favor da prole; comparações entre o tratamento dado aos demais filhos - quando existirem -, entre outras fórmulas possíveis que serão trazidas à apreciação do julgador, pelas partes. Em suma, amar é faculdade, cuidar é dever.5
Conclusão
Uma linha tênue pode separar todo um cuidado, um carinho, uma assistência, de um pai para com o filho, da questão do amor. E o nexo de causalidade entre abandono e danos imateriais reside justamente na violação dos primeiros (cuidado, um carinho, uma assistência), e não quanto ao segundo (falta de amor). Contudo, e reiteramos, o afeto (abandono afetivo) é a discussão principal para o tipo de ação que tratamos neste artigo.
A afirmação acima diz respeito, portanto, às causas de pedir, embora o pedido seja o mesmo: dano moral. De sorte que não se harmoniza com o entendimento do STJ a causa de pedir descumprimento de obrigação de amar, mas sim e ao o que importa, a causa violação ao dever de cuidado: aqui é que a pretensão deve se concentrar conforme nos demonstra o entendimento do STJ.
1 ASSIS, Araken de. Processo civil brasileiro: parte especial: procedimento comum (da demanda à coisa julgada). v. IV. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022, p. 63.
2 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de processo civil comentado. 16 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 964.
3 Art. 319. A petição inicial indicará:
III - o fato e os fundamentos jurídicos do pedido.
4 Ementa: RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE ADOÇÃO UNILATERAL DE MAIOR AJUIZADA PELO COMPANHEIRO DA GENITORA. DIFERENÇA MÍNIMA DE IDADE ENTRE ADOTANTE E ADOTANDO. MITIGAÇÃO. POSSIBILIDADE.
1. Nos termos do § 1º do art. 41 do ECA, o padrasto (ou a madrasta) pode adotar o enteado durante a constância do casamento ou da união estável (ou até mesmo após), uma vez demonstrada a existência de liame socioafetivo consubstanciador de relação parental concretamente vivenciada pelas partes envolvidas, de forma pública, contínua, estável e duradoura.
2. Hipótese em que o padrasto (nascido em 20/3/80) requer a adoção de sua enteada (nascida em 3/9/92, contando, atualmente, com 27 anos de idade), alegando exercer a paternidade afetiva desde os 13 anos da adotanda, momento em que iniciada a união estável com sua mãe biológica (2/9/06), pleito que se enquadra, portanto, na norma especial supracitada.
3. Nada obstante, é certo que o deferimento da adoção reclama o atendimento a requisitos pessoais - relativos ao adotante e ao adotando - e formais. Entre os requisitos pessoais, insere-se a exigência de o adotante ser, pelo menos, 16 anos mais velho que o adotando (§ 3º do art. 42 do ECA).
4. A ratio essendi da referida imposição legal tem por base o princípio de que a adoção deve imitar a natureza (adoptio natura imitatur). Ou seja: a diferença de idade na adoção tem por escopo, principalmente, assegurar a semelhança com a filiação biológica, viabilizando o pleno desenvolvimento do afeto estritamente maternal ou paternal e, de outro lado, dificultando a utilização do instituto para motivos escusos, a exemplo da dissimulação de interesse sexual por menor de idade.
5. Extraindo-se o citado conteúdo social da norma e tendo em vista as peculiaridades do caso concreto, revela-se possível mitigar o requisito de diferença etária entre adotante e adotanda maior de idade, que defendem a existência de vínculo de paternidade socioafetiva consolidado há anos entre ambos, em decorrência de união estável estabelecida entre o autor e a mãe biológica, que inclusive concorda com a adoção unilateral.
6. Apesar de o adotante ser apenas 12 anos mais velho que a adotanda, verifica-se que a hipótese não corresponde a pedido de adoção anterior à consolidação de uma relação paterno-filial, o que, em linha de princípio, justificaria a observância rigorosa do requisito legal.
7. À luz da causa de pedir deduzida na inicial de adoção, não se constata o objetivo de se instituir uma família artificial - mediante o desvirtuamento da ordem natural das coisas -, tampouco de se criar situação jurídica capaz de causar prejuízo psicológico à adotanda, mas sim o intuito de tornar oficial a filiação baseada no afeto emanado da convivência familiar estável e qualificada.
8. Nesse quadro, uma vez concebido o afeto como o elemento relevante para o estabelecimento da parentalidade e à luz das especificidades narradas na exordial, o pedido de adoção deduzido pelo padrasto - com o consentimento da adotanda e de sua mãe biológica (atualmente, esposa do autor) - não poderia ter sido indeferido sem a devida instrução probatória (voltada à demonstração da existência ou não de relação paterno-filial socioafetiva no caso), revelando-se cabível, portanto, a mitigação do requisito de diferença mínima de idade previsto no § 3º do art. 42 do ECA.
9. Recurso especial provido. (BRASIL. STJ. Quarta turma. REsp 1.717.167/DF. Rel. min.: Luis Felipe Salomão. Julgado em: 11/2/20. Disponível aqui. Acesso em: 14 jan. 2025).
5 Ementa: CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE.
1 Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família.
2 O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88.
3 Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia - de cuidado - importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por abandono psicológico.
4 Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social.
5 A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes - por demandarem revolvimento de matéria fática - não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso especial.
6 A alteração do valor fixado a título de compensação por danos morais é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada.
7 Recurso especial parcialmente provido. (BRASIL. STJ. Terceira turma. REsp 1.159.242/SP. Rel. Min.: Nancy Andrighi. Julgado em: 24/4/12. Disponível aqui. Acesso e, 14 jan. 2025).
6 ASSIS, Araken de. Processo civil brasileiro: parte especial: procedimento comum (da demanda à coisa julgada). v. IV. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022.
7 BRASIL. Código de Processo Civil. Lei 13.105, de 16 de março de 2015. DF, 16 mar. 2015. Disponível aqui.
8 BRASIL. STJ. Quarta turma. REsp 1.717.167/DF. Rel. min.: Luis Felipe Salomão. Julgado em: 11/2/20. Disponível aqui. Acesso em: 14 jan. 2025
9 BRASIL. STJ. Terceira turma. REsp 1.159.242/SP. Rel. min.: Nancy Andrighi. Julgado em: 24/4/12. Disponível aqui. Acesso e, 14 jan. 2025.
10 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de processo civil comentado. 16 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.