Notas sobre a reparação civil pela Síndrome de Burnout: Uma lesão à saúde e à boa-fé objetiva
quinta-feira, 9 de maio de 2024
Atualizado em 8 de maio de 2024 11:48
Notas introdutórias
É de fácil constatação a crescente demanda reparatória decorrente dos contratos de trabalho. Só em 2023, as ações de indenizações por dano moral têm ocupado lugar de destaque no ranking dos vinte assuntos mais recorrentes na Justiça do Trabalho.1 Vivemos na era dos danos, e o ambiente laboral se revela como um cenário favorável para isso. Lesões à saúde, à integridade psicofísica e ao tempo livre2, são alguns dos mais diversos exemplos de hipóteses lesivas às quais os empregados são submetidos diariamente.
Metas inatingíveis, extensas jornadas de trabalho, exposição a constantes situações de estresse, medo de não ser promovido, de ser demitido, situações de assédio, e tantas outras que têm destruído a saúde mental das pessoas, levando-as a um desgaste emocional maior do que a capacidade para suportá-lo e geri-lo. Os quadros de esgotamento profissional são cada vez mais corriqueiros, não podendo mais os operadores do Direito virarem as costas para a necessidade de se criar claros critérios para frear condutas ilícitas nas relações de trabalho.
Eis a Síndrome de Burnout, a "doença do século" que tem acometido inúmeros trabalhadores. Uma reação de esgotamento físico e mental experimentada por diversos profissionais que são, na grande maioria dos casos, submetidos a ambientes de trabalho insalubres e desumanos. Em outras palavras, é uma resposta ao estresse laboral crônico, de causa multifatórial e efeitos devastadores no cotidiano daqueles que são acometidos pela doença.
Estudos apontam que o Brasil é o segundo país do mundo em número de diagnósticos, atrás apenas do Japão, onde 70% da população é afetada pelo problema. Conforme dados da Associação Nacional de Medicina do Trabalho (ANAMT), cerca de 30% dos trabalhadores brasileiros sofrem com a síndrome, o que tem reclamado do direito, sobretudo civil, disciplina jurídica apta a regulamentar suas vicissitudes, criando mecanismos para frear condutas ilícitas e reparar danos.3
Desde abril de 2022, a Organização Mundial da Saúde (OMS), por meio da CID11, tornou o Burnout uma doença ocupacional, resultante das específicas condições do ambiente de trabalho ao qual os empregados são submetidos e não do indivíduo em si. A constatação da grande quantidade de diagnósticos no país gera questionamentos sobre a necessidade de tratar este como um problema de saúde pública, não só em razão das consequências negativas para a saúde dos trabalhadores, mas também em razão das consequências socioeconômicas, tais como absenteísmo, rotatividade, aumento de gastos, entre outras, que a referida síndrome traz.
Neste cenário de causação de danos, a disciplina da responsabilidade civil passa a ocupar papel de destaque na tentativa de garantir aos trabalhadores a reparação integral pelos danos sofridos. A despeito da Jurisdição Trabalhista ser a competente para julgar as ações de reparação decorrentes da relação laboral, a matéria de fundo que as permeia é eminentemente civil, daí a importância de estudar o tema dentro do Direito Civil.
Saúde e boa-fé objetiva
A relação entre saúde mental e direito no contexto dos ambientes de trabalho é um tema de crescente importância e relevância na sociedade contemporânea. A saúde mental dos trabalhadores é um componente vital para o bem-estar geral e o funcionamento eficaz das organizações. No entanto, a pressão constante, as demandas excessivas e um ambiente de trabalho adverso podem contribuir significativamente para o surgimento de problemas de saúde mental, como estresse, ansiedade e a cada vez mais corriqueira síndrome de Burnout.
Se por um longo período as doenças mentais foram associadas à errônea noção de indolência, hoje, estudos dos mais diversos saberes demonstram os severos riscos de não tratar as doenças mentais como uma questão de saúde pública, que merece ser amplamente combatida. Nesse cenário, diversos países tem reconhecido a importância de proteger a saúde mental dos trabalhadores por meio do estabelecimento de diretrizes para garantir ambientes de trabalho seguros e saudáveis.
Tendo por base a compreensão da síndrome de burnout como um dano passível de reparação, é possível entender a configuração da dita patologia como, a um só tempo, uma lesão à saúde do trabalhador e à boa-fé objetiva que incide nas relações contratuais de trabalho, impondo a ambas as partes um dever de proteção aos recíprocos interesses. A constatação da existência de nexo de causalidade entre a conduta do empregador e o acometimento da doença tem suscitado discussões sobre o dever de reparar os danos deste fenômeno, que interfere de maneira abrupta no cotidiano da vítima.
Compete ao empregador, como detentor do poder diretivo, promover um ambiente laboral saudável e seguro, reduzindo os riscos inerentes ao trabalho. A bem da verdade, o dever de promover um ambiente de trabalho salubre parece ter dois fundamentos. O primeiro deles, de matriz constitucional, refere-se ao direito fundamental à saúde que, em razão da sua eficácia horizontal, aplica-se diretamente às relações privadas, o que inclui as relações de trabalho, marcadas pela vulnerabilidade do empregado, impondo ao empregador um dever de introduzir, fiscalizar e fazer cumprir as normas de medicina do trabalho. O segundo, refere-se à incidência da boa-fé objetiva no contrato de trabalho que, entre outros deveres, impõe às partes a obrigação de observância de deveres anexos, dentre os quais se destaca o dever de cooperação e proteção dos recíprocos interesses.
Como a relação contratual se volta ao adimplemento, incorre em inadimplemento o empregador que, por ato comissivo ou omissivo, direto ou indireto, lesiona a saúde de seu empregado, falhando no dever imposto pela boa-fé objetiva de dedicar todos os esforços necessários para protegê-la. Configurada a lesão à saúde e à boa-fé objetiva, deflagra-se o dever de reparar que ensejará a adequada análise dos pressupostos da responsabilidade civil e dos critérios para quantificação dos danos.4
Todavia, merece destaque o fato de ser possível, em matéria de nexo causal, constatar que não só na Justiça Comum, mas na Justiça do Trabalho, é corriqueira a confusão dos conceitos de causalidade e culpabilidade.5 Assim, a despeito da responsabilidade objetiva do empregador, ou sua presunção de culpa - discussão para outro momento -, não se exime o magistrado do dever de analisar o nexo causal, verificando qual a causa que contribuiu direta e necessariamente com o resultado danoso. A respeito do burnout, deve o julgador, por meio da análise dos autos, perquirir se o acometimento da doença é efeito necessário da conduta do empregador.
Embora a Síndrome do Esgotamento, na maior parte dos casos, seja resultado do comportamento comissivo ou omissivo do patrão, é possível vislumbrar hipóteses em que se verifica o rompimento do nexo causal, não devendo este responder pelo ocorrido. Mesmo no ambiente assistencialista da Justiça do Trabalho, havendo a interrupção do nexo, deve esta ser reconhecida, ainda que se opere contra os interesses do empregado, pois não há dever de reparar sem vínculo de causalidade.
Um caminho a trilhar
Na atual sociedade, tornamo-nos escravos do trabalho. Conforme descrevem Byung-Chul Han, a sociedade do trabalho e desempenho não é livre. Ela gera novas coerções. Nessa sociedade coercitiva carregamos conosco nosso campo de trabalho. Somos ao mesmo tempo prisioneiros e vigia, vítima e agressor. Mesmo sem senhorio, acabamos explorando a nós mesmos.6 Não que o trabalho não seja importante, mas não podemos deixar que ele nos tire a vida em seu sentido mais amplo.
Deve-se ter claro que, de longe, não se busca depreciar o valor do trabalho. Reconhece-se que o trabalho é fundamental a todo ser humano, e, mais ainda, à dinâmica da vida em sociedade. É o trabalho humano que nos possibilita alcançarmos e termos as coisas que hoje existem. O que se busca, na verdade, é reconhecer que ao lado deste há outros valores importantes, e que uma combinação harmônica entre eles é fundamental à garantia e à plena manifestação da dignidade humana, norte da Constituição da República.
É preciso repensar a forma como o trabalho é organizado, nos mecanismos de operacionalização da rotina e no manejo dos recursos humanos. O caminho é longo, árduo e como qualquer mudança requer paciência. Entretanto, é necessário que se comece hoje para que, nos próximos anos, diagnósticos de burnout tornem-se coisa rara e a saúde mental deixe ser hipótese de exceção.
Referências
DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 11. ed. rev., atual. e ampl. por Rui Berford Dias. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Trad. Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2015.
MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Lesão ao tempo do consumidor no direito brasileiro. Revista de Direito da Responsabilidade, a. 2, 2020, p. 158-176. Disponível aqui. Acesso em: 22 abr. 2024.
MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Limites ao princípio da reparação integral no direito brasileiro. Civilistica.com, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 1-25, 2018. Disponível aqui. Acesso em: 22 abr. 2024.
SILVA JUNIOR, Anderson Luis Motta da. A reparação da lesão ao tempo para além das relações de consumo: o burnout como resultado de uma lesão ao tempo livre do trabalhador. In: MOTTA, Anderson; MOUTINHO, Carla; CABRAL, Marcelo Marques (Orgs.).Responsabilidade civil e seus rumos contemporâneos: estudos em homenagem ao Professor Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho. Indaiatuba: Foco, 2024.
SILVA JUNIOR, Anderson Luis Motta da. A responsabilidade civil pela Síndrome de Burnout: critérios para reparação de danos nos contratos de trabalho. 2023. Dissertação de Mestrado em Direito - Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2023.
SILVA, Wilson Melo da. Responsabilidade sem culpa. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1974.
SÍNDROME de Burnout: Brasil é o segundo país com mais casos diagnosticados. Estado de Minas, Belo Horizonte, 26 mai. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 22 abr. 2024.
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1 Assuntos mais recorrentes na Justiça do Trabalho até setembro de 2023: 1º - Horas Extras (326.061 processos); 2º - Multa de 40% do FGTS (315.464 processos); 3º - Adicional de insalubridade (285.527 processos); 4º - Multa do Artigo 477 da CLT (238.137 processos); 5º - Verbas Rescisórias (249.55 processos); 6º - Aviso Prévio (238.137 processos); 7º - Horas Extras / Adicional de Horas Extras (238.240 processos); 8º - Multa do Artigo 467 da CLT (215.201 processos); 9º - Intervalo Intrajornada (209.877 processos); 10º - Férias proporcionais (199.248 processos); 11º - FGTS (191.609 processos); 12º - Honorário na Justiça do Trabalho (185.361 processos); 13º - Indenização por Dano Moral (182.519 processos); 14º - Verbas Rescisórias / 13º Salário (178.604 processos); 15º - Rescisão Indireta (173.442 processos); 16º - Reconhecimento de Relação de Emprego (152.550 processos); 17º - Horas Extras / Reflexos (120.302 processos); 18º - Saldo de Salário (114.736 processos); 19º - Horas Extras / Reflexos Intervalo Intrajornada / Adicional de Hora Extra (109.300 processos); 20º - Adicional de Periculosidade (104.088 processos) (TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO. Assuntos na Justiça do Trabalho: ranking de assuntos mais recorrentes na Justiça do Trabalho até novembro de 2023. [S.l.]: TST, [2023]. Disponível aqui. Acesso em: 21 dez. 2023
2 Sobre a temática da lesão ao tempo, consultar: MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Lesão ao tempo do consumidor no direito brasileiro. Revista de Direito da Responsabilidade, a. 2, 2020, p. 158-176. Disponível aqui. Ver também: SILVA JUNIOR, Anderson Luis Motta da. A reparação da lesão ao tempo para além das relações de consumo: o burnout como resultado de uma lesão ao tempo livre do trabalhador. In: MOTTA, Anderson; MOUTINHO, Carla; CABRAL, Marcelo Marques (Orgs.). Responsabilidade civil e seus rumos contemporâneos: estudos em homenagem ao Professor Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho. Indaiatuba: Foco, 2024.
3 Síndrome de Burnout: Brasil é o segundo país com mais casos diagnosticados. Estado de Minas, Belo Horizonte, 26 mai. 2023. Disponível aqui.
4 Sobre o princípio da reparação integral destaca Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho que, "a reparação integral, objetivo central da responsabilidade civil contemporânea, traduz conquista recente do direito brasileiro. Para tanto, concorreram avanços nas três dimensões de seus pilares clássicos: dano, nexo de causalidade e culpa. Mesmo descrevendo trajetória não linear, o fato é que, após décadas de desencontros, pode-se identificar um sentido evidente para o qual aponta a evolução da matéria: garantir a cada vítima o correspondente ressarcimento, capaz de cobrir toda a extensão dos efeitos danosos sofridos, e nada além disso" (MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Limites ao princípio da reparação integral no direito brasileiro. Civilistica.com, Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, p. 1-25, 2018. Disponível aqui. Acesso em: 22 abr. 2024).
5 Sobre o tema destaca Wilson Melo da Silva que, "causalidade não se confunde com culpabilidade. (§) A causalidade seria um elemento comum tanto na doutrina da responsabilidade por culpa como na responsabilidade meramente objetiva. (§) E, por isso mesmo, estaria sujeito o problema do nexo causal, lá e cá, às mesmas regras, às mesmas críticas e às mesmas vicissitudes" (SILVA, Wilson Melo da. Responsabilidade sem culpa. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1974, p. 132). No mesmo sentido de não ser a culpabilidade, mas sim a causalidade, o melhor critério para determinar a obrigação de indenizar, destaca Aguiar Dias que, "não é o grau de culpa, mas o grau de participação na produção do evento danoso (...) que deve indicar a quem toca contribuir com cota maior ou até com toda a indenização" (DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 11. ed. rev., atual. e ampl. por Rui Berford Dias. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 47).
6 HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Trad. Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2015, p. 25.