Diretiva (UE) sobre o dever de diligência/sustentabilidade: Reflexos para a responsabilidade civil
terça-feira, 21 de maio de 2024
Atualizado em 20 de maio de 2024 11:30
A classificação dos estágios de desenvolvimento do Direito Societário da atual União Europeia, proposta por Stefan Grundmann, nos é útil para a compreensão do contexto em que é aprovada a Diretiva relativa ao dever de diligência das empresas em matéria de sustentabilidade e de Direitos Humanos. O professor da Humboldt-Universitat identifica três estágios para o seu desenvolvimento: a Black-box, a Red-box e a Green-box. Cada um desses estágios será tratado brevemente, seguindo algum comentário sobre a nova Diretiva e suas potenciais repercussões para os empresários brasileiros (especialmente as sociedades subsidiárias de controladoras europeias e as sociedades fornecedoras de sociedades europeias).
No primeiro estágio - Black-box - relativo às décadas de 1970 a 1990 -, a harmonização do Direito da União Europeia (à época Comunidade Europeia), no que se refere ao Direito Societário, em sentido amplo, concentrou-se na construção de medidas para garantir informações necessárias para que as pessoas que não participam do controle superassem a assimetria de informações existente entre os que participam do controle e aqueles outros investidores que não participam. Essa assimetria de informações, em relação ao regime jurídico que rege o caso, é particularmente forte quando os respectivos Direitos dos Estados-membros da União divergem em relação a alguns parâmetros centrais (não harmonizados), especificamente aqueles relacionados à confiabilidade jurídica e econômica das estruturas que acomodam o investimento. Em tal abordagem, o interior da empresa não é uma preocupação especial - daí a denominação Black-box; tudo gira em torno da confiabilidade externa. Os outsiders, nesse contexto, são principalmente credores e investidores, inclusive investidores em ações não integrantes do bloco de controle. Por credores e investidores compreende-se aqueles que concedem crédito de longo prazo, muitas vezes de grande porte, a seus parceiros em transações e dependem particularmente de uma base confiável para essa relação credor-devedor.1
Durante os anos de transição, ou seja, na década de 1990, tanto o foco no Mercado Interno como a principal meta da União, quanto o respectivo ator racional e o modelo de informação foram questionados, modificados e, de certa forma, substituídos.2
Esses anos também trouxeram uma grande facilitação do movimento intracomunitário ou da União, maior fluidez e melhores instrumentos e mercados para instrumentos financeiros, especialmente ações. Isso sustenta uma atitude diferente em relação ao empoderamento de grandes círculos de atores, com uma variedade de origens, bem como tipos variados de possibilidades de troca dentro da União. Em outras palavras, os anos de transição prepararam o terreno para uma abordagem Red-box, cujo desenvolvimento jurídico principal ocorreu na década de 2000.3
Alguns desses desenvolvimentos na década de 1990 se destacam. Por exemplo, o foco no Mercado Interno como o principal objetivo da Comunidade foi substituído pelo objetivo da Comunidade de se tornar uma União política, que, por sua vez, foi decididamente realizado com o Tratado de Maastricht (1992). Entre os elementos consagrados nesse Tratado, destacam-se a concepção e os critérios para a introdução e a admissão de uma moeda comum em 1999/2002. Outros desenvolvimentos fundamentais incluem a Política Externa e de Segurança Comum, incluindo a Defesa (2º pilar) e a Cooperação nas áreas de Justiça e Assuntos Internos (3º pilar).4
Com esse terreno preparado, a década de 2000 (Red-box) apresentou movimento legiferante em nível da União Europeia visando o empoderamento dos tomadores de decisão, em vários níveis, e tornando-o o impulso central do desenvolvimento do Direito Societário da UE. Esse conceito foi fundamentado em três aspectos principais: (i) a participação dos acionistas; (ii) a participação em vários níveis foi incentivada, incluindo a capacitação dos acionistas no momento das aquisições e dos trabalhadores para participarem da tomada de decisões com relação ao ambiente de trabalho; (iii) o terceiro, mais relacionado ao cenário institucional, se deve à capacitação da voz multifacetada que passa a ser vista em nível da UE e é sustentada por normas que facilitam e aprimoram a base de informações para a tomada de decisões adequadas.5
O momento do atual desenvolvimento do direito societário da União Europeia é classificado por Stefan Grundmann como sendo o da Green-box. O conceito central proposto pelo professor da Humboldt-Universitat baseia-se na ideia de que a responsabilidade para com a coletividade e entre gerações é primordial, tanto nas atividades econômicas como no direito societário. O professor menciona três exemplos claros dessa visão identificados nos megaprojetos do direito das sociedades da EU, os quais estão presentes na última década: (i) não externalização dos efeitos adversos da ação privada para a coletividade; (ii) proteção proativa dos valores fundamentais, quando a economia europeia é a fonte de riscos para esses valores; e (iii) apelos aos mais importantes decisores para que partilhem as suas estratégias, as tornem visíveis, as submetam à crítica e, além disso, se abstenham de injustiças.6
Situada nesse derradeiro estágio, a nova Diretiva adota uma estratégia de regulação, atendendo aos valores europeus fundamentais e impondo obrigações às empresas constituídas em conformidade com a legislação de um Estado-Membro e que preencham os requisitos previstos em seu art. 2.º. Com essa estratégia, visa à proteção dos Direitos Humanos e da Sustentabilidade Ambiental em três eixos: o das próprias operações da sociedade (medidas de controle interno da gestão); o das operações das filiais (medidas de controle das subsidiárias); e o das operações das sociedades integrantes da cadeia de valor (medidas de controle externo).
Para cumprirem as obrigações em matéria de direitos humanos e de ambiente, as empresas hão de observar o dever de diligência. O conteúdo desse dever é explicitado nos cinco artigos da Diretiva (4.º a 8. º). No essencial, tal dever traduz-se na adoção de procedimentos e medidas adequados para identificar os efeitos negativos, potenciais ou reais, nos direitos humanos e no ambiente relacionados com as operações da sociedade, de suas filiais (subsidiárias) e/ou das sociedades integrantes das respectivas cadeias de valor, prevenir ou atenuar os efeitos negativos potenciais e fazer cessar ou minimizar os efeitos negativos reais.7
A violação do dever de diligência pode levar à aplicação de sanções de natureza administrativa (art. 20) e de responsabilidade civil (art. 22). Essa responsabilidade civil pressupõe o fato ilícito e culposo (doloso ou negligente) advindo da quebra do dever de prevenir e/ou atenuar efeitos negativos potenciais ou de fazer cessar/minimizar efeitos negativos reais; um dano ou prejuízo (patrimonial ou não patrimonial) sofrido por pessoas protegidas; e o nexo de causalidade entre aquele fato e o dano.8
Dos três eixos componentes da estratégia regulatória da Diretiva, os dois últimos possuem o potencial de impactarem em sociedades sediadas no Brasil: o das operações das filiais (medidas de controle das subsidiárias); e o das operações das sociedades integrantes da cadeia de valor (medidas de controle externo).
Cuidamos de início das operações das filiais: Coutinho de Abreu adverte que, neste eixo regulatório, a Diretiva provoca um alargamento considerável na harmonização comunitário-europeia do direito dos grupos empresariais. Por um lado, consagra-se o dever de diligência ou de cuidado das sociedades controladoras em matéria de direitos humanos e meio-ambiente para com partes interessadas das sociedades subsidiárias e a responsabilidade correspondente. Mas também se consagra, por outo lado, e em contrapartida, o direito (o poder-dever) de as sociedades controladoras darem instruções vinculantes às controladas nessas matérias.9
Sobre o último aspecto, destacamos que no Direito Societário brasileiro não há a denominada reserva de matéria para a gestão na generalidade das sociedades, cabendo, desde que lícitas, as instruções vinculativas da assembleia ou reunião de sócios - dominadas pelo controlador - para os administradores.
Sobreleva dizer que, em sede deste breve comentário, a regulação europeia atinge o plano material da formação da vontade social, isto é, dos critérios que parametrizam a responsabilidade dos gestores - em contraste com medidas alternativas que impactariam na composição e atribuição dos órgãos responsáveis pela formação da vontade social (plano formal).
A razão disso, perspectivando pelos fundamentos, é a de que o nexus contratual, como afirmava Oliver Williamson, não é neutro.10 Há discricionariedade dos administradores e controlares (inclusive da sociedade controladora) na tomada de decisões que manifestam, em última análise, o comando hierárquico que, numa abordagem coaseana, caracteriza a empresa: identificar esse comando nas estruturas societárias componentes do grupo e parametrizá-la, via responsabilização, parece-nos ter sido a opção do legislador europeu de 2024.
Por fim, tendo em conta a cadeia de valor ("as atividades relacionadas com a produção de bens ou a prestação de serviços por uma empresa, incluindo o desenvolvimento do produto ou do serviço e a utilização e eliminação do produto, bem como as atividades conexas das relações empresariais estabelecidas a montante e a jusante da empresa") - parece-nos - indica a potencial caracterização do conhecido controle externo entre o potencial contratante europeu e as potenciais sociedades (mas não só) fornecedoras brasileiras: há diversas medidas previstas pela Lei europeia que repercutem virtualmente no controle e no funcionamento de eventuais contratadas: ilustrativamente, citamos o dever que incide sobre as empresas contratantes de "[p]rocurar obter garantias contratuais dos parceiros diretos com os quais tenham uma relação empresarial estabelecida de que se comprometem a assegurar o cumprimento do código de conduta e, se necessário, do plano de medidas corretivas, nomeadamente procurando obter garantias contratuais correspondentes junto dos seus parceiros, na medida em que façam parte da cadeia de valor (contratação em cascata)" (alínea c do número 3 do art. 8 º da Diretiva).
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1 GRUNDMANN, Stefan. European Company Law in transformation-strive for participation and sustainability. Yearbook of European Law, 2023, yead002.
2 GRUNDMANN, Stefan. European Company Law in transformation-strive for participation and sustainability. Yearbook of European Law, 2023, yead002.
3 GRUNDMANN, Stefan. European Company Law in transformation-strive for participation and sustainability. Yearbook of European Law, 2023, yead002.
4 GRUNDMANN, Stefan. European Company Law in transformation-strive for participation and sustainability. Yearbook of European Law, 2023, yead002.
5 GRUNDMANN, Stefan. European Company Law in transformation-strive for participation and sustainability. Yearbook of European Law, 2023, yead002.
6 GRUNDMANN, Stefan. European Company Law in transformation-strive for participation and sustainability. Yearbook of European Law, 2023, yead002.
7 ABREU, Jorge Manuel Coutinho de. Governação societária e sustentabilidade no direito europeu. Direito das Sociedades em Revista, Lisboa, Ano 16, V. 31, Março de 2024.
8 ABREU, Jorge Manuel Coutinho de. Governação societária e sustentabilidade no direito europeu. Direito das Sociedades em Revista, Lisboa, Ano 16, V. 31, Março de 2024.
9 ABREU, Jorge Manuel Coutinho de. Governação societária e sustentabilidade no direito europeu. Direito das Sociedades em Revista, Lisboa, Ano 16, V. 31, Março de 2024.
10 WILLIAMSON, Oliver E. The mechanisms of governance. Oxford university press, 1996.