Já passa da hora de o STJ respeitar a ciência - Uma crítica ao posicionamento do STJ sobre a natureza da obrigação em cirurgias plásticas estéticas
terça-feira, 11 de fevereiro de 2025
Atualizado em 10 de fevereiro de 2025 10:54
Introdução
No Brasil, o STJ tem reiteradamente qualificado as cirurgias plásticas estéticas como obrigação de resultado, em contraposição à tradição jurídica que trata a prática médica, de forma geral, como obrigação de meios, e na prática, ignorando a vasta evidência científica em sentido contrário. Este artigo analisa criticamente esse entendimento, argumentando que a jurisprudência atual desconsidera a complexidade biológica dos pacientes, os princípios da teoria geral das obrigações e as evidências médicas.
Propõe-se, ademais, uma reflexão sobre a necessidade de reformulação jurisprudencial para respeitar a ciência e garantir maior segurança jurídica aos profissionais de saúde. Para tanto, e de forma breve, enumera-se abaixo alguns pontos para ponderação:
1. A singularidade biológica dos pacientes
A fisiologia humana é marcada por variações significativas entre indivíduos, incluindo fatores como capacidade de cicatrização, predisposição a complicações e reações imunológicas. Essas variáveis podem impactar de maneira determinante os resultados de cirurgias plásticas, tornando inviável a garantia de resultados.
Ignorar essas diferenças equivale a desconsiderar o que há de mais fundamental na ciência médica: o reconhecimento de que cada organismo é único e responde de maneira distinta às intervenções. Por exemplo, um mesmo procedimento realizado com a mesma técnica em dois pacientes pode gerar resultados estéticos completamente diferentes em função de peculiaridades individuais, como qualidade da pele, tecido subcutâneo e estrutura óssea subjacente.
Além disso, fatores genéticos e epigenéticos exercem influência direta sobre a resposta do corpo a traumas, mesmo quando controlados todos os parâmetros operacionais. Em alguns casos, pacientes podem desenvolver cicatrizes hipertróficas ou queloides, mesmo com a aplicação das técnicas mais modernas de sutura. Esses fenômenos não são previsíveis com precisão e escapam ao controle do cirurgião, que não pode ser responsabilizado por uma reação biológica fora de seu alcance.
Isso sem falar nos fatores comportamentais humanos envolvidos, uma vez que há pacientes que simplesmente não se mostram colaborativos com sua própria recuperação pós-cirúrgica, ignorando ou descumprindo recomendações médicas, não assumindo as responsabilidades pelo insucesso materializado.
A jurisprudência do STJ, ao tratar as cirurgias plásticas como obrigação de resultado, de forma absolutamente pasteurizada e irrefletida, desconsidera também a interação entre fatores externos e internos ao organismo. Por exemplo, o tabagismo, a alimentação inadequada e a adesão incompleta às recomendações pós-operatórias impactam diretamente no processo de recuperação e nos resultados finais. Ainda que o paciente não relate hábitos prejudiciais durante a anamnese, o médico pode ser responsabilizado pelo insucesso do procedimento, o que configura uma distorção do princípio da boa-fé e da responsabilidade compartilhada.
Mostra-se fundamental reconhecer que a medicina é uma ciência probabilística, não determinística. Os avanços tecnológicos e técnicos melhoraram significativamente os resultados de cirurgias plásticas, mas nunca os tornaram garantidos. Exigir do médico a entrega de um resultado exato é ignorar a natureza dinâmica e complexa da vida humana, além de penalizar injustamente profissionais que agem com a maior diligência possível.
2. A teoria geral das obrigações
Segundo a teoria geral das obrigações, a distinção entre obrigação de meios e de resultado é essencial para compreender a dinâmica de diferentes relações contratuais. Uma obrigação de meios ocorre quando o devedor compromete-se a utilizar todos os recursos disponíveis e sua expertise para alcançar um objetivo, sem garantir o desfecho. Por outro lado, a obrigação de resultado implica a entrega de um produto ou serviço em condição previamente definida.
Na prática médica, incluindo cirurgias plásticas, há fatores além do controle humano que impactam o desfecho. Essa imprevisibilidade é central para a caracterização dessas obrigações como de meios. Ao classificar as cirurgias estéticas como obrigação de resultado, o STJ desconsidera o fato de que o sucesso estético não pode ser garantido, mesmo com a aplicação de técnicas avançadas e equipamentos modernos.
Ademais, essa distorção jurídica pode levar a um desequilíbrio contratual, impondo ao médico uma responsabilidade excessiva e incompatível com a realidade biológica dos pacientes. Tal situação fere os princípios fundamentais do direito das obrigações e pode gerar insegurança jurídica, tanto para os profissionais quanto para os pacientes.
3. Risco de promessas irrealistas
A classificação das cirurgias plásticas como obrigação de resultado incentiva práticas que colocam em risco a ética profissional. Cirurgiões podem sentir-se pressionados a prometer resultados impossíveis de serem garantidos, criando expectativas irreais nos pacientes. Essa postura, além de comprometer a transparência necessária na relação médico-paciente, pode aumentar a judicialização desnecessária da medicina.
É essencial que o médico, durante a anamnese e o esclarecimento pré-operatório, explique os limites do procedimento, bem como os riscos inerentes à intervenção. No entanto, ao imputar uma obrigação de resultado, o STJ inviabiliza essa relação honesta e transforma o processo em uma relação puramente mercantil, onde a subjetividade biológica do paciente é ignorada.
4. A ciência como base da prática médica
A prática médica está profundamente enraizada na ciência, que é, por natureza, baseada em evidências e estatísticas probabilísticas. Nenhum procedimento cirúrgico, por mais avançado que seja, pode garantir resultados predeterminados. A cicatrização, por exemplo, depende de uma interação complexa de fatores, incluindo a resposta imunológica do paciente e sua adesão ao pós-operatório.
Ao exigir que o médico entregue um resultado específico em uma cirurgia plástica estética, o STJ ignora as bases científicas que regem a prática médica. Essa imposição cria uma disparidade entre o que é possível cientificamente e o que é juridicamente demandado, prejudicando tanto os médicos quanto os pacientes.
5. Fatores externos e incontroláveis
Complicações pós-operatórias, como infecções, rejeições a materiais implantados e formação de cicatrizes hipertróficas ou queloides, ilustram como fatores externos podem impactar negativamente o resultado de uma cirurgia plástica. Esses eventos muitas vezes ocorrem independentemente da perícia do médico ou da qualidade do procedimento realizado.
Além disso, a falta de adesão do paciente às orientações médicas também pode comprometer os resultados. Por exemplo, o uso inadequado de cintas cirúrgicas ou a realização de atividades físicas antes do período recomendado são comportamentos que escapam ao controle do médico e que podem afetar o resultado final. Imputar ao cirurgião a responsabilidade por esses fatores desconsidera a natureza multifatorial do sucesso de um procedimento.
6. O caráter de meio da medicina
A medicina, ao longo da história, sempre foi tratada como uma atividade que envolve uma obrigação de meio. Isso significa que o profissional de saúde compromete-se a aplicar seus conhecimentos e técnicas com diligência, mas não a garantir um resultado específico. Em cirurgias plásticas, essa abordagem é igualmente válida, pois a resposta biológica do paciente desempenha um papel central no desfecho do procedimento.
Ao reclassificar as cirurgias estéticas como obrigação de resultado, o STJ rompe com essa tradição, ignorando que o processo médico envolve variáveis imprevisíveis. Essa mudança de entendimento coloca o profissional em uma posição vulnerável, aumentando o risco de responsabilização injusta e distorcendo a prática da medicina.
Além disso, ao tratar a medicina como uma ciência determinística, a jurisprudência desconsidera os avanços científicos que reconhecem a imprevisibilidade como parte inerente da prática médica. Essa perspectiva limitada compromete a segurança jurídica e a confiança dos profissionais no sistema de Justiça.
7. Impactos na qualidade dos serviços médicos
A insegurança jurídica gerada pela classificação das cirurgias plásticas como obrigação de resultado pode ter consequências significativas para a qualidade e disponibilidade dos serviços médicos. Muitos profissionais podem optar por abandonar a área de cirurgia estética, temendo a alta probabilidade de litígios e a pressão por resultados que fogem ao seu controle.
Essa situação cria um cenário em que o mercado pode ser dominado por profissionais menos qualificados ou por clínicas clandestinas, onde os riscos são ainda maiores. Além disso, a busca por tratamentos estéticos no exterior pode aumentar, expondo os pacientes a sistemas menos regulados e práticas não supervisionadas.
Portanto, o entendimento do STJ pode gerar um efeito contraproducente, prejudicando tanto os pacientes quanto a credibilidade da medicina estética no Brasil.
8. Contradição com o princípio da boa-fé contratual
O princípio da boa-fé exige que ambas as partes em uma relação contratual atuem de forma cooperativa e transparente. No contexto de cirurgias plásticas, isso implica que o paciente deve seguir as orientações médicas e fornecer informações completas e precisas sobre sua saúde.
Ao impor uma obrigação de resultado ao médico, o STJ desconsidera a contribuição do paciente para o sucesso do procedimento. Por exemplo, se o paciente não cumpre as recomendações pós-operatórias, como evitar esforços físicos ou utilizar medicamentos prescritos, o resultado final pode ser comprometido. Imputar exclusivamente ao médico a responsabilidade por tais situações é uma distorção do princípio da boa-fé, que deve ser compartilhada por ambas as partes.
Essa postura também enfraquece a relação de confiança entre médico e paciente, transformando uma interação baseada em cuidado e colaboração em uma relação meramente contratual e adversarial.
9. Comparativo internacional
Em sistemas jurídicos mais amadurecidos, como os da Europa e dos Estados Unidos, prevalece o entendimento de que procedimentos médicos, incluindo os de natureza estética, são tratados como obrigações de meio, e não de resultado. Essa abordagem reflete a compreensão de que fatores biológicos e imprevisíveis desempenham um papel significativo nos resultados médicos.
Na Alemanha, por exemplo, a jurisprudência estabelece que o médico estético deve informar adequadamente o paciente sobre os riscos e limites do procedimento, mas não se compromete com um resultado específico. Nos Estados Unidos, a doutrina legal reforça que a medicina é uma ciência probabilística, e não determinística, priorizando a aplicação de padrões profissionais adequados.
Ao divergir desse entendimento, o Brasil isola-se de uma visão jurídica que respeita a complexidade biológica e científica da prática médica. Essa desconexão pode gerar insegurança jurídica e dificultar a integração com os sistemas internacionais, especialmente em contextos em que há colaboração ou intercâmbio de profissionais e pacientes.
Adotar uma perspectiva alinhada ao consenso internacional não apenas garante maior coerência jurídica, mas também reforça a credibilidade do sistema judicial brasileiro, incentivando uma prática médica mais responsável e cientificamente embasada.
10. Princípios bioéticos
A imposição de uma obrigação de resultado ao médico em cirurgias plásticas estéticas viola princípios bioéticos fundamentais, como a beneficência, a não maleficência e a autonomia do paciente.
O princípio da beneficência exige que o médico atue sempre em prol do paciente, utilizando os melhores recursos e técnicas disponíveis, mas sem prometer resultados que não dependem exclusivamente de sua conduta. Já a não maleficência reforça a necessidade de minimizar riscos, mas reconhece que o risco zero é impossível em qualquer procedimento médico.
A autonomia do paciente também é comprometida quando há uma expectativa irrealista de resultados garantidos. Essa expectativa pode ser fruto de informações inadequadas ou interpretações distorcidas das possibilidades reais do procedimento, o que contraria o dever do médico de esclarecer os limites da intervenção e seus riscos.
A bioética, enquanto pilar orientador da prática médica, reforça que a relação médico-paciente deve ser pautada pela confiança, pela transparência e pelo respeito mútuo. Ao desconsiderar esses princípios, a jurisprudência atual cria um ambiente de judicialização que prejudica tanto os profissionais quanto os pacientes.
11. Implicações para a responsabilidade civil médica
Com o entendimento atual, a classificação das cirurgias plásticas estéticas como obrigação de resultado cria um cenário jurídico de elevado risco para os médicos. Nesse contexto, qualquer desvio entre o resultado esperado pelo paciente e o resultado alcançado pode levar à responsabilização do profissional, mesmo quando ele adotou todas as medidas e práticas adequadas. Esse entendimento ignora a imprevisibilidade inerente à prática médica, especialmente em procedimentos que dependem de fatores biológicos únicos.
Como consequência, há um aumento da judicialização da medicina, com processos que, muitas vezes, não consideram os elementos técnicos e científicos envolvidos. Isso desestimula a prática médica de qualidade, pois coloca os profissionais sob constante pressão legal e emocional, além de aumentar os custos com seguros de responsabilidade civil.
Caso o entendimento seja alterado para reconhecer as cirurgias plásticas estéticas como obrigações de meio, a responsabilidade civil médica passaria a ser analisada com maior equilíbrio e respeito à realidade científica. O médico seria avaliado com base em sua diligência, na aplicação de técnicas adequadas e na transparência durante o processo de informação ao paciente.
Essa mudança fortaleceria a segurança jurídica para os profissionais, preservando a confiança na relação médico-paciente. Além disso, reduziria a judicialização desnecessária, permitindo que apenas casos de efetiva má prática médica ou negligência fossem judicializados.
Ao alinhar-se com os padrões internacionais e respeitar as evidências científicas, essa revisão também promoveria um sistema mais justo e eficiente, capaz de proteger tanto os direitos dos pacientes quanto a dignidade e o exercício profissional dos médicos.
12. Conclusão
A classificação das cirurgias plásticas estéticas como obrigação de resultado pelo STJ revela um descompasso com a ciência médica, os princípios da teoria geral das obrigações e as evidências científicas. Essa perspectiva ignora a complexidade biológica dos pacientes, os fatores imprevisíveis inerentes aos procedimentos cirúrgicos e a natureza probabilística da medicina.
A necessidade de revisão desse entendimento jurisprudencial é urgente. Alinhar-se aos padrões internacionais e respeitar os princípios bioéticos não apenas proporcionará maior segurança jurídica aos profissionais, mas também fortalecerá a relação médico-paciente, promovendo uma prática médica mais ética e científica.
Por fim, registro aqui que as críticas lançadas não representam um desrespeito à Corte, mas sim um necessário chamamento à reflexão, para que o entendimento atual - que representa um injustificado atraso e uma desconexão clara com a realidade científica - possa ser revisto, fazendo prevalecer o que os tribunais superiores tanto apregoam: que a ciência seja ouvida. É imperioso que a realidade se imponha, para que a justiça efetivamente prevaleça, fundada em racionalidade, e não em anacrônicos achismos.