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Eficácia temporal da lei 15.040/24: Limites à sua aplicação imediata aos contratos de seguro em vigor

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

Atualizado às 12:40

No Direito Contratual, a sucessão de leis no tempo muitas vezes suscita controvérsias complexas sobre a incidência da nova regulamentação heterônoma sobre os contratos cujo nascimento se deu sob a vigência do regime anterior. Isso se dá porque, como diria Serpa Lopes, os contratos muitas vezes projetam seus efeitos "durante largo tempo, em etapas continuadas, como num filme cinematográfico"1.

Com o contrato de seguro não é diferente, pois, em ocorrendo alteração normativa no curso de sua vigência, podem surgir dúvidas, por exemplo, quanto às regras aplicáveis à regulação de determinado sinistro.

No final do último ano, como se sabe, o Congresso Nacional aprovou a lei 15.040/24, regulamentando, de forma minuciosa, os contratos de seguro, estabelecendo, em seu art. 134, vacatio legis de 1 (um) ano, prazo findo o qual a nova regulamentação finalmente entrará em vigor. Nesse contexto, a questão a ser examinada é a seguinte: após o início de sua vigência, deverá a lei 15.040/24 reger todo e qualquer contrato de seguro ou apenas aqueles daí em diante celebrados?

O ponto de partida da controvérsia reside na garantia constitucional do respeito ao ato jurídico perfeito (CF, art. 5º, XXXVI), como possível limite à incidência imediata da nova lei. Em sede legal, "reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou".2

A garantia de intangibilidade do ato jurídico perfeito está umbilicalmente ligada à segurança jurídica, conferindo-se previsibilidade a respeito das regras jurídicas aplicáveis aos efeitos de determinado ato.3 Desse modo, no direito contratual, a nova lei não pode retroagir de modo a alterar situações jurídicas consolidadas, legitimamente constituídas sob a égide de determinado regime.4

Contudo, à segurança jurídica materializada na garantia do ato jurídico perfeito contrapõe-se a própria ideia de justiça, consubstanciada no novo ato normativo, cuja observância impõe, tão logo possível, a observância imediata do novo regime, fruto do consenso democrático.5 Pretende-se, a seguir, propor algumas reflexões a fim de equacionar essa tensão.

Em primeiro lugar, no que tange à análise da validade do contrato ou de parte de seu conteúdo, não há dúvidas de que sobrelevará a garantia da segurança jurídica. Deverá o intérprete, nesse caso, ater-se tão-somente ao regime jurídico vigente quando da constituição do vínculo contratual (tempus regit actum). Consoante já reconheceu o Superior Tribunal de Justiça: "A validade do negócio jurídico sujeita-se à lei sob cuja égide foi ele celebrado. A lei posterior não invalida as relações de direito válidas nem avigora as inválidas definitivamente constituídas"6.

Logo, as disposições da lei 15.040/24 que estabeleçam requisitos de validade para o contrato de seguro ou determinadas cláusulas não deverão reger, retroativamente, contratos de seguro constituídos anteriormente à sua entrada em vigor.

Eis um exemplo de aplicação de tal premissa: o art. 129, caput, da Lei n. 15.040/24 determina que a resolução de litígios securitários por meios alternativos é legítima, contanto que feita no Brasil e submetida às regras do direito brasileiro. Tal vedação não poderá, contudo, retroagir para invalidar eventual cláusula compromissória de arbitragem anteriormente avençada que pudesse contrariá-la.

Por outro lado, pode-se questionar se a garantia do respeito ao ato jurídico perfeito poderia conviver, de forma harmônica, com a incidência da nova lei tão-somente sobre os efeitos futuros do contrato pretérito. A questão ganha relevância considerando, notadamente, as mudanças disruptivas promovidas no procedimento de regulação e liquidação de sinistros a cargo das seguradoras.

Em tal cenário, discute-se se haveria retroatividade propriamente dita - embora em menor alcance, de forma mitigada -, o que iria de encontro à garantia constitucional, ou apenas a incidência imediata da nova lei, projetando-se sobre as situações jurídicas vindouras.7

Ao longo da história constitucional brasileira, diversas leis que pretendiam regulamentar os efeitos de contratos celebrados anteriormente à sua entrada em vigor foram consideradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, a exemplo da regulamentação dos planos de saúde8 e das operações de crédito rural.9

Com efeito, o julgamento paradigmático sobre o tema10 ocorreu nos primeiros anos de vigência da Constituição Federal de 1988 e decorreu da propositura de Ação Direta de Inconstitucionalidade para impugnar dispositivos da Medida Provisória n. 294, publicada em 1º de fevereiro de 1991, convertida em seguida na lei 8.177, de 1º de março de 1991. Os atos normativos impugnados alteravam, a partir de fevereiro de 1991, a forma de atualização dos saldos devedores e prestações dos contratos celebrados até novembro de 1986 entre as entidades integrantes do sistema financeiro de habitação e particulares.

Em voto vencedor, o Ministro Moreira Alves observou que, "se a lei alcançar os efeitos futuros de contratos celebrados anteriormente a ela, será essa lei retroativa porque vai interferir na causa, que é um ato ou fato ocorrido no passado". A compreensão está em consonância com a lição de Carlos Maximiliano, transcrita ao longo do julgado: "Os preceitos sob cujo império se concretizou um ato ou fato estendem o seu domínio sobre as consequências respectivas; a lei nova não atinge consequências que, segundo a anterior, deviam derivar da existência de determinado ato, fato ou relação jurídica, ou, melhor, que se unem à sua causa como um corolário necessário e direto."11

No âmbito do contrato de seguro, a regulação e a liquidação de sinistros, embora possam ser caracterizadas como um "procedimento" a cargo da seguradora - como de fato o são -, consistem no cumprimento de um feixe de obrigações cuja origem é o contrato de seguro. Parece-nos, portanto, que podem ser caracterizadas como "efeitos" do contrato de seguro, o que atrairia a incidência da lei em vigor à época de sua celebração, de acordo com o julgado paradigmático do STF que se debruçou sobre a extensão da garantia prevista no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal. 

Destaca-se, contudo, a qualidade de norte interpretativo da nova lei a todas as situações e ou controvérsias que envolvam os contratos de seguro. Se o legislador criou - dentro do processo legislativo e plenamente democrático - a limitação temporal para a conclusão da regulação do sinistro, sob pena de decadência do direito da seguradora de negar a cobertura, é porque compreendeu que a agilidade do procedimento é elemento essencial para o atendimento do interesse do segurado que, em última análise, é o que justifica a contratação do seguro.12

Com efeito, ao longo de diversos dispositivos, a Lei n. 15.040/24 sequer incorreu em inovação propriamente dita, mas tão-somente ratificou, de forma expressa, entendimentos doutrinários e jurisprudenciais que já vinham sendo construídos, de longa data, à luz do regime legal anterior. Exemplifica-se.

No que tange à regulação e à liquidação de sinistros, pode-se dizer que, em alguma medida, a lei 15.040/24 veio a densificar as consequências da boa-fé no âmbito de tais estágios da relação securitária. Já no regime anterior, muito embora o Código Civil não os regulasse expressamente, a doutrina já vinha empreendendo esforços para definir as premissas que deveriam presidi-los, notadamente à luz da boa-fé. Nesse sentido, por exemplo, observava Judith Martins-Costa, ainda àquela época: 

Essa é uma fase delicada, em que a boa-fé atua com especialíssima intensidade, pois a regulação do sinistro configura, ao mesmo tempo, um momento da relação contratual marcado por "fortes elementos de conflitos, os quais representam, necessariamente, interesses contrapostos" e procedimento investigativo de interesse comum do segurado e do segurador, consistindo em parte integrante da prestação devida pelo segurador ao titular da pretensão indenizatória.

(...)

[N]ão é apenas na criação de deveres que atua a boa-fé. Também desempenha função integrativa, para preencher lacunas contratuais que só se apresentam como tais no momento posterior ao sinistro e função corretora, atuando como limite ao exercício jurídico disfuncional, diante de "práticas oportunistas e vexatórias na fase da gestão e liquidação do sinistro".13 

Outro exemplo semelhante consiste na disciplina do agravamento do risco segurado ao longo da relação contratual. O instituto era regulado em termos mais genéricos pelo Código Civil e, por essa razão, coube à doutrina e à jurisprudência, paulatinamente, delimitar o seu alcance em termos mais precisos.

À medida do tempo, o Superior Tribunal de Justiça consolidou entendimento, aplicável de forma emblemática nos casos de embriaguez nos seguros de automóvel, no sentido de que o agravamento do risco, por si só, não é hábil a exonerar o segurador, devendo guardar nexo de causalidade com o sinistro.14 Tal entendimento também foi prestigiado em sede doutrinária, valendo citar, a esse respeito, o Enunciado n. 585, aprovado na VII Jornada de Direito Civil: "Impõe-se o pagamento de indenização do seguro mesmo diante de condutas, omissões ou declarações ambíguas do segurado que não guardem relação com o sinistro".

Essa premissa - a respeito da exigência de correlação causal entre o agravamento do risco e o sinistro, apta a exonerar o segurador - foi expressamente acolhida pela lei 15.040/24, cujo art. 16 dispõe: "Sobrevindo o sinistro, a seguradora somente poderá recusar-se a indenizar caso prove o nexo causal entre o relevante agravamento do risco e o sinistro caracterizado".

Em vista das reflexões feitas ao longo deste texto, parece-nos possível concluir que, em observância à garantia constitucional prevista no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal - e em consonância com a interpretação que sucessivos julgados do Supremo Tribunal Federal lhe têm conferido -, a lei 15.040/24 não é, a rigor, aplicável aos contratos de seguro celebrados antes de sua vigência, notadamente em relação ao exame de sua validade, dos seus efeitos e das obrigações assumidas entre as partes.

Por outro lado, mesmo no âmbito das relações securitárias iniciadas antes da vigência da lei 15.040/24, não se descarta em absoluto a possibilidade de serem invocados os seus dispositivos como norte interpretativo, especialmente quando refletirem entendimentos ou práticas já consagradas no mercado segurador.

__________

1 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil, v. I. 5. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1971. p. 171-172.

2 Segundo disposto no art. 6º, § 1º, da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (decreto-lei 4.657/42, com a redação da Lei n. 12.376/10).

3 Segundo José Joaquim Gomes Canotilho, "o homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsavelmente sua vida. Por isso, desde cedo se consideraram os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança como elementos constitutivos do Estado de direto" (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2000. p. 257).

4 "Os preceitos sob cujo império se concretizou um ato ou fato estendem o seu domínio sobre as consequências respectivas; a lei nova não atinge consequências que, segundo a anterior, deviam derivar da existência de determinado ato, fato ou relação jurídica, ou melhor, que se unem à sua causa como um corolário necessário e direto" (MAXIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal ou teoria da retroatividade das leis. 2. ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1955. p. 28).

5 Segundo Gustavo Tepedino e Milena Donato Oliva: "Quanto aos conflitos de lei no tempo, verifica-se que a alteração legislativa pode vir, em tese, a afetar as relações jurídicas constituídas sob o império da lei anterior. Confrontam-se, então, mais uma vez, duas preocupações fundamentais do Direito: justiça e segurança. De um lado, há de se exigir, tão logo entra em vigor, o cumprimento da lei nova, que traduz, nos regimes democráticos, decisão da maioria quanto ao padrão de comportamento a ser adotado e quanto à reprovação do modelo de conduta adotado pela lei revogada (imperativo de justiça). De outro lado, contudo, exige-se respeito às situações jurídicas constituídas sob o regime anterior, em atendimento ao padrão de conduta exigível à época de sua constituição (imperativo de segurança)" (OLIVA, Milena Donato; TEPEDINO, Gustavo. Fundamentos do direito civil: teoria geral do direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 88).

6 STJ, REsp 1.273.955/RN, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, j. em 24/04/2014, DJe 15/08/2014.

7 Segundo Gustavo Tepedino e Milena Donato Oliva: "(...) a retroatividade mínima se confunde com o efeito imediato da lei, respeitando o direito adquirido e atingindo tão-somente o ato jurídico perfeito quanto aos seus efeitos futuros, isto é, implicando a aplicação da lei nova às consequências (que a sucederem) de atos jurídicos celebrados sob a lei anterior" (OLIVA, Milena Donato; TEPEDINO, Gustavo. Fundamentos do direito civil: teoria geral do direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 93).

8 "Articula-se, na petição inicial, quanto aos artigos 10, § 2º, e 35-E da lei 9.656/1998; e 2º da Medida Provisória nº 2.177-44/2001, com a ofensa ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito. (...) Os dispositivos em análise preveem a incidência das novas regras relativas aos planos de saúde em contratos celebrados anteriormente à vigência do diploma. A norma destoa do Texto Maior. A vida democrática pressupõe segurança jurídica, e esta não se coaduna com o afastamento de ato jurídico perfeito e acabado mediante aplicação de lei nova. É o que decorre do inciso XXXVI do artigo 5º da Constituição Federal (...). É impróprio inserir nas relações contratuais avençadas em regime legal específico novas disposições, sequer previstas pelas partes quando da manifestação de vontade. (...) A toda evidência, o legislador (...) extrapolou as balizas da Carta Federal, pretendendo substituir-se à vontade dos contratantes. Salta aos olhos a inconstitucionalidade" (STF, ADI 1.931/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, j. em 07/02/2018, DJ de 08/06/2018).

9 "Lei 8.177/1991. Incidência em contratos anteriores à promulgação do diploma normativo com a fixação de novos índices de correção. (...) A norma atacada, ao estabelecer a incidência da TR em substituição do IPC nas operações de crédito rural, contratadas junto às instituições financeiras, com recursos oriundos de depósitos à vista, sem qualquer ressalva, tem o condão de alcançar ajustes celebrados antes do advento da mencionada Lei. Disposição que se afigura incompatível com a garantia fundamental de proteção ao ato jurídico perfeito, pois tem o potencial de alterar uma relação jurídica preexistente e consolidada, em frontal violação ao art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal" (STF, ADI 3.005/DF, Pleno, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. em 01/07/2020, DJ de 13/11/2020).

10 STF, ADI 493/DF, Pleno, Rel. Min. Moreira Alves, j. em 25/06/1992, DJ de 04/09/1992.

11 MAXIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal ou teoria da retroatividade das leis. 2. ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1955. p. 28.

12 Sobre o tema do interesse no contrato de seguro, confira-se: WILLCOX, Victor. Interesse legítimo no contrato de seguro à luz do direito brasileiro (no prelo). São Paulo: Editora Roncarati, 2024.

13 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. 2. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. Edição Kindle.

14 "Com relação especificamente ao seguro de automóvel e à embriaguez ao volante, não basta a constatação de que o condutor ingeriu bebida alcóolica para afastar o direito à garantia. Deve ser demonstrado que o agravamento do risco objeto do contrato se deu porque o segurado estava em estado de ebriedade, e essa condição foi causa determinante para a ocorrência do sinistro (...)" (STJ, AgRg no AREsp 411.567/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, j. em 04/11/2014, DJe 10/11/2014).