Memória e tomada de decisão: O que os fatos nos contam, ou não
terça-feira, 10 de dezembro de 2024
Atualizado em 9 de dezembro de 2024 09:54
No âmbito da tomada de decisão, como na vida em geral, a memória ocupa espaço de relevância (BERGSON, 1999). A memória define o passado, o presente e o futuro1. Muitas vezes não nos damos conta da importância do estudo e aplicação do tema e, bem assim, da sua inserção no ambiente da valoração das provas, mas, a despeito dessa aparente invisibilidade, não teríamos condições sequer de compreender o conceito e os contextos das situações que nos cercam (memória semântica), ou a reconstrução de fatos a serem provados (memória eventual, ou episódica) acaso não tivéssemos em plena operação toda uma engrenagem interna que nos auxilia a perceber o mundo e atuar conforme a vida em sociedade nos exige (IZQUIERDO, 2018).
Imagine que está sendo discutido em juízo um acidente de trânsito no qual um carro azul teria ultrapassado o semáforo e colidido com outro automóvel, este verde, atropelando uma família. Na antessala do Tribunal, aguardam duas testemunhas presenciais, Dona Maria e Dona Josefa. Elas não se conhecem previamente e se encontram em um ambiente estranho e pouco acolhedor. Enquanto o juiz ouve o depoimento de outra pessoa, Dona Maria decide iniciar uma conversa com Dona Josefa, buscando aliviar a tensão do momento. Convencida do que acredita ter visto, Dona Maria comenta: "Que coisa triste esse acidente, não foi? Fiquei tão nervosa quando aquele carro vermelho ultrapassou o sinal amarelo e bateu no carro preto. Aquela senhora atropelada me lembrou a minha irmã, eram tão parecidas...".
Dona Josefa, que não se sente completamente segura em relação ao que presenciou, concorda com a narrativa de Dona Maria. Ela ainda acrescenta que também achou a pessoa atropelada parecida com alguém que conhecia, ensejando, assim, o fenômeno da calibragem mútua. Posteriormente, ao ser chamada para depor, Dona Josefa provavelmente repetirá a versão que ouviu de Dona Maria, assumindo-a como verdade. Para ela, essa história terá se consolidado como a realidade dos acontecimentos presenciados.
Esse cenário exemplifica a formação de uma falsa memória, um fenômeno comum e não patológico, que reflete o funcionamento natural da memória. Essa dinâmica pode ocorrer tanto no cotidiano quanto, de forma crítica, no contexto judicial, influenciando a avaliação da credibilidade dos relatos sobre eventos específicos. (LOFTUS, 1997; ROEDIGER e MCDERMOTT, 1995; BRAINERD e REYNA, 2002).
A partir desse singelo exemplo, duas questões aqui merecem atenção e estudo mais verticalizado.
A primeira se situa na interface entre teoria e metateoria. Em geral, utilizamos como base alguma vertente teórica jurídica para definição dos casos, recolhendo os pressupostos legais (ou doutrinários), agregando algum posicionamento jurisprudencial, e, ao final, sacando conclusões para resolução de algum problema concreto. A teoria de base nos auxilia no que chamaremos de tomada de decisão geral, ou circunscrita aos elementos jurídicos do caso em julgamento. Ocorre que, para além da teoria de base que utilizamos, há, de certa forma escondida, alguma metateoria que lhe dá sustentação e cujo manejo pode ultimar por alterar a própria percepção do ponto nodal fático tratado pela teoria utilizada para resolução do caso. Esta, que não é necessariamente jurídica, influencia no que chamaremos tomada de decisão específica, ou inserida no contexto das pequenas definições fáticas que resultem na reconstrução dos fatos narrados.
No caso da responsabilidade civil, penal ou administrativa, a metateoria relativa ao funcionamento da memória ocupa lugar central para definição dos fatos, sendo geralmente ignorada ou pouco abordada. Independentemente do quadro normativo ou teórico que utilizemos para definição da responsabilidade pertinente ao acidente de carros (tomada de decisão geral), teremos uma resposta final enviesada se simplesmente ignorarmos o funcionamento central das pequenas tomadas de decisão a respeito de circunstâncias que pareçam acessórias (tomada de decisão específica), como, por exemplo: (a) como a testemunha/declarante, ou quaisquer participantes se recordam dos eventos; (b) a prova está sendo, ou foi, contaminada antes mesmo da sua produção; (c) o que podemos fazer para evitar que a reconstrução dos fatos se aparte dos fatos em si; (d) como podemos incrementar o grau de credibilidade dos relatos trazidos pelos participantes internos?
No caso citado, a Dona Maria inadvertidamente inseriu uma falsa memória no contexto mnemônico da Dona Josefa, que terá certeza do que lhe fora comentado como se efetivamente tivesse vivido aquele acontecimento narrado. Acaso o decisor desconheça o funcionamento da memória e se revele, bem por isso, incapaz de perceber as diferenças entre eventos imaginados e eventos vivenciados2 (apoiando-se, para tanto, na tomada de decisão específica), acabará, por causalidade, por encontrar um padrão decorrente das falas das duas senhoras e, como consequência, estará muito tendente a compreender, no contexto da tomada de decisão geral, que a reconstrução dos fatos se deu como o padrão sugere.
Em que pese pareça questão secundária, o conhecimento dos meandros de funcionamento da tomada de decisão específica (no presente caso a compreensão da memória), ligada à metateoria da tomada de decisão, cobra fundamental importância a fim de delinear a (re)construção dos fatos, não se podendo cogitar de uma boa tomada de decisão relativa ao caso concreto se não observados os aspectos inerentes às pequenas tomadas de decisão que influenciem a contextualização dos fatos e a sua evocação.
Outro ponto que chama a atenção é que, em geral, o estudo do funcionamento da memória e dos aspectos científicos da valoração probatória costumam ser lembrados por ocasião de discussões inerentes à verdade e, mais especificamente, no contexto daqueles casos tidos pela doutrina e jurisprudência como de maior dificuldade probatória (os crimes cometidos às escondidas, por exemplo).
Ocorre que as duas questões estão mal posicionadas. Tanto não existe processo com maior ou menor dificuldade probatória, senão, em realidade, uma maior ou menor capacidade de percepção dos eventos e fatores que se inserem no contexto da valoração dos fatos, como, da mesma forma, a ideia de que a compreensão metodológica dos fatos assume importância apenas no ambiente da verdade está equivocada.
Em relação à primeira questão, se um processo costuma ofertar o que se entende como pouco material probatório, para utilizar um jargão usual no Direito, o decisor atua de duas maneiras: (a) ou recorre à teoria do ônus probatório para resolver a questão controvertida; (b) ou se utiliza de alguma presunção. As duas maneiras de solucionar o problema se revelam equivocadas, no entanto.
Repisemos o caso supramencionado, em que um veículo alegadamente ultrapassou o semáforo e colidiu com outro veículo. Assumindo inexistir outro elemento probatório afora o depoimento das duas senhoras, Maria e Josefa, e, considerando que o decisor tomará por base o que lhe foi dito, sem perceber que a versão por elas trazida é decorrente de uma falsa memória, decerto entenderá que o autor se desincumbiu corretamente do ônus probatório ao comprovar que o acidente teve como causa primária e direta o comportamento do réu, que, ultrapassando o semáforo, chocou-se contra outro veículo e atropelou a família. As regras de ônus probatório, no caso, ademais de não auxiliarem na reconstrução do fato, ainda produziram um resultado enviesado.
Agora imaginemos que as senhoras Maria e Josefa não presenciaram o ocorrido, mas quem estava presente era Júlio, um guarda municipal de serviço no dia. Júlio é portador de discromatopsia (e não sabe disso), de modo que se confunde quanto às cores de objetos. No caso, ao narrar o que aconteceu, acaba por trocar as cores dos veículos e afirma categoricamente o contrário do que ocorreu na realidade, isto é, que o carro que ultrapassou o semáforo não era azul, senão verde (decorrente da tritanopia, ou deficiência no cone azul) e que o abalroado era azul e não verde (decorrente da deteranopia, ou deficiência no cone verde). Ao não ter acesso a qualquer outro meio probatório e, ainda, considerando o cargo ocupado por Júlio, o juiz não terá dúvidas em reputar acertada a sua versão, aplicando, para tanto, jurisprudência conhecida que atribui ao agente público a presunção juris tantum de veracidade das suas afirmações3. Nesse caso, a presunção utilizada pelo juiz, conquanto ostente amparo jurisprudencial, confundiu confiança, um atributo do sistema jurídico, com credibilidade, elemento individual de quem narra4. Outro falso positivo foi formado.
Em síntese, nem a teoria do ônus probatório, tampouco o recurso às presunções auxiliou na reconstrução adequada do fato ocorrido.
Mas há outra questão - e com ela finalizo esse breve artigo. É que o estudo do fato em si, suas metodologias de percepção, características, elementos e categorização costumam ser examinados, quando o são, a partir de encadeamentos teóricos epistemológicos inerentes às teorias da verdade, como se prova e fato fossem coisas idênticas, passíveis de análise por idênticos marcadores epistemológicos ligados à verdade (FERRER BETRÁN, 2024 e GASCÓN ABELLAN, 2012).
O fato precede a prova, assim como sua percepção, tanto pelos observadores externos quanto pelos participantes internos do evento. A questão central é determinar como, e com qual metodologia, o fato poderá ser percebido - sem ainda adentrar nas discussões sobre prova ou verdade. Por exemplo, se um participante interno estiver sob influência de uma causa transitória de alteração cognitiva, como o uso de drogas, ele perceberá o fato de maneira específica. Essa percepção deverá ser compreendida pelo decisor para avaliar o grau de credibilidade da reconstrução da dinâmica apresentada por esse narrador. Por outro lado, se o narrador for portador de uma causa permanente de alteração cognitiva, como uma neurodivergência, sua interpretação da realidade será igualmente influenciada, exigindo análise detalhada de seus limites, características e peculiaridades. Isso permitirá confrontar os resultados esperados dessas condições com a narrativa oferecida. Já no caso de um observador externo, sem qualquer causa de alteração cognitiva, transitória ou permanente, sua leitura da realidade será diferente, fundamentada em outros padrões, parâmetros e limites.
Para compreender como ocorre a leitura dos fatos (independentemente da teoria da verdade adotada para fins probatórios, cuja relevância poderá surgir em momento posterior), o decisor deve recorrer a fundamentos teóricos específicos. Isso inclui o entendimento do funcionamento da memória, dos padrões cognitivos de indivíduos neurotípicos e neurodivergentes, dos efeitos de substâncias psicoativas, da influência da idade, do estresse, entre outros fatores. Esse processo requer um verdadeiro exercício de alteridade, posicionando-se o decisor no campo de percepção tanto do afetado quanto do observador externo ao evento. Somente assim será possível reconstruir os fatos a partir da forma como foram percebidos e, então, investigar os parâmetros probatórios pertinentes.
Caso contrário, o decisor estará operando em um terreno frágil, marcado por desvios cognitivos, baseando decisões em causalidades equivocadas, acreditando em padrões estereotipados e adotando presunções jurídicas desconectadas da análise e percepção efetiva dos fatos. Procedendo dessa forma, mesmo ao adotar teorias jurídicas de vanguarda, corre-se o risco de avaliar os fatos sob uma ótica anacrônica, reminiscentes das provas tarifadas da antiguidade, sem efetivamente avançar na compreensão científica moderna.
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1 Não resisto à indicação da leitura do conto "Funes, o Memorioso", de Borges, que narra a história de uma pessoa portadora de hipertimesia, ou seja, uma memória episódica e autobiográfica prodigiosa, o que, em primeiro momento poderia ser muito proveitoso e benéfico, mas, ao contrário, revela-se maléfico e fatal. BORGES, Jorge Luis. Ficções. São Paulo: Globo, 1997.
2 Como sugere a Hipótese de Udo Undeutsch. A esse respeito, entre outros trabalhos: STELLER, Max; KÖHNKEN, Günter. Criteria-based statement analysis. In: YUILLE, John C. (Ed.). Credibility assessment. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1989. p. 217-245. E, ainda, VRIJ, Aldert. Criteria-based content analysis: A qualitative review of the first 37 studies. Psychology, Public Policy, and Law, v. 11, n. 1, p. 3-41, 2005.
3 ARE: 1399175 (Supremo Tribunal Federal, 2022), entre outros.
4 Como esse não é o objeto central do texto, remeto o leitor interessado a outro trabalho em que abordei a diferença entre as duas categorias. ALBERTO, Tiago Gagliano Pinto. Confianza o credibilidad: un debate entre el Derecho y la Psicología del Testimonio. In: Congreso internacional de Derecho Constitucional: Argumentación e interpretación en el Estado Constitucional. Corte de Constitucionalidad - Instituto de Justicia Constitucional. Guatemala, 2024, p. (do artigo): 163-178
5 BERGSON, Henri. Resumo e conclusão. In: BERGSON, Henri. (org.). Matéria e memória: Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
6 BORGES, Jorge Luis. Ficções. São Paulo: Globo, 1997.
7 BRAINERD, Charles J.; REYNA, Valerie F. Fuzzy-trace theory and false memory. Current Directions in Psychological Science, v. 11, n. 5, p. 164-169, 2002.
8 FERRER BELTRÁN, Jordi. Prova e verdade no direito. Tradução de Vitor de Paula Ramos. Salvador: Juspodivm, 2024.
9 GASCÓN ABELLÁN, Marina. Cuestiones probatorias. Madrid: Marcial Pons, 2012.
10 IZQUIERDO, Iván. Memória. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2018.
11 LOFTUS, Elizabeth F. Creating false memories. Scientific American, v. 277, n. 3, p. 70-75, 1997.
12 ROEDIGER, Henry L.; McDERMOTT, Kathleen B. Creating false memories: Remembering words not presented in lists. Journal of Experimental Psychology: Learning, Memory, and Cognition, v. 21, n. 4, p. 803-814, 1995.
13 STELLER, Max; KÖHNKEN, Günter. Criteria-based statement analysis. In: YUILLE, John C. (Ed.). Credibility assessment. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1989. p. 217-245.
14 VRIJ, Aldert. Criteria-based content analysis: A qualitative review of the first 37 studies. Psychology, Public Policy, and Law, v. 11, n. 1, p. 3-41, 2005.