Dano psíquico nas redes sociais: uma releitura do direito ao sossego
quinta-feira, 28 de março de 2024
Atualizado às 07:45
As empresas que oferecem os serviços de redes sociais estão sendo acusadas de, intencionalmente, provocarem doenças mentais nos usuários. Em que medida essa situação instiga a responsabilidade civil a construir uma solução jurídica?
A utilização da tecnologia, em especial dos smartphones e demais aparelhos interligados na internet, tem alterado o mundo substancialmente, tornando a realidade cada vez mais digitalizada. É especialmente no convívio social que os aparelhos tecnológicos têm promovido imutáveis transformações, afinal, atualmente a vida de uma pessoa pode até ser menorizada se não tiver sua projeção na internet. Dito de outro modo, não expondo o seu corpo eletrônico1 no mundo de conexões virtuais a pessoa fica isolada socialmente, podendo até não ser sequer identificada no convívio em sociedade. Não há escapatória: atualmente, para ser reconhecido, é preciso estar inserido nas redes sociais!
E são estes aplicativos que permitem a troca de mensagens, fotos, vídeos, ou mesmo a organização de grupos virtuais, como os que reúnem familiares, colegas de trabalho, amigos ou pessoas que compartilham os mesmos hobbys. Inegavelmente, para cada setor social é possível identificar um ambiente nas redes sociais, dos relacionamentos amorosos aos ideais políticos e/ou religiosos2.
Ocorre que, apesar de aparentemente inofensivas, essas redes sociais embolsam gigantescos lucros, se valendo dos dados pessoais dos próprios usuários que possibilitam o oferecimento de um amplo espaço para os negócios jurídicos virtuais, em especial a publicidade. Assim, as redes sociais, em sua maioria, apesar de aparentemente gratuitas, tem a sua lógica de mercado na captação de dados pessoais dos usuários, pincipalmente a partir do rastreamento do comportamento virtual (o "profiling"3) para a promoção de publicidades preciosamente direcionada aos internautas que representam maior potencial de consumo à oferta.
É exatamente por isso que o funcionamento das redes sociais é estruturado para fazer com que o usuário permaneça o maior tempo possível conectado, consumindo as inúmeras ofertas que surgem em seus aparelhos eletrônicos.
Conforme mencionado, a partir dos dados pessoais precisamente coletados, na tônica do "capitalismo da vigilância"4, as publicidades despertam incontroláveis desejos de consumo, que vão de produtos e serviços até mesmo ao próprio estilo de vida oferecido como perfeito5.
O resultado desse tipo de estrutura já está sendo desenhado pela ciência: o uso das redes sociais é causa para a explosão do diagnóstico de doenças mentais6, com nítidos danos psíquicos7 aos usuários8 de modo que as redes sociais já são consideradas o tabaco do século XXI9.
Consoante se nota, não há como negar a relação entre o cigarro e as redes sociais, seja pelo vício intencionalmente produzido, seja pelos danos devastadores causados em razão do consumo espaçado ao longo do tempo. E é exatamente em razão disso que surge o questionamento, que pode ser desenhado como um verdadeiro problema de pesquisa: de que maneira as redes sociais, em razão do próprio modo de funcionamento, devem ser responsabilizadas pelos danos psíquicos causados aos usuários?
A principal hipótese delineada é a de que a partir do momento em que as redes sociais lucram com o acesso dos usuários, destinatários finais, configura-se inegável relação de consumo. Assim, havendo qualquer dano decorrente do fornecimento desse serviço é possível defender a existência de responsabilidade civil, principalmente quando a estrutura por trás das redes sociais é intencionalmente construída para causar vício e ampliar ao máximo o tempo de uso, irrefletido, dos usuários consumidores. A responsabilidade torna-se ainda mais clara quando os usuários são crianças ou adolescentes.
Essa discussão tem ganhado maior relevância ao se destacar que nos últimos anos estão sendo noticiados processos promovidos por usuários e familiares em desfavor das empresas de redes sociais, como a Meta (proprietária de Facebook e Instagram), o TikTok e o Snap Inc. (proprietária do Snapchat), pelos danos psíquicos que ocasionam. As ações são fundamentadas, principalmente, no fato de as plataformas causarem danos aos usuários de forma intencional10.
Sem dúvidas, um dos casos judiciais mais emblemáticos é o da adolescente britânica Molly Russell, que aos 14 anos, vivenciando gravíssimo caso de depressão e exposta a conteúdos negativos e depressivos no Instagram, acabou suicidando. O caso ganhou repercussão a partir da demonstração, via judicial, de que a sua morte foi decorrência dos efeitos negativos do conteúdo online11. No Brasil, no final de 2023 os noticiários divulgaram uma investigação em desfavor do perfil no Instagram denominado "Choquei" por suspeita de induzir ao suicídio a jovem Jéssica Canedo, que foi vítima de uma fakenews sobre um suposto relacionamento amoroso com o influenciador Whindersson Nunes12. Na oportunidade os familiares da vítima demonstraram interesse em buscar responsabilização civil dos envolvidos.
Essas ações estimulam uma releitura da concepção outrora dada ao direito ao sossego, como direito que protege as pessoas de práticas publicitárias virtuais não solicitadas, impulsionadas a partir de dados pessoais, induzindo ao consumo irrefletido e impulsivo13. Isso porque, a partir de uma espécie de "litigância digital"14 que se observa, é possível descrever a possibilidade de os usuários de redes sociais pugnarem pelos danos sofridos em razão do uso de dados pessoais pelas empresas responsáveis, especialmente pelo assédio de consumo, em suas diversas facetas, causador das supracitadas doenças mentais.
Neste sentido, a responsabilidade civil pela mostra-se como caminho viável na concretização da proteção que se pretende aos usuários de redes sociais, como viés negativo da proteção de dados pessoais, e como compensação por todos os danos gerados pelo uso indevido de dados, em desfavor do próprio titular. No caso, o uso de dados pessoais pelas redes sociais é a fonte para a estruturação do sistema que promove o vício e, em último caso, a depressão e demais doenças correlatas.
Essas considerações implicam no reconhecimento do poder dos agentes privados que dominam o mercado de redes sociais digitais, tendo em contrapartida a vulnerabilidade dos consumidores, que em regra estão em condições socioeconômicas, técnicas e jurídicas inferiores15. Isto é, as relações virtuais são ambiente propício para abusos e violações, exigindo uma hermenêutica jurídica expansiva, focada na tutela da pessoa humana.
Por todo o exposto, longe de traçar conceitos fechados e definitivos, sempre arriscados em um contexto de rápidas e profundas mudanças, o presente texto visa levantar possibilidades a serem analisadas e repensadas no que se refere as redes sociais. Isso porque o ser humano tem, em sua integridade, o fator psicofísico, de modo que o mundo virtual, de livre acesso, deve ser fundamentado na liberdade, inclusive de não ser dolosamente exposto a danos psíquicos enquanto conectado em rede. Essa é a longa estrada que deve ser percorrida através das ações promovidas contra as big techs.
Referências:
BASAN, Arthur Pinheiro. Publicidade digital e proteção de dados pessoais: o direito ao sossego. Indaiatuba: Editora Foco, 2021.
BASAN, Arthur Pinheiro; MARTINS, Guilherme Magalhães. Limites ao neuromarketing: a tutela do corpo eletrônico por meio dos dados neurais. Revista de Direito do Consumidor: RDC, São Paulo, v. 31, n. 143, p. 259-283, set./out. 2022.
CRAWFORD, Angus; SMITH, Tony. Viciados em redes sociais processam 'gigantes da tecnologia' nos EUA. BBC News. 21 Nov. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 18 de fev. de 2024
ENGELMANN, Wilson (Org.) ; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura (Org.) . Tutela jurídica do corpo eletrônico: novos desafios ao direito digital. 1. ed. Indaiatuba: Foco, 2022
GIUNTINI, Felipe Taliar. An approach to the sequential evaluation of emotional behaviors of depressive users on social networks in groups and individually. 2021. Tese (Doutorado em Ciências de Computação e Matemática Computacional) - Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação, Universidade de São Paulo, São Carlos, 2021. doi:10.11606/T.55.2021.tde-18082021-093843. Acesso em 17 de fev. de 2024
HUNT, Melissa G.; MARX, Rachel; COURTNEY Lipson; YOUNG, Jordyn. No more FOMO: limiting social media decreases loneliness and depression. Journal of Social and Clinical Psychology, [S. l.], v. 37, n. 10, p. 751-768, 2018. Disponível aqui. Acesso em: 18 de fev. de 2024.
MACBRIDE, Elizabeth. Is social media the tobacco industry of the 21st Century? [S.l.], 31 Dec. 2017. Disponível aqui. Acesso em: 17 fev. 2024
ROYAL SOCIETY FOR PUBLIC HEALTH (RSPH). Instagram ranked worst for young people's mental health younger people. London, 19 May 2017. Disponível aqui.. Acesso em: 18 de fev. 2024.
ZUBOFF, Shoshana. The age of surveillance capitalism: the fight for a human future at the new frontier of power. Nova York: Public Affairs, 2019.
1 À título de exemplo, cita-se o site "Amor em Cristo", que propõe promover relacionamentos entre pessoas declaradas como evangélicas. Trata-se de uma singela demonstração de como as redes sociais virtuais entrelaçam setores da vida das pessoas. Disponível aqui. Acesso em: 16 fev. 2024.
2 Pode-se dizer que o "corpo eletrônico" é o conjunto de dados pessoais que compõe a projeção da pessoa na internet. Sobre o tema, recomenda-se a riquíssima obra: COLOMBO, Cristiano (Org.) ; ENGELMANN, Wilson (Org.) ; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura (Org.) . Tutela jurídica do corpo eletrônico: novos desafios ao direito digital. 1. ed. Indaiatuba: Foco, 2022
3 A preocupação em tutelar o profiling não passou em branco pela regulamentação brasileira. A LGPD prevê, em seu artigo 12,§ 2º que: "Poderão ser igualmente considerados como dados pessoais, para os fins desta Lei, aqueles utilizados para formação do perfil comportamental de determinada pessoa natural, se identificada."
4 ZUBOFF, Shoshana. The age of surveillance capitalism: the fight for a human future at the new frontier of power. Nova York: Public Affairs, 2019.
5 Frequentemente as mídias digitais apresentam pesquisas indicando que profissões como influenciador digital, youtuber, tiktoker e afins crescem no desejo professional de crianças e jovens. Cita-se como exemplo a reportagem da CBN: Disponível aqui. Acesso em: 16 fev. 2024.
6 O comportamento dos usuários de redes sociais já foi estudado para o desenvolvimento de um padrão de postagens que demonstram que a pessoa está sofrendo de depressão. O estudo indica, com rigor científico, como as redes sociais contribuem para o desenvolvimento desse tipo de doença mental. Recomenda-se a leitura: GIUNTINI, Felipe Taliar. An approach to the sequential evaluation of emotional behaviors of depressive users on social networks in groups and individually. 2021. Tese (Doutorado em Ciências de Computação e Matemática Computacional) - Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação, Universidade de São Paulo, São Carlos, 2021. doi:10.11606/T.55.2021.tde-18082021-093843. Acesso em 17 de fev. de 2024
7 A rede social "Instagram" foi classificada como a pior rede para a saúde mental dos jovens, segundo estudo elaborado pela Royal Society for Public Health (RSPH), a organização de saúde pública mais antiga do Reino Unido. ROYAL SOCIETY FOR PUBLIC HEALTH (RSPH). Instagram ranked worst for young people's mental health younger people. London, 19 May 2017. Disponível aqui. Acesso em: 18 de fev. 2024.
8 Cita-se, como exemplo, a Nomofobia, considerado um transtorno de ansiedade decorrente do medo de ficar sem o contato imediato com aparelhos eletrônicos e as redes sociais. In: HUNT, Melissa G.; MARX, Rachel; COURTNEY Lipson; YOUNG, Jordyn. No more FOMO: limiting social media decreases loneliness and depression. Journal of Social and Clinical Psychology, [S. l.], v. 37, n. 10, p. 751-768, 2018. Disponível aqui. Acesso em: 18 de fev. de 2024.
9 MACBRIDE, Elizabeth. Is social media the tobacco industry of the 21st Century? [S.l.], 31 Dec. 2017. Disponível aqui. Acesso em: 17 fev. 2024
10 A BBC News publicou no final de 2023 uma importante reportagem tratando de alguns desses processos. O título da publicação, "viciados em redes sociais processam gigantes da tecnologia nos EUA" In: CRAWFORD, Angus; SMITH, Tony. Viciados em redes sociais processam 'gigantes da tecnologia' nos EUA. BBC News. 21 Nov. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 18 de fev. de 2024
11 O caso teve grande repercussão midiática. Cita-se como exemplo a reportagem do O Globo: Disponível aqui. Acesso em: 18 fev. 2024
12 A morte da jovem gerou ampla discussão sobre responsabilidade na internet e fakenews Cita-se como exemplo a reportagem da CNN, disponível aqui. Acesso em: 18 fev. 2024
13 BASAN, Arthur Pinheiro. Publicidade digital e proteção de dados pessoais: o direito ao sossego. Indaiatuba: Editora Foco, 2021.
14 No Direito Ambiental entende-se como "litigância climática" o conjunto de ações judiciais movidos contra empresas, governos e outras entidades que são consideradas responsáveis pelas mudanças climáticas e pelos danos ambientais relacionados. Logo, é possível fazer uma correlação, apontando uma verdadeira "litigância" que vem surgindo contra as big techs e os danos causados aos usuários.
15 A vulnerabilidade do consumidor, frente ao mercado de consumo digital, ganha ainda maior destaque ao se analisar a evolução do neuromarketing, Sobre o assunto, recomenda-se a leitura: BASAN, Arthur Pinheiro; MARTINS, Guilherme Magalhães. Limites ao neuromarketing: a tutela do corpo eletrônico por meio dos dados neurais. Revista de Direito do Consumidor: RDC, São Paulo, v. 31, n. 143, p. 259-283, set./out. 2022.