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Dilemas em torno da responsabilidade civil envolvendo acidentes com carros autônomos

terça-feira, 6 de agosto de 2024

Atualizado em 5 de agosto de 2024 13:28

Existem vários níveis de automação dos veículos automotores, a tabela internacionalmente aceita é a elaborada pela Sociedade Internacional de Engenheiros Automotivos1, que elenca até seis níveis. Sendo que somente os níveis 4 e 5 dispensam a supervisão humana. Nos níveis de zero a 3, que são os carros atualmente disponibilizados no mercado, a supervisão humana é imprescindível para reassumir a condução do veículo automotor quando necessário a fim de evitar acidentes.2 Todavia, ignorando tais especificidades, os trágicos acidentes que envolveram carros com algum nível de automação acabaram por acentuar um temor que desencadeou no tratamento exacerbado da responsabilidade civil.

No Brasil, cabe ao CONTRAN - Conselho Nacional de Trânsito, nos termos do art. 12 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB, lei 9.503, de 23/9/97), regular e reconhecer os níveis de automação de veículos, o ideal é seguir um padrão universal, e.g. a classificação da Sociedade Internacional de Engenheiros Automotivos supra descrita, pois estas tecnologias são divulgadas em diversos países.

Diante destes distintos níveis de automação, deve-se constatar suas diferentes aplicações. Portanto, carros automatizados ("driver assist cars" ou "automated cars") são aqueles que tem algum tipo de tecnologia para determinadas funções, tais como, o controle de velocidade (cruise control), sistema de freios automáticos de emergência, avisos de monitoramento ao estacionar com sensores e/ou câmeras. Em outras palavras, seriam os carros com nível zero, 1 e 2 de automação conforme à classificação da SAE.3

Outra categoria são os carros autônomos ("self-driving cars", "driverless cars", ou ainda, "fully driverless cars"), são aqueles identificados sendo do nível 3, 4 ou 5 conforme a classificação da SAE, isto é, o sistema pode assumir o controle da direção em situações pontuais (nível 3), o sistema permite a direção sem motorista em determinadas circunstâncias, ou seja, quando as vias estiverem preparadas para a direção autônoma do carro (nível 4), ou, ainda, quando os carros se dirigirem sem necessidade de supervisão humana (nível 5).

Levando em consideração tais distinções, o que não foram consideradas no PL 2.338, de 2023, que discute a regulação da inteligência artificial no Brasil4, pois elencou indistintamente os carros autônomos na classificação de alto risco nos termos do inciso VIII do art. 17: "VIII - veículos autônomos, quando seu uso puder gerar riscos à integridade física de pessoas".

Todavia, há alguns problemas deste tipo de regulação sobre a qual precisa uma reflexão para evitar o ativismo judicial após a aprovação de uma lei que não leve em consideração essas nuances das tecnologias que usam inteligência artificial como o caso dos carros autônomos.

Um dos problemas é o que foi destacado acima, há diversos níveis de automação que não foram levados em consideração, claro pois são questões específicas que justificam uma regulamentação setorial.

Em consequência desta falta de acuidade ao tratar de um tema tão complexo, o próprio PL 02.338/23 traz dentre as excludentes do nexo de imputação previstas no art. 28, inc. II, a culpa exclusiva de terceiro ou do usuário. Ora nas hipóteses de automação de nível zero, 1, 2, 3, em até mesmo 4, quando o motorista (usuário) ou até mesmo uma pessoa que esteja sendo transportada (passageiro) que não retome a direção do veículo quando o sistema exigir tal conduta mediante um alarme para tanto, seria esta uma excludente nos termos da legislação proposta?

Vale ressaltar que o próprio PL 2.338/23 menciona a correta aplicação do CDC quando os danos envolvendo inteligência artificial ocorrerem no contexto das relações de consumo (art. 29). Todavia, o próprio art. 12, § 3º, inc. III do CDC prevê igual excludente (culpa exclusiva do consumidor e de terceiro). Assim, se o consumidor não assumir a condução do veículo quando o sistema exigir tal conduta ou mesmo um passageiro que der algum comando inadequado, podem, em última análise excluir a responsabilidade civil do fornecedor dos carros autônomos, seja por aplicação do disposto no PL 2.338/23, seja pela aplicação da legislação consumerista.

Neste contexto, importante destacar os danos não indenizáveis, o que demanda uma análise mais aprofundada sobre possíveis alternativas como sistemas de seguro ou a criação de um fundo para custear os danos não indenizáveis no contexto dos acidentes que envolvam o uso de inteligência artificial.5

Uma sugestão interessante feita por Matthew U. Scherer6,estabelece um sistema facultativo de registro ou certificação da tecnologia que empregue algum sistema de inteligência artificial que deve ser regulado e realizado pela "Agência para o Desenvolvimento de Inteligência Artificial" (órgão competente), mediante o pagamento de uma taxa. Os valores recebidos por esta agência constituiriam um fundo que seria utilizado para os casos de reparação civil em que o responsável legal seja insolvente ou quando não seja possível definir quem seja o responsável legal. Outrossim, a certificação, ressalvados os segredos industriais e comerciais, revelariam todas as funcionalidades do sistema efetivando o princípio da transparência e explicabilidade.

Outro problema da falta de regulação setorial mais verticalizada para se definir a responsabilidade civil no contexto dos carros autônomos diz respeito à ressalva feita no próprio inciso VIII do art. 17 do PL 2.338, ou seja, "quando seu uso puder gerar riscos à integridade física de pessoas".

No cenário brasileiro, o relatório apresentado pelo Observatório Nacional de Segurança Viária7 indica que morreram, só em 2014, 43.790 pessoas em acidentes de trânsito, o que representa um prejuízo de 56 bilhões de reais, com indenizações, previdência, impacto na produção e etc., sendo que 90% destes acidentes podem ser atribuídos à falha humana (embriaguez ao volante, desatenção, excesso de velocidade, dentre outras); apenas 5% destes acidentes são decorrentes de falhas mecânicas e 5%, devido a problemas estruturais na pista (como buracos, sinalização deficiente e mal conservação).

Portanto, os carros autônomos não estão suscetíveis à embriaguez, desatenção, excesso de velocidade, dentre outras, pois obedece rigorosamente aos inputs realizados no treinamento. E, se associado à infraestrutura viária no contexto da Internet das Coisas (os denominados "carros conectados"), será um meio de transporte muito mais seguro; porém não infalível.

Assim, a redação do inciso VIII do art. 17 não é clara e até mesmo inócua se pensarmos que os carros autônomos tendem a aprimorar a segurança no trânsito. Aliás, qualquer desenvolvimento e aplicação de IA somente se justifica para a melhoria da qualidade da vida humana. Outro problema é a classificação e a possível reclassificação do risco que deve ser feita pelo órgão competente em cooperação com o órgão regulador do setor (parágrafo único do art. 17 do PL 2.338)8, no caso o CONTRAN.

A Resolução 717, de 30/11/17 do CONTRAN, determinou a realização de estudos técnicos para o aprimoramento de alguns temas, no item 37 deste anexo, estão os veículos autônomos, com 48 meses para apresentar o relatório após a entrada em vigor da lei, que se deu em 30 dias de sua publicação, ou seja, o comitê técnico tem até dia 30/12/21 para apresentar o relatório.9

Por fim um derradeiro problema revela o efeito relacionado ao mito de Pigmalião10, ou seja, espera-se que os sistemas de IA sejam mais perfeitos que os seres humanos, daí a responsabilidade por acidentes de trânsito que é subjetiva, passa a ser objetiva nos termos do art. 27, inc. I do PL 2.338, que determina que os sistemas de IA classificados como risco elevado ensejam a responsabilidade objetiva.

Assim, a melhor forma de regulação da IA no Brasil quanto à responsabilidade civil seria a lei estabelecer alguns princípios e diretrizes gerais, porém as regras específicas, seja na área da saúde, do agronegócio, de transporte, segurança pública e etc..., devem ser reguladas de maneira específica em colaboração pelo órgão competente, que deve ser criado no contexto específico da inteligência artificial, e respectivos órgãos reguladores de cada área específica.

Em suma, o desenvolvimento tecnológico é veloz e o instrumento legislativo precisa acompanhar tais mudanças, o que não se coaduna com a necessidade de mudança na lei toda vez que houver necessidade de classificar novos riscos ou reclassificar os mencionados na lei.

_________

1 SHUTTLEWORTH, Jennifer. In: International Society of Automobilist Engineers - SAE Standards News: J3016 automated-driving graphic update (de 7 de janeiro de 2019). Disponível aqui. Acessado em 20 de março de 2020.

2 LIMA, Cíntia Rosa Pereira de Lima. Sistema de Responsabilidade Civil para Carros Autônomos. Indaiatuba: Foco, 2023.

3 CRANE, Daniel A.; LOGUE, Kyle D.; PILZ, Bryce C. A Survey of Legal Issues Arising From The Deployment of Autonomous and Connected Vehicles. In: Michigan Telecommunications and Technology Law Review, vol. 23, pp.  191 - 320 (2017). Disponível aqui. Acessado em 27 de junho de 2024. p. 202.

4 BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei n. 2.338 de 2023. Disponível aqui. Acessado em 27 de junho de 2024.

5 LIMA, Cíntia Rosa Pereira de. Sistema de Responsabilidade Civil para Carros Autônomos. Indaiatuba: Foco, 2023.

6 Regulating Artificial Intelligence Systems: Risks, Challenges, Competencies and Strategies. In: Harvard Journal of Law & Technology. Cambridge: Harvard Law School. v. 29, n. 02, p. 353-400, Primavera, 2016. p. 393 e ss.

7 Disponível aqui. Acessado em 27 de junho de 2024.

8 Parágrafo único. A atualização da lista mencionada no caput pela autoridade competente será precedida de consulta ao órgão regulador setorial competente, se houver, assim como de consulta e de audiência públicas e de análise de impacto regulatório

9 Este prazo pode ser suspenso em função de todas as restrições em virtude da pandemia pelo COVID-19.

10 LIMA, Cíntia Rosa Pereira de; QUINTILIANO, Leonardo David. O mito de Pigmalião e as tendências da responsabilidade civil por danos decorrentes do uso de Inteligência Artificial. In: Migalhas de IA e Proteção de Dados. Disponível aqui, publicado em 28 de junho de 2024.