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A Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Atualizado às 08:19

O último dia 15 de dezembro representa um marco na gestão de risco e resposta a desastres no Brasil, tendo sido publicada a lei 14.755, que institui a Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (PNAB), discrimina os direitos das Populações Atingidas por Barragens (PAB), prevê o Programa de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (PDPAB) e estabelece regras de responsabilidade social dos empreendedores. O marco regulatório representa um divisor de águas tanto por prever referenciais legais para gestão de resposta de risco em face dos desastres com barragens quanto por determinar critérios e matrizes básicas para a reparação mínima dos atingidos. Este artigo busca tematizar pontos importantes do novo marco legal, inclusive para fins de sua problematização jurídica e descrição de margens de aplicação.

A lei 14.755/23 possui como contexto socioambiental de existência, inegavelmente, os desastres ocorridos em Mariana e Brumadinho. Nessa linha, dois dos pontos principais discutidos nas ações judiciais reparatórias de ambos os desastres foram convertidos em obrigação legal. São eles o auxílio emergencial e as assessorias técnicas.

O auxílio emergencial é verdadeira medida de cautelaridade reparatória. Quando ocorre um desastre, os atingidos ficam em situação de vulnerabilidade, perdendo por vezes as condições de subsistência. Não há esparçamento temporal para que o processo avance e somente no futuro ocorra a reparação. As necessidades são urgentes e devem ser custeadas pelo responsável pelo desastre. Assim, o auxílio emergencial se volta para assegurar a manutenção dos níveis de vida até que as famílias e indivíduos alcancem condições pelo menos equivalentes às precedentes ao desastre. Já as assessorias técnicas se configuram como apoio especializado para fins de suporte à população atingida, não se confundindo com as funções técnicas ou jurídicas dos órgãos e entidades públicas. A assessoria técnica atua, por exemplo, no mapeamento de necessidades e níveis de projeção dos danos ocasionados por um desastre a fim de orientar e esclarecer os atingidos a partir de diálogos internos.

Embora a lei não teça maiores critérios, a fixação da obrigação é um marco no ordenamento jurídico brasileiro, cuja sistemática processual é pouco alinhada com a necessidade de respostas dotadas de níveis de celeridade e urgência no pós-desastre. Entretanto, um ponto antecedente demanda abordagem. Quem são os atingidos por barragens? Quais são as esferas objetivas de aplicação do novo marco regulatório?

A lei 14.775 está ligada inerentemente à lei 12.334, de 20 de setembro de 2010, que trata da Política Nacional de Segurança de Barragens. Entretanto, essa ligação possui consequências de exclusão objetiva. Não serão todos os barramentos ou barragens que levarão à aplicação do diploma protetivo. Apenas as estruturas antrópicas que possuam enquadramento no artigo 1º da lei 12.334/10 é que sujeitam a aplicação do marco legal de proteção às populações atingidas. Nessa linha, por exemplo, uma estrutura de dique que não alcance 15 metros, tenha capacidade menor do que três milhões de metros cúbicos, não seja reservatório de produtos perigosos e não tenha categorização de dano potencial associado alto ou médio assim como categoria de risco alto, não será abarcada pela lei protetiva.

Por outro lado, embora os desastres com barragens estejam muito associados às barragens de rejeitos de mineração, o marco legal protetivo abrange também outros tipos de barragens. Barragens para fins hídricos, hidráulicos, assim como para fins de disposição de resíduos industriais ou de rejeitos de minérios nucleares são também abarcadas pelo novo marco regulatório.

Em relação à população atingida, há uma série de questões problemáticas que levarão a litígios e necessidade de integração hermenêutica na esfera da responsabilidade civil. Não há dúvida que a população diretamente impactada em termos físicos pelo rompimento da barragem é uma população atingida. Aliás, esse é o ponto de derivação como critério de partida de aferição dos danos sofridos. Entretanto, há categorias de atingidos com consequente diversidade de patamares protetivos e reparatórios possíveis.

O artigo 2º do novel diploma legal estabelece como gênero de população atingida por barragens todos aqueles sujeitos a um ou mais dos seguintes impactos provocados pela construção, operação, desativação ou rompimento de barragens: perda da propriedade ou perda da posse do imóvel; desvalorização de imóveis em razão de sua localização próxima ou à jusante da barragem; perda da capacidade produtiva ou de recursos naturais geradores de renda; perda de recurso natural pesqueiro ou outro recurso natural de insumo; interrupção prolongada ou alteração da qualidade da água que prejudique o abastecimento; perda de fontes de renda e trabalho; impactos negativos em atividades econômicas e sujeição a efeitos sociais, culturais e psicológicos negativos derivados de remoção ou evacuação em situação de emergência; alterações no modo de vida de populações tradicionais e povos originários; interrupção de acesso a áreas urbanas e comunidades rurais

Certamente, a situação de desvalorização de imóveis será uma das que mais celeumas desencadeará. Isto porque pelo marco regulatório não é necessário que haja a ruptura ou risco de ruptura da barragem para fins de configuração do fator reparatório. A simples potencialidade do dano já acarreta teor reparatório, configurado a partir da desvalorização. Embora o §1º do artigo 2º determine sua aplicação às Populações Atingidas por Barragens (PAB) existentes na região por ocasião do licenciamento ambiental da barragem ou de emergência decorrente de vazamento ou rompimento da estrutura, nos termos a serem fixados em regulamentação, torna-se complexo sustentar a não ocorrência do direito reparatório a todos aqueles hoje na situação de desvalorização prevista na lei.

A motivação de veto do §3º, do artigo 1º, expressou o intento de delimitação temporal do marco regulatório. Ali se destacou que contraria o interesse público permitir interpretações divergentes sobre a temporalidade de aplicação da Lei, com incidência sobre casos já ocorridos ou licenciamentos ambientais em andamento, de forma a impactar na segurança jurídica e administrativa dos contratos e pactuações já existentes. Além disso, o §2º do artigo 1º da Lei estabelece que suas previsões se aplicam ao licenciamento ambiental de barragem e aos casos de emergência decorrentes de vazamento ou rompimento da estrutura, nos termos do regulamento a ser editado.

Embora seja indicativo o intento de se restringir a reparabilidade da desvalorização da propriedade ou da posse de imóveis a casos futuros, com constante referência ao licenciamento ambiental, resta-se aberta a sustentação de dano por desvalorização já para as propriedades e posses existentes mesmo em áreas de barragens já licenciadas e em operação. A argumentação previsível em sustentação será a identidade de fatores de dano ou risco, que não podem desencadear tratamento diferenciado pelas matrizes de responsabilidade civil em função da época em que foi feito o licenciamento ambiental ou implementado o empreendimento por si só.

Esse fator coliga-se ao fato revelador da sujeição dos imóveis às áreas de mancha das barragens, tendo em conta seu mapa de inundação. O mapa de inundação consiste no "produto do estudo de inundação que compreende a delimitação geográfica georreferenciada das áreas potencialmente afetadas por eventual vazamento ou ruptura da barragem e seus possíveis cenários associados e que objetiva facilitar a notificação eficiente e a evacuação de áreas afetadas por essa situação", conforme previsto no artigo 2º, inciso XI, da lei 12.334/2010, sob redação conferida pela lei 14.066/2020.

A questão da área efetiva de inundação era em intensa parte desconsiderada no passado. É inumerável o quantitativo de pessoas que literalmente se descobriram em área de inundação após anos e mesmo décadas de implantação de barragens. Essa questão era simplesmente ignorada no passado. Em decorrência, a partir do momento em que foi "revelada" a situação de risco, as propriedades ou posses tiveram efeito econômico negativo em sua valoração imobiliária, independentemente da época da implantação ou licenciamento. Além do mais, o critério em si do mapa de inundação, em sua previsão legal, é redesenhado no ano de 2020 pela lei 14.066, ao que se somam os questionamentos sobre estudos que subestimavam, e por vezes ainda subestimam, as áreas de impacto.

Por fim, soma-se outra articulação. O marco legal protetivo aplica-se ainda a todas as situações em que perdure a ausência de reparação plena e integral. Em decorrência, embora os desastres de Mariana e Brumadinho, dentre outros, sejam anteriores ao novel marco legal, a ausência plena de reparação integral configura situação de sujeição permanente aos efeitos do desastre. Se a situação de sujeição ao desastre ainda é existente, a configuração legal protetiva e reparatória prevista na lei 14.755/23 pode ser aplicada àqueles atingidos.

Não há dúvidas quanto aos avanços normativos propiciados pelo novo marco de proteção das populações atingidas por barragens. Mas na mesma toada não há dúvidas quanto às polêmicas jurídicas e judiciais que se avizinham.