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Rol da ANS e o Superior Tribunal de Justiça

terça-feira, 15 de outubro de 2024

Atualizado em 14 de outubro de 2024 18:06

Considerações iniciais

O Poder Judiciário brasileiro tem um excesso de demandas judiciais1 envolvendo pedidos de autorização para a realização de tratamentos e procedimentos prescritos por médicos ou odontólogos, diante da recusa de cobertura pelas operadoras de planos de saúde, respaldados na divergência de entendimento entre a 3ª e 4ª turma do STJ, sobre o rol da ANS ser taxativo ou exemplificativo.

No entanto, no dia 24 de abril de 2024, a 2ª Seção do STJ reanalisou a matéria mantendo o entendimento pacificado sobre o rol da ANS e definindo o marco temporal de aplicabilidade da lei 14.454/222. Isso porque, pouco tempo após o STJ ter pacificado o entendimento sobre o rol da ANS, a mencionada lei entrou em vigor no dia 21 de setembro de 2022, alterando o art. 10 da lei 9.656/983, com a inserção dos parágrafos 12 e 13, para tornar obrigatória a cobertura de todo tratamento ou procedimento prescrito por médico ou odontologista, desde que comprovada a eficácia por meio de evidências científicas ou que exista recomendação do Conitec ou órgão de avaliação de tecnologia que tenha renome internacional e sejam aprovadas para seus nacionais, por parte das empresas que prestam serviço de saúde.

Em que pese a objetividade, a alteração legislativa, fez renascer as dúvidas e o conflito entre as operadoras de planos de saúde e os usuários, supostamente, pacificado por meio do entendimento unificado entre a 3ª e a 4ª turma do STJ sobre o tema, pouco antes da vigência da lei.

Portanto, necessária a análise das decisões da Segunda Seção do STJ e, como devemos entender o que estabelece o novo regramento, principalmente para compreender qual o entendimento atual após tantas mudanças, com o foco principal de compreendermos quais são as repercussões práticas para os particulares e para as empresas prestadoras de serviços médico e hospitalares, regidas pela lei 9.656/98.

Qual entendimento prevalece? Rol taxativo ou exemplificativo?

Não obstante a aplicação da lei 9.656/98 aos planos de saúde, temos que é atribuída à ANS - Agência Nacional de Saúde, nos termos da lei 9.961/004 à fiscalização e o controle dos serviços prestados por todas as operadoras de planos de saúde. Além disso, compete à própria ANS a elaboração do rol de procedimentos e tratamentos que devem ser oferecidos pelos planos de saúde aos respectivos contratantes ou usuários.

Mesmo com a previsão específica na lei quanto à atribuição à ANS de elencar o rol de procedimentos e tratamentos que devem ser cobertos pelas operadoras de planos de saúde, a mesma norma não indica se o rol é exemplificativo ou taxativo. Diante da dúvida real, as operadoras têm fundamentado a recusa de autorização para procedimentos e tratamentos para usuários, desencadeando na judicialização do tema.

As dúvidas e inseguranças jurídicas apenas contribuem para o aumento dos processos judiciais na área da saúde, especialmente quando o tema é a obrigatoriedade ou não de cobertura de um tratamento ou procedimento prescrito por médico, devidamente inscrito no Conselho de Medicina, como demonstra o painel de estatísticas processuais de direito à saúde do CNJ.

A 3ª turma do STJ5 interpretava o rol de procedimentos e tratamentos elaborados pela ANS como exemplificativo (numerus apertus), cujo entendimento era o de que o rol corresponde a uma relação de tratamentos possíveis de serem ofertados pelas operadoras e a empresa contratada estaria obrigada a autorizar todo e qualquer procedimento prescrito pelo médico.

O fundamento utilizado para este entendimento era o de que a operadora poderia estabelecer em contrato quais as doenças estariam cobertas, mas não quais os tratamentos ou procedimentos estariam cobertos. De modo que, para a turma, sendo o rol da ANS meramente exemplificativo, competiria exclusivamente ao médico a prescrição do necessário ao seu paciente, segundo a sua autonomia e técnica, cuja interferência das operadoras e negativa de cobertura caracterizaria uma limitação abusiva.

Seguindo o entendimento adotado pela 3ª turma do STJ, o TTJSP, editou a súmula 1026, que estabelece:

Havendo expressa indicação médica, é abusiva a negativa de cobertura de custeio de tratamento sob o argumento da sua natureza experimental ou por não estar previsto no rol de procedimentos da ANS.

Além da previsão expressa na súmula do TJSP, muitas decisões proferidas pelo mesmo tribunal, consideram obrigatória a cobertura de procedimentos ou tratamento para doenças previstas na CID - Classificação Internacional de Doenças.

Neste sentido, podemos citar a decisão proferida na Apelação 1002241-44.2019.8.26.03637, julgado pela 8ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, sob a relatoria da desembargadora Clara Maria Araújo Xavier, no dia 04 de maio de 2024, cujo acórdão seguiu o entendimento de negar provimento ao recurso da operadora de plano de saúde, visando manter a decisão de parcial procedência de primeira instância que determinou o fornecimento do medicamento OCRELIZUMABE (OCREVUS), para o tratamento de esclerose múltipla, sob o fundamento de que "...o plano de saúde pode definir quais doenças serão cobertas, mas não a forma de tratamento, tendo prevalência a prescrição médica".

Por outro lado, a 4ª turma do STJ entende de forma diametralmente oposta, ou seja, interpreta o rol da ANS como sendo taxativo. Segundo acórdão proferido no REsp. 1.733.013/PR8, extrai-se pela interpretação taxativa do rol da ANS.

O entendimento da 4ª turma do STJ sobre o tema, segue no sentido de buscar o equilíbrio e maior segurança na relação contratual que se estabelece entre as operadoras de planos de saúde e seus usuários, devendo, igualmente, considerar todos os impactos sociais.

Isso porque, quando a operadora de plano de saúde é obrigada a cobrir todo e qualquer procedimento ou tratamento prescrito por um médico sem um parâmetro específico, notoriamente será imprescindível elevar os preços com a finalidade de resguardar custos imensuráveis no momento da contratação. Especialmente, pelo fato de tratar-se de um serviço que visa lucro e não filantropia.

Portanto, considerando o contrato sinalagmático, que demanda a contraprestação do usuário, inegável o repasse dos custos ao contratante, parte mais prejudicada com um rol meramente exemplificativo. Ao mesmo tempo, é inquestionável que toda a população será afetada, mas, principalmente a parcela mais carente financeiramente. Assim, uma decisão judicial proferida pelo STJ deve considerar todos esses aspectos, uma vez que não se trata de um caso específico, mas todos os contratos de prestação de serviços celebrados por operadoras de planos de saúde e usuários.

Sob o enfoque social, a 4ª turma entende que a interpretação atribuída ao rol da ANS como um rol mínimo e obrigatório que deve ser prestado por todo e qualquer plano de saúde em benefício de todos os seus contratantes é a mais vantajosa para ambas as partes da relação contratual. Isso porque, o plano sabe exatamente o que tem que prestar para o seu cliente e com isso pode calcular exatamente os seus custos, repassando ao consumidor o preço exato sem precisar colocar acréscimos para cobrir custos inestimáveis e imprevisíveis.

Ao mesmo tempo, visa possibilitar a redução de demandas judiciais para discussão deste tema, uma vez que todos sabem previamente que se está inserido no rol da ANS e deve ser coberto pelo plano, sem que exista discricionariedade na cobertura ou não.

O conhecimento prévio de todos os direitos e obrigações geram maior segurança e reduzem a probabilidade de recusas indevidas por parte dos planos de saúde. Ao mesmo tempo, possibilitam segurança por parte do consumidor que sabe previamente ao que faz jus, algo que inexiste com o rol exemplificativo, pois pode haver ou não cobertura.

Para a 4ª turma do STJ, este entendimento assegura a aplicabilidade da boa-fé objetiva aos contratos, haja vista a plena compreensão por todos os contratantes de todas as regras e direitos assegurados, evitando a frustração das expectativas do cidadão.

O entendimento atribuído pela 4ª turma do STJ não tem o caráter limitativo ou de exclusão de outros procedimentos, como equivocadamente se interpreta, mas com finalidade de segurança aos usuários que sabem exatamente o que deve ser assegurado dentro da prestação dos serviços, sem permitir a negativa aos tratamentos e procedimentos, como ocorre diante da interpretação de rol exemplificativo.

Isso porque, o rol exemplificativo corresponde ao rol de procedimentos que podem ou não ser cobertos pela operadora, ou seja, não corresponde a uma obrigatoriedade de cobertura, ficando a cargo da operadora a decisão de cobertura ou não. Diferentemente, quando se interpreta o rol como taxativo, pois dentre o rol que a ANS estabelece, todos os planos devem cobrir todos os tratamentos previstos, sob pena de abusividade. Com isso existe segurança quanto ao que deve ou não ser coberto.

Em suma, a 4ª turma interpretou o rol como taxativo (numerus clausus), mas sem atribuí-lo uma característica limitativa, pois permite a contração de outras coberturas e assegurou a possibilidade de discussão judicial, sobre matérias que não sejam tratadas no rol pela ANS. O entendimento visa garantir um rol de procedimentos e tratamentos mínimos assegurados a todo e qualquer cidadão, em absoluta igualdade de direitos e deveres. Em outras palavras, exatamente um piso mínimo de coberturas obrigatórias e taxativas, sem qualquer direito aos planos de recusa.

No entanto, o fato de assegurar os tratamentos e procedimentos mínimos e obrigatórios de cobertura pelos planos não impede o direito de algum cidadão, diante de um caso específico postular a cobertura de um procedimento ou tratamento não previsto no rol, como decidido, posteriormente, no julgamento do EREsp 1.886.929/SP9.

Portanto, as dúvidas práticas que rodeavam os conflitos entre os prestadores de serviço e os usuários foram mantidas diante da divergência instalada entre as turmas do STJ.

Em virtude disso, foi interposto recurso de embargos de divergência em recurso especial visando a uniformização dos entendimentos da 3ª e 4ª turma do STJ, cujo julgamento foi realizado pela 2ª seção do STJ no dia 8 de junho de 2022, sob a relatoria do ministro Luis Felipe Salomão, integrante da 4ª turma.  Para tanto, ele votou na mesma linha do entendimento anterior, consagrado pela 4ª turma no acórdão paradigma proferido no REsp. 1.733.013/PR, julgado em 2019, ou seja, rol taxativo.

De modo que, ambas as turmas do STJ, acabaram seguindo o entendimento do Ministro Luis Felipe Salomão quanto à interpretação taxativa do rol de procedimentos e tratamentos da ANS quando julgaram os recursos: EREsp 1.886.929/SP e 1.889.704/SP9, mas estabeleceram a possibilidade de mitigação quando atendidos determinados critérios.

Entretanto, após pouco mais de três meses da solução da matéria pelo STJ, entrou em vigor no Brasil, a lei 14.454, de 21 de setembro de 2022, para incluir o parágrafo 13, ao art. 10 da lei 9.656/98, prevendo a obrigatoriedade de cobertura.

Diante da significativa alteração trazida pela lei, pouco mais de três meses após o julgamento EREsp 1.886.929/SP, a compreensão quanto ao rol da ANS foi absurdamente modificada, haja vista a explícita obrigatoriedade de autorização de cobertura por parte da operadora de planos de saúde de todo e qualquer tratamento ou procedimento prescrito por médico ou odontólogo que não esteja inserido no rol da ANS, mas, desde que tenha a comprovação da eficácia do tratamento ou procedimento segundo a ciência ou existam recomendações da Conitec - Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS ou exista recomendação de, no mínimo, 1 órgão de avaliação de tecnologias em saúde que tenha renome internacional, desde que sejam aprovadas também para seus nacionais.

Em que pese tratar-se de lei posterior ao entendimento do STJ, as operadoras de planos de saúde permaneceram se recusando em autorizar os tratamentos e procedimentos não previstos no rol da ANS, mesmo prescrito por médico ou odontólogo, seguindo a interpretação anterior atribuída pelo STJ.

Com isso, houve um retorno ao status quo, diante da nova celeuma instalada, especialmente porque compete ao STJ dar a interpretação final sobre lei federal.

Em razão disso, a matéria foi novamente submetida à análise do STJ e, assim, três recursos especiais: REsp 2.037.616 - SP11; REsp 2.038.333 - AM12 e REsp 2.057.897 - SP13, aguardavam julgamento desde 2023.

Contudo, os mencionados recursos encontravam-se sob a relatoria da ministra Nancy Andrighi, integrante da 3ª turma do STJ, a qual adotava o entendimento de rol exemplificativo. Diante disso, existia uma grande expectativa quanto à possibilidade de mudança de entendimento do STJ.

Entretanto, diferentemente do esperado, no dia 24 de abril de 2024, todos os recursos foram conhecidos, mas quanto ao mérito, tiveram o provimento negado. Com isso, a 2ª seção do STJ, ao julgar os mencionados recursos, sob a relatoria do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, manteve o entendimento quanto ao rol taxativo da ANS, mas com a possibilidade de mitigação, observando cada caso de forma específica.

Do mesmo modo, extrai-se que o STJ estabeleceu o termo inicial para aplicação da lei 14.454/22 a partir de sua vigência. Assim, processos em trâmite, cuja recusa de autorização foi anterior à vigência da lei, não foram afetados pela falta de aplicabilidade, haja vista a irretroatividade da lei.

Por fim, necessário registrar que embora o rol de tratamentos e procedimentos da ANS inclua o fornecimento de medicamentos, autorização de home care e o tratamento clínico e medicamentoso para pacientes com transtorno do espectro autista, o STJ atribui para os mencionados casos, interpretação peculiar as três situações, mas que não serão objeto de análise neste estudo.

Diante de todo o exposto, tem-se que as operadoras de planos de saúde são obrigadas a cobrir todos os tratamentos e procedimentos previstos no rol da ANS e aquilo que não esteja incluído no rol ou tratado de forma específica pelo STJ, como o fornecimento de medicamentos off-label, poderá ser objeto de judicialização, haja vista a não restrição pela corte, através do entendimento consolidado.

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1 CNJ.Disponível aqui. Acesso em: 04 maio,2024.

2 BRASIL. lei 14.454, de 21 de setembro de 2022. Disponível aqui.

3 BRASIL, lei 9.656, de 03 de junho de 1998. Disponível aqui. Acesso em: 04 maio, 2024.

4 BRASIL. lei 9.961, de 28 de janeiro de 2000. Disponível aqui. Acesso em: 04 maio, 2024.

5 STJ. Acórdão. REsp 668.216/SP. EMENTA: Seguro saúde. Cobertura. Câncer de pulmão. Tratamento com quimioterapia. Cláusula abusiva.1. O plano de saúde pode estabelecer quais doenças estão sendo cobertas, mas não que tipo de tratamento está alcançado para a respectiva cura. Se a patologia está coberta, no caso, o câncer, é inviável vedar a quimioterapia pelo simples fato de ser esta uma das alternativas possíveis para a cura da doença. A abusividade da cláusula reside exatamente nesse preciso aspecto, qual seja, não pode o paciente, em razão de cláusula limitativa, ser impedido de receber tratamento com o método mais moderno disponível no momento em que instalada a doença coberta. 2. Recurso especial conhecido e provido. Disponível aqui. Acesso em 06 maio, 2024.

6 SÃO PAULO. TJSP. Disponível aqui. Acesso em: 04 maio, 2024.

7 SÃO PAULO. TJSP, Acórdão. APELAÇÃO. 1002241-44.2019.8.26.0363, Relatora Clara Maria Araújo Xavier, 8ª Câmara de Direito Privado Julgado em 04.05.24. PLANO DE SAÚDE. MEDICAMENTO. COBERTURA. Autor portador de esclerose múltipla. Sentença de parcial procedência, para determinar que a requerida custeie o tratamento com o medicamento OCRELIZUMABE (OCREVUS). Inconformismo. Acórdão que negou provimento ao recurso da ré, sob o fundamento de que o Plano de saúde pode definir quais doenças serão cobertas, mas não a forma de tratamento, tendo prevalência a prescrição médica. Incidência das súmulas 102 e 96 deste E. Tribunal de Justiça. Reapreciação após a tese firmada no julgamento dos Recursos Especiais nº 1.889.704/SP e 1.886.929/SP. Conversão em diligência. Nota Técnica da NAT-JUS quanto à necessidade/eficácia do tratamento prescrito ao autor. Constatação de que a requerida não logrou oferecer, como alternativa de tratamento ao autor, remédio com a mesma segurança que o prescrito, o qual, ao contrário, oferece menor risco à saúde do paciente. Recurso da ré desprovido, mantido o parcial provimento ao recurso adesivo do autor, nos termos do acórdão de fls. 237/246. RECURSO DESPROVIDO. Disponível aqui. Acesso em: 04 maio, 2024.

8 STJ. Acórdão. REsp 1.733.013/PR. Disponível aqui. Acesso em: 04 maio, 2024.

9 STJ. Acórdão, EREsp 1.886.929-SP, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, Julgado dia 08.06.2022, DJe. 03.08.2022. Disponível aqui.

10 STJ. Acórdão, EREsp 1.889.704-SP, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, Julgado dia 08.06.2022, DJe. 03.08.2022. Disponível aqui. Acesso em 04 out. 2024.

11 STJ. Acórdão, REsp 2.037.616-SP, Relator Ministro Humberto Martins, Terceira turma, Julgado dia 24.04.2024, DJe. 27.04.2024. Disponível aqui. Acesso em 04 out. 2024.

12 STJ. Acórdão, REsp 2.038.333-AM, Relator Ministra Nancy Andrighi, Terceira turma, Julgado dia 24.06.2024, DJe. 08.05.2024. Disponível aqui. Acesso em 04 out. 2024.

13 STJ. Acórdão, REsp 2.057.897-SP, Relator Ministra Nancy Andrighi, Terceira turma, Julgado dia 24.04.2024, DJe. 08.05.2024. Disponível aqui. Acesso em 04 out. 2024.